quarta-feira, 30 de abril de 2008

As Palavras Trocadas


Podia também dizer, os nomes e as coisas, ou revelar-me, à procura das palavras perdidas. De um ou doutro modo, é talvez de um mistério que se trata. Ou alguém, na ânsia de salvar algumas das "coisas", lhes escondeu os "nomes".



De facto, se existisse um dicionário das palavras perdidas, ter-nos–ia dado conta de três desaparecimentos: nos subtis labirintos do discurso ideológico, extraviou-se o capitalismo, extraviaram-se os patrões e extraviaram-se os trabalhadores.

Quanto ao capitalismo, alguém o procurou apagar radicalmente, recusando-lhe a emergência de um sinónimo, por mais eufemístico que fosse. Deu-se força ao fenómeno da globalização, sublinhando-lhe fortemente a novidade. Sorrateiramente, reduziu-se a economia de mercado ao capitalismo, fingindo sempre que este nunca existira, tendo passado a colar uma imagem de arcaísmo aos incautos que deixassem regressar, mesmo que esporadicamente, a palavra escondida.

Quanto aos patrões, cobriu-se de uma oportuna neblina o seu lado de poder e empolou-se a vertente de criatividade e de iniciativa, passando a colar-lhes o nome de empreendedores, empresários ou de empregadores. Os velhos senhores, instalados no seu poder, na sua riqueza e nos seus privilégios, passaram a poder repousar mais tranquilamente nessa nova penumbra. Empregadores, sublinha-se: para que fique claro que são eles, e apenas eles, os generosos geradores de emprego, a quem os empregados devem ficar eternamente gratos e o poder público servilmente reconhecido. Greves? Lutas dos trabalhadores, por melhores salários e melhores condições de trabalho? Reivindicações? Tudo resquícios arcaicos de outras palavras.

Quanto aos trabalhadores, como actores subordinados num drama de que não são autores, como vendedores da única mercadoria sua a que se atribui valor nesta sociedade, foram envoltos numa generosa névoa, retirados do mundo frio das mercadorias, para serem acolhidos na calorosa esfera da colaboração produtiva. Os trabalhadores esvaíram-se e chegaram prazenteiros os colaboradores. Uma corporação idílica afirma-se no horizonte entre os generosos ex-patrões e os plácidos ex-trabalhadores.


Os nomes foram assim subtilmente trocados. E as coisas ? Bom, na verdade, as coisas parecem estranhamente resistir, continuando a funcionar como se nunca tivessem deixado de ser aquilo que as deixaram de chamar. E esse é o problema: a teimosa realidade, na sua desfilada indiferente, continua insensível ao ocultismo manhosos dos ideólogos.

Curiosamente, quando se julgaria que o capitalismo é um fantasma que apenas vive na imaginação dos arcaicos, tudo parece indicar que nesse campo quem verdadeiramente nada tem de virtual, nada tem de fantasma, é apenas o capitalismo.

Quanto às outras duas palavras, recorramos a Eça, com a segurança com que se recorre aos verdadeiros mestres e digamos, sem a sobriedade e a elegância de não nos repetirmos:
1º- Sob o manto diáfano dos empregadores, a nudez forte dos patrões.
2º- Sob o manto diáfano dos colaboradores, a nudez forte dos trabalhadores.


Nesta palavras perdidas, é natural que a direita encontre o seu ilusionismo estrutural, mas que à esquerda um certo enviesamento mordernaço, pimpão e seguro de si, reconheça neste ilusionismo a sua marca, é algo que me deixa perplexo.



Poderíamos lembrar o insuspeito Bossuet, a que recorri, quando escrevi na parede da minha "república", nos idos dos anos 60, a frase seguinte que aqui transcrevo de memória :

“ Não há pior desregramento do espírito do que tomar a realidade por aquilo que gostaríamos que ela fosse “.

terça-feira, 29 de abril de 2008

A SIC afrancesa Jean Ziegler


Ao longo da sua vida, foram vários os ensaios , os estudos, os textos polémicos que deram a este sociólogo e politólogo suíço, deputado socialista, em diversas legislaturas, um prestígio que cedo rompeu as fronteiras do seu país, tendo-o levado a ensinar na Sorbonne.
Ouvimo-lo hoje, na televisão, salientar os riscos inerentes à política da União Europeia, em matéria de biocombustíveis, no seu tom veemente e frontal.
Por outro lado, na SIC Notícias, ouvimos uma voz desenvolta explicar-nos quem é Jean Ziegler, não hesitando em transformá-lo num francês dos quatro costados.
Horas mais tarde, a mesma especialista da SIC repetiu a calinada, mostrando que toda a SIC está afinal envolvida numa insólita conspiração, por razões desconhecidas , visando transformar Jen Ziegler num francês. Anda aqui o dedo da "Nestlé"...

domingo, 27 de abril de 2008

Onde pára a Política ?



O Presidente da República está preocupado com o desinteresse da juventude pela Política.


A mim preocupa-me muito mais o desinteresse pela Política, exuberantemente revelado por quase todos os que, neste país, exercem funções políticas.

Um poema de Joaquim Namorado


Ontem, no decorrer da transmissão televisiva de um sarau comemorativo do 25 de Abril, realizado em Lisboa no Coliseu, foi com emoção que ouvi Maria Barroso, participar no espectáculo, declamando com grande força e com o seu talento de sempre, um poema do Joaquim Namorado, meu tio e amigo, desaparecido há mais de vinte anos e sempre recordado. Como ela disse, homenageou deste modo os poetas do "Novo Cancioneiro" (1941-1944- embora nove dos autores tenham sido editados em 1941 e 1942, tendo apenas sido publicado depois, a título póstumo, Políbio Gomes dos Santos, que morrera de tuberculose em 1939, com 28 anos), onde, além de Joaquim Namorado, foram publicados: Fernando Namora, Álvaro Feijó, Carlos de Oliveira, Políbio Gomes dos Santos, Francisco José Tenreiro, João José Cochofel, Mário Dionísio, Sidónio Muralha e Manuel da Fonseca.


Com saudade e como homenagem aqui fica transcrito o poema que foi dito:


PROMETEU


Abafai meus gritos com mordaças,
maior será a minha ânsia de gritá-los!

Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será a minha ânsia de quebrá-los!

Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!

O meu sangue será minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.

Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!

sábado, 26 de abril de 2008

Cuidado com os salvadores!





Era uma vez um partido que parecia correr o risco de naufrágio.

Não tanto por ter alguma vez metido água, para além do que era da sua própria natureza, mas, principalmente, por se terem apresentado, solícitos e prontos a todos os sacrifícios, alguns dos seus mais esforçados barões, alegando que vinham salvá-lo de um naufrágio, que eles próprios em uníssono assim, dramaticamente, anunciavam.

As basses entreolharam-se incrédulas perante o anúncio de tamanha desgraça, desconfiando de um tão grande excesso de salvadores.

Foi por isso com naturalidade que o Zé desse partido, primo de um outro mais antigo, muito conhecido dos portugueses, disse pesaroso à mulher:


"Ó Maria, o partido do Sr. Doutor vai mesmo ao fundo. Com tantos barões a quererem salvá-lo, não vai conseguir resisitir".

E um dos seus dirigentes mais circunspectos, desde jovem seduzido pela filosofia chinesa, sentenciou:


"Se os salvadores se excederem numa ânsia salvífica e forem tantos que um salvado é pouco, podem ser eles os donos do naufrágio."

( A ilustração inicial foi retirada do PimPão Digital , de Setembro de 2006)

sexta-feira, 25 de abril de 2008

25 de Abril - manhã submersa


Temos sido o futuro desse Abril, com a ligeira amargura de nos termos sonhado de uma maneira mais ampla e mais limpa do que aquilo que fomos. Habituámo-nos à liberdade com sofreguidão, naqueles anos tão rápidos e tão cheios que nos trouxeram para fora do passado.

Os jovens vão cantar Abril como música ao longe. Os mais velhos vão senti-lo numa brisa já distante coberta de saudade.

Os momentos mágicos da grande mudança vão ser recordados com emoção e detalhe. Os que ainda os podem recordar vão perder-se na memória de cada minuto com a emoção única de o terem vivido.

O país lento e arrastado que Abril extinguiu vai rasgar mais fundo as paredes da memória. Meio século de sombra e humilhação. Tempo de mordaças e prisões. O exílio da liberdade.

Os optimistas vão levar mais longe o seu optimismo e vão abrir as portas da alegria, celebrando um Abril que sonharam como se o vivessem realmente. Os pessimistas vão cobrir de luto o seu pessimismo e numa angústia rasgada vão perguntar: Foi para isto que fizemos o 25 de Abril ?

Todos temos o direito e o dever de homenagear esse mágico dia de invenção do futuro procurando compreender o caminho percorrido, valorizando o que foi conseguido e compreendendo, procurando compreender, porque não chegámos ainda mais longe. E chegar mais longe sob o manto de Abril é conquistar uma sociedade justa e livre, cada vez mais justa, cada vez mais livre.

Discute-se hoje se realmente se cumpriram os célebres três dês : descolonizar, democratizar, desenvolver.

Quanto ao D de descolonizar, parece ter-se cumprido por completo, a não ser que entendamos que há agora um caminho de particular fraternidade entre todos os povos de língua portuguesa que deve continuar a ser percorrido, abrindo assim a porta à incompletude de uma tarefa por dentro dessa letra.

Quanto ao D de democratizar, se dissermos que nos podemos comparar às democracias mais amplas e mais profundas actualmente existentes, não estaremos a dar por terminado um processo que verdadeiramente nunca tem fim, mas estamos a reconhecer com justiça o caminho percorrido. Reforcemos a vontade de ir mais longe, mas não cometamos o erro de desvalorizar o já conseguido.

Quanto ao D de desenvolver, se compararmos a nossa situação em 1974 com a que vivemos agora, mesmo tendo em conta o percurso feito pela humanidade no seu todo, não podemos deixar de constatar que a diferença é enorme. Estamos hoje entre os trinta países mais desenvolvidos do mundo e estamos integrados num bloco de países que se situa entre os mais relevantes na cena mundial.

E, no entanto, pode dizer-se, que desde sempre foi neste D que pusemos o peso das nossas desilusões. Quando o sonho de uma vida melhor para todos os portugueses ( para todos os portugueses concretos, realmente existentes) tinha na nossa Constituição o nome de socialismo, víamos nessa palavra o porto de chegada da grande viagem de um desenvolvimento que concebíamos como um processo complexo que estava longe de caber na frieza dos números. Como o porto parece ter desaparecido, a viagem que nos levaria até ele, foi ganhando a cor melancólica dos sonhos adiados, das aventuras interrompidas, das empresas extraviadas nas agruras da má sorte.

E, no fundo, este D estava à partida inquinado por uma ambiguidade essencial. Uns liam o desenvolvimento como a exuberância dos negócios, em regra dos seus negócios ou dos negócios que lhes dessem proveito; outros viam o terceiro D como a porta de saída da miséria, como o fim da injustiça estrutural que os atingia desde sempre. Os mandatários que se profissionalizaram no exercício do poder faziam crer que essas duas visões se completavam harmoniosamente e, de tanto o dizerem, talvez tenham passado a acreditar no que tantas vezes diziam.

O problema é que a sociedade não tem dentro de si uma máquina de fazer riqueza que produza automaticamente o fim da miséria numa conjugação virtuosa automática. Esta sociedade manteve a mesma lógica estrutural que seguia antes do 25 de Abril. Foi regulada , contida, limaram-se algumas das suas arestas mais predatórias, mas não mudou de lógica. Ou seja, mantém uma lógica que geralmente implica que a exuberância dos negócios se traduza no exacerbamento das desigualdade sociais.

Em Portugal e no mundo, a ideologia conservadora tem vindo a conquistar um novo poder de enquadramento simbólico que, no essencial, assenta na ideia de que o capitalismo já não existe e que o socialismo é a designação de um excesso de intervenção do Estado na economia, tendencialmente inclinado a sufocar a criatividade e a iniciativa. A esquerda governamental tem-se esmerado no papel necessário de ir gerindo o capitalismo, quando exerce o poder, mas tem-se esquecido de visar uma sociedade pós-capitalista, nas medidas estruturais que toma. A esquerda extra-governamental, sentindo-se acossada pela verificação do equívoco soviético, fechou-se no protesto e na resistência; limitada ao exacerbar de radicalidades pontuais, perdeu a imaginação do futuro.

No fundo, a ideologia dominante inculca a ilusão de que o capitalismo é o fim da história, sendo assim o modo de ser natural das sociedades modernas. A esquerda não encontrou ainda um caminho alternativo que fundisse num projecto e num programa uma visão alternativa, que, sem sair do reformismo, não perdesse a alternatividade.

Ora, esta sociedade tem uma maneira de produzir riqueza indissociavelmente geradora da produção de desigualdade social , de dificuldades e de miséria para muitos e de ócio, prazer e tranquilidade relativa, para alguns.

Nestas pequenas frases não cabe, evidentemente, o enunciado rigoroso e completo desta problemática , tão importante e tão complexa. Nesta circunstância, apenas se pretende referi-la.

No essencial deve dizer-se que os cidadãos e os partidos de esquerda, principalmente os que exerçam o poder político, devem compreender e fazer compreender, que uma parte dos problemas que afligem os portugueses podem não ser o reflexo de erros de governação , mas sim os resultados naturais do tipo de sistema económico em que vivemos, o capitalismo. Não culpemos a democracia das consequências naturais do capitalismo. Não é para fora da democracia, rumo à escuridão messiânica autoritária, mais ou menos disfarçada, que temos que caminhar. Se queremos uma sociedade justa, é o pós-capitalismo que temos que antecipar.

Embora todos os erros devam ser sempre corrigidos, numa tarefa sem fim, o que de essencial falta à Revolução de Abril não é a correcção de alguns erros, mais ou menos relevantes. O que verdadeiramente lhe falta é o seu futuro, um futuro que possa projectá-la neste novo século, gerando uma sociedade justa, livre, criativa e ambientalmente sustentável. Só assim, Abril se mostrará completo, finalmente liberto das sombras do passado. Esse Abril é o nosso futuro E vale a pena.



quarta-feira, 23 de abril de 2008

Requiem pela Europa melancólica


A Assembleia da República aprovou hoje o Tratado de Lisboa. A atmosfera pública que rodeou o evento é comparável à que teria rodeado uma notícia que informasse sobre a visita a Portugal do Ministro dos Negócios Estrangeiros das Ilhas Maurícias.


Sôfrego na ânsia de fugir a um referendo que não devia ter sido prometido, o cartel do conformismo político procurou anestesiar o bom povo, rodeando a questão europeia de uma exótica mistura de silêncios e frases chatas, que afugentariam qualquer mortal que se aproximasse delas.


Êxito excessivo. A Europa transformou-se numa rotina. E afinal devia ser um horizonte de esperança. Transformada em rotina, deixou-se encerrar neste presente atrofiado que o neoliberalismo tenta converter numa paciência sem limites.


É claro, que há uma pequena casta que ronrona de prazer num excesso de mordomias. Mas os indutores de conformismo acham que o sofrimento dos povos não é mais do que uma oportunidade para dar aos ricos a oportunidade para serem caridosos. E depois a turba faminta há-de ficar eternamente grata e mansa. É esse o tipo de Europa com que sonham os euroglutões.


Por isso, lhes convém uma Europa reduzida a esta rotina cinzenta aprisionada num discurso "europês" previsível e redondo que brota em catadupa dos tecnocratas de Bruxelas.

Ou seja, uma Europa melancólica que erra pelo mundo espalhando sorrisos que ninguém leva a sério e distribuindo conselhos que ninguém ouve.


Os eurocratas, os euroglutões e os simpáticos eurofóricos julgam que ganharam uma batalha, quando apenas aumentaram o risco de um pesadelo.

O Paraguai e a esquerda latino-americana






A esquerda ganhou as eleições presidenciais no Paraguai, pondo fim a 60 anos de domínio do Partido Colorado. Não conheço com exactidão a relação de forças na instância parlamentar, mas seguramente que ela não reflecte um domínio absoluto do vencedor.

O Presidente eleito, Fernando Lugo, um ex-bispo católico que a Igreja de Roma sancionou, por ter entrado na política activa, liderou uma aliança eleitoral de largo espectro, que vai da extrema-esquerda ao centro-direita. No entanto, o seu programa e o seu posicionamento, em termos genéricos, identificam-se com os da esquerda latino-americana. Está inscrito neles , como vector central, o combate à pobreza.

Os analistas políticos tendem a situá-lo no grupo mais moderado dos dirigentes da esquerda latino-americana. O próprio Lugo se posicionou, a si próprio, entre Chavez e Lula, tendo assumido, já depois de ter sido eleito, uma forte identificação com o actual presidente do Uruguai, Tabajara Vasquez.

Aliás, se é certo que, nos últimos anos, a esquerda foi ganhado sucessivamente as eleições, em vários países da América Latina, também é verdade que os caminhos seguidos, por cada um dos países em que isso ocorreu, reflectem uma clara heterogeneidade. Assim, podemos encontrar desde opções moderadas, baseadas em governos de coligação, até governos de um partido dominante com forte radicalidade anti-capitalista, mais distantes ou mais próximos do estilo populista. Mas, se percorrermos os países em que uma dessas esquerdas ganhou, ficamos com um panorama impressionante: Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Brasil, Equador, Venezuela, Nicarágua. E agora o Paraguai.

Na América do Sul de línguas ibéricas, apenas escapam actualmente à hegemonia da esquerda a Colômbia e o Peru. E, neste último caso, está no poder um partido tradicional, que se afirma de esquerda moderada, com a particularidade de ser o único governo desse tipo que venceu eleitoralmente um forte bloco político situado à sua esquerda. Na América Central, nos países que não seguiram a Nicarágua, a esquerda, ainda que minoritária, tem já uma expressão significativa.

No México, o actual Presidente é o segundo do mesmo partido, o PAN (Partido da Acção Nacional), partido de direita que interrompeu décadas de domínio do PRI (Partido Revolucionário Institucional), um partido que originariamente se podia considerar de esquerda, mas que se foi transformando num partido-regime, minado pela corrupção, conservador e autoritário. Mas na última década, emergiu, a partir de uma cisão do PRI, o PRD ( Partido da Revolução Democrática) o qual só foi derrotado nas últimas eleições presidenciais, por uma fraude com que ainda se não conformou. É um partido de esquerda, com um enorme poder de mobilização política e social, que governa alguns do estados do México, entre os quais o mais importante, aquele em que se situa a capital federal.

Todos estes governos conquistaram o poder por eleições e todos continuam a respeitar as regras da alternância democrática. As suas diferenças não os impedem de se apoiarem mutuamente na resistência à vontade de domínio dos USA, com os quais aliás os vários países têm relações muito distintas, indo do confronto à relativa cordialidade.

Esta solidariedade, no essencial, com respeito pelas diferenças que os separam, longe de ser uma fraqueza, é um dos seus melhores trunfos e um sinal eloquente de novidade. Esta entreajuda entre opções políticas que, assumindo-se como diferentes, sabem que pertencem a uma mesma área política, em sentido amplo, no seio da qual se movimentam com plena autonomia, é benéfica para todos.

É natural que, nalguns destes países, os actuais governos venham a perder eleições, mas já é irreversível a afirmação da esquerda, como alternativa legítima e crível, em todos eles. É pouco? Não esqueçamos que houve um tempo em que só isso era impensável. O drama de Salvador Allende no Chile é disso um exemplo inesquecível.

Em paralelo, em Cuba, parecem aflorar tímidos sinais de mudança. Não é evidente o que aí vai acontecer, parecendo agora não ser de excluir, por completo, uma transição relativamente suave. Aliás, do ponto de vista da reprodução do seu modelo político interno, Cuba não teve qualquer êxito, já que nenhum outro país da América Latina adoptou o modelo cubano. Na verdade, mesmo a Venezuela, que tão próxima está dela, no plano internacional, escolheu um caminho interno bem diferente. Mas, em termos geopolíticos, pode dizer-se que Cuba se insere num contexto latino-americano que está muito longe de lhe ser hostil. E é, precisamente, esta boa vizinhança que aumenta as hipótese de uma transição suave para um regime democrático, o que poderá significar uma salvaguarda dos aspectos positivos do modelo cubano e um caminho rápido para uma democracia digna desse nome. Isto é, um regime de liberdade que garanta uma vida digna a todos os seus cidadãos.

Situação oposta parece enfrentar o grande vizinho do Norte, já que, tendo esconjurado o fantasma da disseminação continental da revolução cubana, perdeu a forte hegemonia que tinha sobre a América Latina. Deixou de poder dar ordens e de impor medidas aos “súbditos “ do Sul. Paradoxalmente, Cuba foi vencida no que respeita à irradiação do seu modelo, mas foi vencedora ao ter contribuído para um claro enfraquecimento do papel dominador dos USA na região.

É claro, que se a nova administração americana romper com a deriva imperial e neoconservadora de Bush, pode abrir-se um tempo novo nas relações dos USA com os vizinhos do Sul. Já não, como se houvesse a Norte um Senhor e a Sul os seus súbditos, mas como se houvesse uma atmosfera cooperativa entre todos os povos da América, protagonizada por Estados soberanos, que se respeitem e estejam em condições de se fazerem respeitar.

Tudo isto será mais fácil e menos conflituoso, se rapidamente se desenvolverem estruturas internacionais reguladoras da globalização capitalista predatória, de modo a contribuírem para a transformar, a prazo, numa globalização sucessivamente mais solidária e animada por uma crescente energia emancipatória.

Mas, esta viragem histórica à esquerda, na América Latina, que tem vindo a consumar-se na última década, para além de todas as debilidades e incertezas que ainda a constrangem, tornou já absolutamente claro que os povos latino-americanos não admitirão mais ser um simples terreno de caça de multinacionais, que lhes confiscam os recursos, pilham as riquezas e exploram o trabalho dos seus cidadãos.

terça-feira, 22 de abril de 2008

A questão laboral


Estamos a entrar agora num terreno decisivo: a legislação laboral. Até agora houve pugnas importantes, mas agora entra-se no coração da identidade histórica do PS.


Tudo é mais melindroso. O clima de crispação social existente não ajuda. O empastelamento das esquerdas europeias também não.


O PS pode errar, o seu Governo pode errar, mas não pode tentar mistificar o sentido do que proponha, nem deixar pairar qualquer sombra de dúvida quanto à sua boa-fé negocial.


Assim, é imperativo que explique aos seus militantes, aos seus eleitores e ao povo de esquerda, em geral, as razões por que mudou de posição quanto ao Código de Trabalho feito pela direita; e por que razão, em vez de revogar tudo aquilo que criticou, parece querer agravar alguns dos erros que denunciou.


É imperativo que garanta aos seus militantes e aos seus eleitores que não agravará a perda de peso dos trabalhadores na dialéctica social (negociação/conflito), que não entrará na fila dos partidos da IIªInternacional que se deixaram arrastar por essa deriva.


É imperativo que o Governo não caia no logro de pôr já em prática tudo o que não convém aos trabalhadores, deixando que só a pouco e pouco se materialize tudo o que os possa beneficiar.


O Governo afixa como prioridade o combate à precariedade laboral. Muito bem ! Mas espera-se que não faça pagar por essa vitória, a prazo, com uma quase -transformação de todos os trabalhadores , em precários.

domingo, 20 de abril de 2008

Educação: uma longa caminhada necessária.


1. Um acordo auspicioso.


A Ministra da Educação e os Sindicatos entenderam-se. Li num semanário que com a ajuda da CGTP, que, por sua vez, interferiu a pedido do Governo.


O sinal é positivo.Deixa uma dúvida no ar: por que não se entenderam antes de serem tomadas as medidas, que depois foram afinal corrigidas?


Se o Governo tivesse sido menos crispado para com os sindicatos e se os sindicatos tivessem sido um pouco menos ferozes contra o Governo, talvez isso tivesse sido possível.



2. Uma pergunta escaldante


Mas é este entendimento que deixa uma pergunta escaldante: Quando vamos sair das modificações cosméticas, ancoradas essencialmente na contenção de despesas, e instrumentalmente na inovação tecnológica, para lançarmos um debate sobre uma necessária e profunda reforma da educação? Um debate que seja já um primeiro passo de um longo caminho, que possa ser olhado, no seu todo, como uma verdadeira reforma da educação.


Uma reforma que se dirija ao futuro numa ambição prospectiva e que se radique na necessidade de ajudar a construir cidadãos preparados para serem a humanidade de um século novo, não se alheando de nenhum deles, incomodando-se com todos.
Uma reforma centrada na escola pública como matriz estruturante do Estado democrático e como elemento incontornável da nossa identidade cultural como povo.

Uma reforma liberta dos constrangimentos ideológicos induzidos pelo neoliberalismo dominante e que assim dispense, desde logo, a interferência e a pressão conservadora dos tecnocratas internacionais.


Uma reforma que comece por conquistar o entusiasmo dos professores, que antecipe, em si própria, uma sociedade mais justa, que seja moderna em todos os sentidos e em profundidade, que não apenas no verniz da superficialidade tecnocrática e da cosmética de circunstância.


Uma reforma que se insira numa cultura renovada e humanista, assumindo-se como parte de uma sociedade do conhecimento.


Uma reforma que pressione a sociedade para que evolua no sentido de poder incorporar, como um dos seus elementos estruturais, a educação ao longo da vida.


Uma reforma que assente na superação dos constrangimentos conjunturais, sem os ignorar, mas sem se limitar a ser uma simples estratégia para lhes responder.


Ou seja, uma caminhada difícil mas sustentável, árdua mas esperançosa, que exija tudo dos professores, na exacta medida em que os dignifique até ao limite. Uma reforma que o maior número de cidadãos possa sentir como sua e que não implique para ninguém precarização e apoucamento.


Não é fácil nem simples ? Pois não. Não terá frutos evidentes num curto prazo ? Pois não .


Mas alguém poderá pensar honestamente que uma mutação profunda, radicada nas complexas exigências dum futuro que se aproxima com uma rapidez crescente, pode apenas traduzir-se num punhado de medidas avulsas, em grande parte circunscritas a detalhes que, por vezes, rondam o anedótico ?

sábado, 19 de abril de 2008

Um dia, todos os dias: homenagem a Jorge de Sena


Neste tempo de ideias feitas e palavras gastas, neste carnaval enlouquecido de slogans sem sentido, neste tempo de ideias que não crescem, de palavras tão previsíveis que apenas conseguem abrir as portas do silêncio, neste tempo pequeno e abafado, homenageemos Jorge de Sena, deixemos entrar neste dia cinzento a sua lira ardente, o seu verbo tenso e a sua poesia de liberdade e amargura.

Homenageemo-lo em três momentos: recordando um dos seus poemas, lembrando uma revista que o reviveu e transcrevendo um testemunho qualificado.


1º Momento


A MISÉRIA DAS PALAVRAS

(05/08/1962)


Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
na liberdade.

Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.

Assim, apenas se fala do que se não fala,
apenas se vive do que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.

E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a vida em algo mais
que o falar por falar.

Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.



2º Momento





A importante revista de poesia "Relâmpago ", publicada em língua portuguesa, dedicou o seu nº 21 a Jorge de Sena. Nele incluem-se ensaios, sobre o grande poeta, de Fernando Pinto do Amaral, de Gastão Cruz, de Jorge Fazenda Lourenço, de Luís Adriano Carlos e de Margarida Braga Neves. Nesse número podem ainda ler-se diversos testemunhos acerca de Jorge de Sena.



3º Momento


Para culminar a homenagem achei que o depoimento do escritor e intelectual brasileiro António Candido, galardoado com o Prémio Camões de 1998, publicado no número da "Relâmpago", acima referido, era o mais adequado. Ei-lo:


Apenas lembrando

António Candido
Conheci Jorge de Sena em 1959. Eu era professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Assis e ele apareceu lá conduzido por António Soares Amora, que esta­va dirigindo no interior do Estado de São Paulo esse novo instituto oficial de língua e literatura concebido segundo moldes diferentes. Sena viera participar de um Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros na Bahia e aproveitou para ficar no Brasil, por causa da sua situação política de oposicionista à ditadura portuguesa. Amora convi­dou-o para ser professor de Teoria da Literatura no Departamento de Letras Venáculas, do qual eu fazia parte. Ele veio com a família e pudemos a partir de então conviver na mesma sala de trabalho durante o ano de 1960. Quando voltei à Universidade de São Paulo, em dezembro do mesmo, o nosso contacto prosseguiu, não apenas pela correspondência, mas porque sempre nos visitava nas suas vindas à capital. E o teor das nossas relações pode ser avaliado pelo fato de sermos, minha mulher e eu, padrinhos de sua filha Maria José, nascida em Araraquara. Jorge se transferira de Assis para a Faculdade de Filosofia dessa cidade, onde ensinava Adolfo Casais Monteiro e onde ficou até ir para os Estados Unidos, em 1965. No ano de 1968, estando eu em Yale como professor visitante, promoveu a minha ida à sua Universidade de Wisconsin e, em seguida, Mécia e ele me acompanharam gentil­mente a Chicago. Foi a última vez que o vi.
Bastava conversar algum tempo com Jorge de Sena para perceber as suas fagu­lhas de genialidade. Na sua personalidade vulcânica, talvez o que mais impressio­nasse fosse a estrutura de contrastes. Era versátil de modo extensivo e, ao mesmo tempo, densamente profundo. Era arrebatado até a explosão e concentradamente reflexivo. A sua informação era inacreditável e a sua capacidade de captar conheci­mento chegava a causar espanto pela rapidez e a penetração, só comparáveis à presteza com que traduzia os resultados em escrita.
A propósito conto apenas um caso, ou melhor, tomo a liberdade de repetir mais uma vez o que não canso de relatar quando se fala nele. Foi o seguinte: certo dia,
em Assis, eu lhe disse que bem poderia fazer para a nossa Revista de Letras uma resenha do livro de Helen Gardner que eu acabara de ler, The Business of Criticism, no qual havia reparos pertinentes sobre certos aspectos "autotélicos" do netv criti­cism. E passei-lhe o volume às seis horas da tarde, quando saímos da Faculdade, à qual voltaríamos no dia seguinte às oito da manhã, menos ele, que chegava sempre depois. De fato, ali pelas dez entrou velozmente em nossa sala, modo muito seu, e me entregou a resenha. Pasmado, pensei com os meus botões que não poderia ser coisa sólida, pois ele saíra com o livro dezasseis horas antes, durante as quais jan­tara, convivera com a família, dormira.
Que tempo poderia ter sobrado para ler o livro, pensar e escrever a respeito? Desconfiado, li o seu texto e verifiquei que era não apenas de grande acuidade mas apontava coisas que eu não tinha percebido...Essa prodigiosa força mental aparece em toda a actividade de Jorge de Sena manifestando-se em níveis elevados na poe­sia, na ficção, nas monografias, no ensaio,
- tanto o ensaio que depende mais da intuição e do golpe de vista, quanto o que pressupõe fundamentação rigorosa.
No entanto, não era um estudioso fechado em suas obsessões, nem um confinado em si mesmo. Estava sempre disposto à conversa e era muito acessível como professor e como colega. Quem o procurasse com algum problema a debater, alguma consulta a fazer, algum esclarecimento a pedir o encontrava sempre solícito, disposto a aten­der com paciência, sem fazer caso do tempo. E, o que é mais raro, com interesse real pelo que lhe submetiam, como se a preocupação do interlocutor se tornasse coisa dele. Isso se explica porque a sua inteligência poderosa estava associada a uma vibração emocional e a uma capacidade de entusiasmo que transformavam cada assunto em paixão e cada ato em empenho. Esses traços lhe permitiram extrair da sua formação heterodoxa e múltipla uma coerência fervorosa, graças à qual articu­lou com harmonia a riqueza da sua rara constituição mental.



sexta-feira, 18 de abril de 2008

Morreu Aimé Césaire


Aimé Césaire, poeta de língua francesa, nascido na Martinica, morreu ontem com 94 anos. Uma das raízes mais funda da negritude, a par de Senghor, pela qual tornou a África mais presente na cultura universal. Político de esquerda, escritor e pensador, há muito rompera as barreiras da língua francesa, para entrar na fraternidade universal dos grandes poetas, que fundiram as suas palavras nas lutas e nos sofrimentos da humanidade.



Em sua homenagem, nada melhor do que um poema seu, traduzido para português por Armando Silva Carvalho e publicado, em 1970, pelas Publicações Dom Quixote:





PRECEITO


Está bem
só como selvagem hirsuto
pelos espinhos do caminho
eu entrarei pelo arco de três portas
das vigorosas selvas


excluído mas violador de santuários
entrando pelo portal triunfante
do mar que quebra estremecendo
o pudor da pedra


nos pregões do pão público da festa das crianças
com a minha garganta rara entrando na do vento
que morde as silvas nuas num raro riso obsceno


um país negro é segundo um negro sono fiel
bêbedo do puro vinho do leite negro da terra

O Grande Ilusionista



1. O PSD é um partido peculiar: é um grande ilusionista da política. Mas é um ilusionista naturalmente mais eficaz como oposição do que como Governo. Como Governo, embora mantenha a pose , o estilo do ilusionista que faz de conta, enfrenta a imediata contraprova das consequências palpáveis do que realmente faz, retirando assim poder de ilusão ao que gostaria de nos fazer crer que está a fazer. Na oposição, ele é grande tirador de coelhos da sua velha cartola e, quando o público atento lhe descobre o truque, muda agilmente de estilo ou de protagonista. Parece ser o que está a acontecer.


2. De facto, só neste contexto se pode compreender o sentido mais fundo do grande gesto do Dr. Menezes. No entanto, deve sublinhar-se que, o facto de o PSD mostrar como rosto dominante o de grande ilusionista, não quer dizer que ele não possa ter êxito no fabrico de ilusões.

Já o teve no passado em mais do que uma circunstância. Pode voltar a tê-lo no futuro. Ou seja, o facto de se estar perante um "grande ilusionista" não significa que não haja quem seja realmente iludido. Por isso, andaria bem o PS se agisse com todo o cuidado nesta conjuntura que, podendo ser-lhe favorável, não é certo que realmente o venha a ser.


3. Voltemos ao gesto do Dr. Menezes. Num golpe rápido e simples surpreendeu os graves notáveis que se haviam começado a mexer. Quando julgavam ter começado a distribuir cartas para um jogo que se ia arrastar por meses, viram que afinal o baralho era outro e o jogo não seria aquele que tinham programado. É a diferença entre um combatente político e a seráfica corte de gestores de carreiras que o tem procurado corroer.


Menezes, provavelmente, escolherá, em função dos sinais e dos movimentos da baronagem laranja, um de dois caminhos: ou aceitará, por irresistível pressão das bases, o sacrifício heróico de uma nova candidatura; ou abrirá caminho para que alguém do seu campo em sentido lato se disponha a enfrentar os candidatos -barões.


No primeiro caso, esta demissão relâmpago servirá para vitaminar a sua própria liderança e para confrontar os seus adversários com o que mais temem, a refrega política, a luta aberta pelo apoio das bases. No segundo caso, terá reduzido drasticamente as hipóteses de vitória de qualquer barão contra qualquer candidato que seja visto como seu "herdeiro".


Em qualquer caso, com um Menezes recauchutado , com um neo-menezista ou com um improvável anti-menezista, o "grande ilusionista" apresentar-se-á em palco como se estivesse a chegar de novo.

Arrasará o governo e prometerá o paraíso. Para ganhar as eleições que se avizinham, encomendar-se-á a todos os santos como um pagador de todas as promessas, mas não renunciará a vender a alma ao diabo, se for caso disso. Os seus erros e as suas limitações serão guardados num baú de esquecimento. Nada terá a ver consigo próprio, com o que foi até ao minuto anterior. Terá nascido naquele momento: límpido e esperançoso.


4. O PS não se poderá esquecer de tudo isto e certamente terá a inteligência táctica para lhe responder adequadamente.

Mas o PS, só por ligeireza não valorizará devidamente um sinal estratégico que aflorou nas palavras mais recentes de Menezes: a valorização da soberania dos militantes, traduzida não só na vida interna do partido, mas também em mecanismos democratizadores, semelhantes às eleições primárias, para escolha dos candidatos do partido a todas as eleições.


5. Se continuar preso ao curto prazo, o PS corre um risco crescente de ser surpreendido ou ultrapassado, em aspectos decisivos da qualificação da nossa democracia. Seria bom que valorizasse alguns sinais que podem ser premonitórios.


Há vários anos que muitos socialistas têm vindo a insistir na necessidade política de que se façam eleições primárias para escolher os candidatos do PS, bem como a urgência em tornar as eleições internas do PS realmente limpas e justas. Se a inércia continuar, se os responsáveis continuarem indiferentes ao que se prenuncia, neste campo, a partir do exterior, estarão apenas a recusar-se a fazer por sua livre iniciativa, ponderadamente, nos seus próprios termos aquilo que virão a ser forçados a fazer, mais ano menos ano, empurrados pelas circunstâncias ou, o que é pior , a reboque da iniciativa de um ou outros partidos.

Atenção! Hoje dia 18, já a decorrer.


Com atraso, mas espero que com alguma utilidade, eis aqui mais um texto que recebi do Júlio Mota a dar-nos conta de mais uma iniciativa de grande interesse.



"Os docentes da disciplina de Economia Internacional, em colaboração com os alunos do Núcleo de Estudantes de Economia da AAC e com o apoio da Coordenação do Núcleo de Economia, estão a realizar o Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC de 2007-2008 com o tema


Integração Mundial, Desintegração Nacional: A Crise nos Mercados de Trabalho.

Com a presente carta, vimos comunicar o programa da próxima sessão, a sessão 11 deste ciclo, a realizar no dia 18 de Abril com início às 10 horas na FEUC e com o seguinte programa:

Sessão 11:


Globalização e Mercados de trabalho: a perspectiva dos países em vias de desenvolvimento

1ª parte


Colóquio


Local: Auditório da FEUC

Programa:

10.00
Abertura

10.20 – 11.00
Conferência de Machiko Nissanke (School of Oriental and African Studies, SOAS, Universidade de Londres): Por uma globalização a favor dos países em vias de desenvolvimento

11.00 – 11.40
Conferência de Stefaan Marysse (Universidade de Antuérpia): O debate do Rendimento Mínimo Garantido na África do Sul: Uma perspectiva comparada

11.40 – 11.50
Intervalo para café

11.50 – 12.10
Comentários de Jochen Oppenheimer (ISEG-UTL) e Margarida Proença (EEG-UM)

12.10
Debate com os participantes

2ª parte

Cinema e Debate
Local: Teatro Académico Gil Vicente

21.15 – 22.30
Filme/Documentáro: The Other Europe, de Poul-Erik Heilbuth, 2006

22.30 - 23.10
Comentários de Stefaan Marysse, Machiko Nissanke, Romero de Magalhães (FEUC) e Jochen Oppenheimer.

23.10
Debate


No Teatro Académico Gil Vicente será disponibilizada uma brochura produzida pelos docentes da disciplina de Economia Internacional, com textos de apoio e de desenvolvimento da temática tratada no filme, ou seja, sobre a problemática da imigração no espaço europeu, sobre a emigração como um dos mecanismos de regulação do capitalismo à escala da União Europeia e sua política relativamente às migrações, sobre uma outra forma de deslocalizações e de desregulação dos mercados nacionais de trabalho. Neste sentido, nesta brochura, incluem-se algumas leituras da eventual política da União Europeia sobre a imigração, que têm como ideia comum que a imigração está a ser um instrumento de apoio às políticas salariais e de emprego, de forma a conter a pressão salarial, a manter os níveis de precariedade e a contribuir para que o salário seja a grande variável de ajustamento na política macroeconómica. Com estes documentos mostra-se que a situação ilustrada com o filme anterior, El Ejido, não é fruto de uma aberração em Espanha, mas que esta situação se inscreve na política geral da União Europeia, em nome da referência máxima da arquitectura da construção europeia: a estabilidade dos preços dos bens e serviços.
Um antropólogo francês, Emmanuel Terray, tem uma imagem particularmente sagaz para descrever a situação tratada no filme. Para ele, a “economia baseada no trabalho ilegal” representa uma forma de “deslocalização no próprio local”;o que significa basicamente “localizar no país de origem” indústrias e sectores económicos que não podem ser transferidas para países onde os custos do trabalho são muito baixos, importando simplesmente trabalhadores de baixos salários sob a forma de imigrantes clandestinos.


Sobre o filme:
Sinopse de A outra Europa

China, de manhã e muito cedo. Um pai telefona de Morecamb Bay, na Inglaterra, para dizer adeus. Como trinta e quatro outros chineses imigrados clandestinos, foi contratado para a apanha de bivalves (conquilhas e amêijoas) com um salário bastante inferior aos salários locais. Nenhum deles conhecia as condições da apanha dos bivalves nem os perigos que representavam as águas da baía. Destes, 23 afundaram-se. Estes jovens mortos nessa noite fazem parte da “outra Europa” - uma Europa em que os passaportes, documentos, seguros, sindicatos ou direitos fundamentais não existem, onde a lei como instrumento de garantia dos cidadãos não se aplica; uma Europa que não faz os grandes títulos dos jornais e das televisões.
Falamos duma Europa que progressivamente fechou as suas portas oficiais à imigração. Mas milhares de pessoas forçam a sua passagem, ano a ano. Contudo, enquanto os europeus e os seus líderes políticos falam em combater a imigração ilegal, a utilização dos seus serviços é permitida em larga escala, apesar do facto de desde há 10 anos ser possível ler artigos sobre a forma como são recrutados os trabalhadores da construção civil no coração de Paris ou os trabalhadores agrícolas em Espanha e na Alemanha; é surpreendente, pois, como está a ser feito tão pouco pelos poderes públicos para que os empregadores deixem de empregar trabalhadores ilegais.

Isto não é um filme sobre imigração; nem é um filme de debate a favor ou contra mais imigrantes. Também não é um filme sobre a “Fortaleza Europa”; já antes acompanhámos o assalto dos imigrantes às fronteiras europeias. Vimo-los nas chocantes imagens de televisão a atravessar o Mediterrâneo em pequenos botes. Vimos refugiados africanos e asiáticos a trepar por arame farpado ou escondidos na escuridão de contentores.

Esta é a história da Europa de que pouco ouvimos falar. O que é que acontece aos milhões que conseguiram efectivamente entrar na Europa? Com este filme centramos a atenção nas condições com que eles se deparam. Isto é um filme sobre direitos humanos e sobre a forma como os europeus tratam milhões de pessoas que trabalham para eles.

O que fica é o dilema central do filme: os europeus sentem-se vítimas, submergidas numa onda de imigrantes. Mas é este o verdadeiro cenário? É a Europa realmente uma vítima, ou será que a procura de força de trabalho ridiculamente barata cria um terreno fértil para atrair as centenas de milhares que entram furtivamente todos os anos? Será que os Europeus são vítimas inocentes ou são efectivamente os criadores da vaga?



Informamos que o programa do ciclo, bem como todos os documentos até aqui produzidos, podem ser consultado no sítio: http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int.

Sem outro assunto e certos da vossa atenção e aguardando a vossa presença nestas sessões assim como a divulgação deste evento cultural, apoio este que antecipadamente agradecemos, apresentamos os nossos cumprimentos.

Pela Comissão Organizadora

Júlio Marques Mota "

quinta-feira, 17 de abril de 2008

17 de Abril de 1969

No primeiro dia da ditadura o primeiro acto de resistência deu o primeiro contributo para o seu derrube. Passaria, entretanto, quase meio século. Portugal ficou aprisionado num pesadelo retrógrado e conservador, atolado numa terra de ninguém fora do seu tempo, ancorada num passado ficcionado, com as costas voltadas para o futuro. A direita portuguesa instalou-se na ditadura e aconchegou-se no colo maternal de Salazar, um político que nasceu velho.Sonhando-se discreto imperador, acabou por ser coveiro dos seus próprios delírios de grandeza.



Muitos portugueses resistiram, em vários planos e de muitas maneiras, dia após dia, ano após ano. Muitos portugueses suportaram, mês após mês, a amargura de verem durar e durar e durar, o que sentiam como anacrónico resíduo dum passado, que parecia esquecer-se de passar. Os privilégios e as injustiças cristalizavam-se num regime que os representava e perpetuava. Muitos portugueses conheceram as prisões e o exílio, passaram anos e anos nas prisões e no exílio, apenas por motivos políticos. Muitos portugueses saíram da vida sem o gosto supremo de verem extinto o pesadelo salazarista que os perseguiu, em cada minuto, durante uma grande parte das suas vidas.





Entre os episódios que marcaram a agonia do regime, entre os actos de resistência cuja memória sobrevive pela sua força futurante, está a Crise Universitária de Coimbra desencadeada em 17 de Abril de 1969.

Separam-nos desse dia tantos anos como os que nos separavam em 1969 dos primeiros anos da ditadura. E, no entanto, em 2008 na minha Faculdade, a Faculdade de Economia ( que eu visse , mas possivelmente noutros lugares) os estudantes de hoje espalharam inúmeros cartazes com fotografias que recordam esse dia e essa crise.




Muitas outras lutas honraram estudantes em Coimbra e noutras cidades. Mas esta parece ocupar ainda hoje um lugar especial na memória da Academia.

Num simples texto evocativo não é possível explicar e discutir essa particularidade. Basta hoje homenagear os estudantes de Coimbra de 1969 que fundaram os restos das suas vidas naqueles tempos luminosos.


Para nós, tudo viria a ser diferente depois da crise. É certo que essa diferença não foi a mesma para todos. Mas ninguém escapou dela. Hoje, vemos que aquela juventude, com pouco mais de vinte anos, desferiu, sem verdadeiramente o saber, um golpe de morte no fascismo ronceiro que atrofiou Portugal durante quase meio-século. De facto, cinco anos depois ele viria a esvair-se nesse mesmo mês de Abril, por obra directa dos capitães de Abril e pela força do povo.


Hoje, a Universidade vive um outro tempo, mas não venceu ainda alguns dos problemas que então a atormentavam. Interpretando, em termos discutíveis, um estranho projecto europeu de renovação das Universidades, o Governo português, tem mostrado uma enorme superficialidade no modo como encara os problemas da Universidade, bem como no modo como julga que encontra as respectivas soluções.
Os estudantes de hoje têm outras possibilidades, outros meios e outra liberdade, que nós não tínhamos. Mas têm também outros problemas. Mas principalmente os estudantes de hoje têm como problema maior a injustiça estrutural que inquina o tipo de sociedade em que continuamos a viver.
A geração da crise de 1969 não viu os seus sonhos cumprirem-se por completo, mas viveu um tempo que esteve longe de ser de retrocesso e esteve longe de ser desinteressante.
Em 17 de Abril de 1969 houve janelas de futuro que se abriram. Hoje, continua a ser urgente que outras , que novas janelas sejam abertas.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Os últimos são os primeiros !



Era uma vez um país muito contente, onde aconteciam muitas eleições.


Um dos partidos mais concorrentes, com largas tradições na vida do país, tinha, por isso mesmo, muitos notáveis. Havia os notáveis realmente notáveis, os notáveis de bicos de pés, os notáveis de sindicatos de votos, os notáveis para a mamã e para o papá e até os auto-notáveis, que alguns achavam um tanto narcisos. Dizer que eram muitos é, por isso, pouco. Eram imensos.

Eis se não quando foi dada a tarefa de fazer as listas de candidatos a um famoso ilusionista.Ágil, finório, esperava desembaraçar-se da tarefa com uma perna às costas.


Em breve, se desiludiu. Em poucos dias, os potenciais candidatos aos lugares cimeiros empanturravam irremediavelmente a lista. Se todos pudessem ficar nos primeiros quatro ou cinco lugares numa multiplicação sem fim que deixasse desertos todos os outros, numa espécie de ex-aequo sem limites, tudo se resolveria. Mas fazer descer um notável para baixo do sétimo, ou mesmo ( desgraça das desgraças) abaixo do décimo, seria um verdadeiro terremoto político.

O irrequieto ilusionista andava murcho, não dormia, perdera o apetite, tinha acessos de fúria.

Uma noite , já de madrugada acabou por adormecer exausto e desanimado.
Foi então que lhe apareceu em sonhos um sujeito bem vestido com um fato antiquado, cara rapada e fala subtil, que lhe disse.

"Se os notáveis se convencerem que os lugares de honra são os últimos, estás salvo. Correm para o fim da lista e deixam-te fazer em paz a lista que quiseres."


O nosso ilusionista acordou bem disposto, lembrando-se muito bem do sonho que tivera. Aliás, mais tarde haveria de encontrar ( sem espanto), numa gravura antiga, o sujeito com que sonhara. E pensou para consigo : "Logo vi. Sonhei com o Maquiavel."

Começou então uma lenta caminhada para a nova arte de fazer listas .

Uma exclamação aqui. Uma sugestão ali. Um elogio hoje . Uma palmada nas costas no dia seguinte. Até que, numa reunião que viria a ser decisiva, o ilusionista explodiu:
“ O nosso Partido tem memória. Honra os seus notáveis. Não esquece o que todos lhes devemos. E é por isso que, desta vez, reservámos na lista para eles, os lugares de honra. Os lugares que marcam verdadeiramente uma lista, aqueles que representam os seus alicerces, a solidez que suporta e dá força aos que ficam nos primeiros lugares , frente ao inimigo."

Um dos notáveis, sujeito fino e algo manhoso, teve uma estranha sensação de estar a ser levado que não conseguiu perceber por completo, hesitou ainda. Mas, perante o contentamento beato de todos os outros, acabou por deixar também mostrar-se toda a sua alegria e todo o seu reconhecimento.

Desde então foi muito mais fácil fazer listas : os notáveis acumulam-se nos últimos lugares deixando os topos para os que se assumem como modestos principiantes, aceitando estoicamente o incómodo e o sacrifício de ocuparem os primeiros lugares nas listas.

E foi assim que um ilusionista sonhador inventou um método de conciliar politicamente a muita importância com os poucos lugares.

domingo, 13 de abril de 2008

Os italianos estão a votar

Os italianos estão a votar. Votam hoje e amanhã, para a Câmara de Representantes e para o Senado.

As sondagens apontam para uma vitória folgada da direita na Câmara de Representantes e para um resultado tangencial no Senado. Um Senado de maioria incerta torna o governo frágil, como o mostrou o governo de Prodi que aliás caiu por causa do Senado.



Na primeira página de hoje do UNITÁ, jornal que já foi o órgão do Partido Comunista Italiano, e que agora se pode considerar próximo do Partido Democrático, embora tivesse deixado de ser um jornal partidário, destaca-se um slogan do PD e de Veltroni: " Não mude o governo, mude a Itália".

Em baixo, pode ver-se a primeira página de LIBERAZIONE, órgão da "Refundação Comunista", um dos partidos que compõem a Esquerda Arco-Iris ( ou seja, la Sinistra Arcobaleno). O destaque dado a Zapatero é uma mensagem que procura sublinhar que a Sinistra Arcobaleno se considera integrada na família socialista europeia. Ao contrário, do PD onde se misturam ex-membros do Partido Socialista Europeu e ex-membros do Partido Popular Europeu.

A Sinistra Arcobaleno luta, dentro da Esquerda contra o voto útil no Partido Democrático. Sabe que um resultado fraco a pode enfraquecer ainda mais, politicamente.

O PD sabe que dificilmente ganhará . E sabe que pode ser preciso para viabilizar certas reformas lideradas pela direita. Para não perder essa importância não cortou todas as pontes. Será que essa disponibilidade contida se esgota em si própria ou será que prenuncia uma disponibibilidade mais estratégica que poderia levar a uma grande coligação ? Veltroni diz que não. Mas houve alguns movimentos nesse sentido num ou outro episódio da pré-campanha.

À Esquerda Arcobaleno interessa acentuar o risco de uma grande coligação, o risco da cumplicidade ao centro; e naturalmente que a preocupa uma excessiva deriva centrista do Partido Democrático. Daí que alerte para o risco de uma simbiose entre Veltroni e Berlusconi, ou seja, para o risco de um desalentador VELTRUSCONI.

Revelação de um lixo.


Uma simples contratação indirecta de uma jornalista fez inesperadamente estalar o verniz.


Pela voz autorizada de um dos seus membros a actual direcção do PSD precipitou-se num voo cego para o nada.


E, por detrás da retórica pomposa do discurso, revelou-se afinal um imenso reservatório de lixo político.


Já havia indícios. Agora tem-se a certeza.


Que descansem em paz!

Educação: o fantasma do recuo




O complexo mediático-partidário insiste cada vez mais numa política de jardim-escola. Exemplo maior dessa deriva foi o recente episódio do acordo da Ministra da Educação com os sindicatos.

Embora seja uma das evidências que ninguém contesta, a centralidade do papel da educação na possível melhoria da qualidade de vida dos portugueses, embora deva ser nítida a importância da educação e do conhecimento na dignificação e na humanização de cada pessoa, os porta vozes dos partidos , bem como os jornalistas dos vários meios de comunicação social, concentraram-se assanhados na enorme questão de se saber se a Ministra havia recuado ou não.

A substância do que estava em causa evaporou-se , como se tudo se reduzisse a apurar se a Ministra tinha cometido esse novo pecado mortal: o recuo. E mesmo a Ministra, tendo deixado vislumbrar uma ponta de uma outra perspectiva, em duas ou três frases contaminadas por alguma racionalidade, não foi capaz de dizer simplesmente uma verdade óbvia : perante as circunstâncias e as dificuldades práticas verificadas, no quadro de um processo de negociação, procurando contribuir para um apaziguamento que protegesse o final do ano lectivo, resolvera realmente recuar.
Por que não o disse claramente ? Porque, ao contrário do que procurou parecer, ela própria se deixou influenciar pela síndrome do recuo, perdendo uma boa oportunidade de se prestigiar, o que teria conseguido facilmente, se com simplicidade tivesse reconhecido o óbvio.

Talvez a vozearia mediático-partidária se tivesse excedido num primeiro momento num hiper-exacerbamento, mas rapidamente se calaria confrontada com o risco de cair no ridículo pela infantilidade da sua insistência.

Aliás, ultimamente, o fantasma do recuo parece assombrar realmente a oposição, quando se pode dizer que fora descoberto para incomodar o Governo. Realmente, com amplo destaque para o desesperado Dr. Menezes, a oposição, mediaticamente ampliada, anatematiza primeiro a rigidez do Governo, a sua incapacidade para ouvir críticas. Mas logo que o Governo dá importância a qualquer crítica, corrigindo-se, desaba sobre ele com o estranho fantasma do recuo. É certo que, num plano imediato, com isso é a oposição que se apouca e o Governo que se engrandece, mas, em última instância, é o nível do debate político que se degrada ainda mais.

E o abaixamento de nível do debate político não exprime apenas o agravamento de um juízo negativo da natureza ética, lógica, literária, ou simplesmente do foro do senso comum. Implica silêncio a propósito do essencial com a subsequente omissão da crítica em tudo que vá para além do ruído da propaganda mais superficial. Nem o Governo recebe a ajuda de críticas verdadeiramente centrais e fundamentadas, nem a oposição se adestra no hábito de se ocupar de coisas sérias.

Na verdade, o que mais me espanta nesta histeria em torno do fantasma do recuo da Ministra, é que desde o próprio Ministério, aos partidos políticos e aos sindicatos, todos parecem achar realmente decisivas as particularidades secundárias que ocuparam a agenda nos últimos meses , ao mesmo tempo que todos se omitem quanto ao que verdadeiramente é essencial .

Posso dar um exemplo: todos ribombam a propósito de uma avaliação dos professores que acham imprescindível, mas cujos detalhes os levam ao paroxismo de uma série de brigas cruzadas; nenhum levanta o problema da degradação da formação dos professores, acelerada dramaticamente desde a segunda metade dos anos oitenta.

Ora, a avaliação dos professores, desde que tecnicamente ajustada e eticamente decente, é útil e indutora de justiça relativa no seio da profissão docente, mas, mesmo antes de se saber através dela a extensão das insuficiências do actual sistema de formação de professores, é já hoje evidente que, se queremos resultados duradouros nesse campo, temos que modificar estruturalmente todo o sistema de formação de professores. Mudança tanto mais necessária quanto só pode ter sentido se tiver como vector básico uma estratégia exactamente oposta à deriva iniciada com o cavaquismo e desde então não revertida.
E, reparem, não estou a pensar numa retórica de mudança, destinada principalmente a mascarar uma tentativa de diminuir as despesas públicas com a educação. Trata-se realmente de uma reforma de fundo e não de uma série de mudanças que valorizem a abertura de oportunidades ao negócio privado com a educação. Trata-se de procurar uma mudança que seja útil aos portugueses e ao país e que corresponda a um desígnio de renovação cultural e civilizacional.
Não se trata de uma transacção que equilibre o que deve ser com o que convenha aos proprietários de colégios ou a interesses de proselitismo de qualquer religião. A liberdade de criar colégios privados está garantida, a liberdade de se criarem colégios com base em qualquer instituição religiosa deve estar garantida. Garantida a liberdade, mas não o financiamento público. Esse deve tender a concentrar-se no que realmente é público, sob a tutela democrática legítima.
Mas ao Estado cabe praticar uma estratégia de valorização do ensino público. Na verdade, a educação não é principalmente um serviço. É muito mais do que isso: é,essencialmente, um pilar estruturante do Estado democrático, um vector matricial da nossa cultura e da identidade do povo português, o que é ainda mais decisivo, em contexto de globalização. Esquecer isto pode convir a interesses privados ou confessionais, mas não está de harmonia com o interesse nacional, com os direitos dos cidadãos no seu todo e enquanto tais, com as obrigações de um Estado democrático.Trata-se de um desafio difícil, mas sem o enfrentar ficar-nos-emos pelo eterno: "faz que anda mas não anda".

Mas que importância tem tudo isto perante essa dúvida angustiante e central: "Afinal a Ministra da Educação recuou ?"

sábado, 12 de abril de 2008

À procura do coelho perdido


Era uma vez um coelhinho muito malandro. Os coelhões mais velhos seduzidos pelo seu verbo saltitante acharam-lhe piada e levaram –no para a Assembleia da República. O coelhinho cresceu, ganhou gorduras, foi gastando a surpresa que costumava rodear o seu verbo fácil, até que um dia foi surpreendido por dois, três, quatro coelhões, que com um bocejo de tédio responderam a uma das suas brilhantes ideias.
Uma ligeira névoa de preocupação começou a toldar-lhe a tranquilidade. Eis se não quando, o coelhinho, já um pouco coelhote, soube de uma presidência de Câmara Municipal que se lhe vinha oferecer como um alvo fácil.

Os habituais detentores da maioria camarária vinham sendo sangrados de eleitores, ano após ano, os que costumavam vir logo após apresentavam para candidato um quase Zé-ninguém sem notoriedade, sem fortuna, aparentemente desprovido da aura política de uma boa cepa. No que julgou ser um golpe de asa, o coelhote deu um passo em frente.

Em breve, se sentiu saboreador de vitórias. Foi mesmo à televisão numa pose omnipotente e voraz que reduziu os seus concorrentes à condição modesta e penosa de irremediáveis vencidos antecipados. E o desejado dia da vitória anunciada irrompeu irresistível e solar como se também ele celebrasse a glória de um coelhote já sem limites.

Porém a bruxa má do destino (ou se preferirem, a deusa fugidia da política) acordou mal disposta. Num golpe que terá sido de vassoura, seco e certeiro, evaporou radicalmente a vitória do coelhote, que assim se viu de novo reduzido ao papel triste de modesto coelhinho, apenas loiro.

Amargurado, mas decidido, resolveu inventar para si um deserto político adequado. Afivelou uma pose grave e compassada, passando a falar mais lentamente, e cometeu a ousadia de uma rentável carreira empresarial que gostosamente foi percorrendo, enquanto ia aferventando pacientemente umas ideias. Ia assim preparando o dia em que, caminhante temperado, sairia do deserto para modestamente colher o espanto dos mortais, ascendendo assim, de uma vez por todas, ao solene patamar de coelhão.

Descansava ele num oásis de circunstância, quando rebentou a notícia de que um João Semana vindo do norte metera no bolso um fogoso político ainda que ligeiro, que há muito dava cartas na capital do Império. O coelhinho (agora coelhote) teve um baque, sentiu mesmo um frémito de luz nos recantos da alma. Ao longe, bruxuleou mais forte a hipótese de um destino.

E quando, passado algum tempo, o servidor de Esculápio se começou a emaranhar numa floresta de dislates, distribuindo gaffes como quem come tremoços, sentiu que a sua hora se começava a aproximar.

Por intermédio de uma tia segunda, do lado de sua mãe, que era cunhada de um primo direito de um apresentador de uma estação televisiva, conseguiu ser chamado a um programa de grande audiência, para dizer de sua justiça.

Sentou-se com a pose, a um tempo decidida e humilde, de quem aprendeu com a vida, compassando as respostas com uma generosidade, só ao alcance dos grandes espíritos. Era um pensador tranquilo que oferecia aos mortais a luminosidade forte das suas propostas.
Mas quando das profundezas da sua alma política julgava retirar as sólidas ideias que construíra no deserto, já temperadas pelo avisado senso comum da experiência que julgava robusta, ia de facto debitando, embora gravemente, a mais previsível vulgata neo-liberal, que uma certa lentidão sorumbática tornava quase patética.

Passado o primeiro momento de surpresa o entrevistador revelou-se abismado. Via à sua frente um coelhinho, tirando-se a si próprio de uma inesperada cartola, pretendendo anunciar sem ironia o que seria este país, quando o actual governo se afundasse de vez. Tendo-se desembaraçado, entretanto, do antes luzidio João Semana, ascenderia ele finalmente ao doce palácio do poder. Quiçá assombrado com o que ia ouvindo, o locutor ousava de quando em vez a sombra de uma objecção. Como um elefante numa loja de brinquedos o coelho atrevido passava o país a ferro.

Como um “talon” da política o coelhinho ameaçava emagrecer o Estado, esmagar os impostos, minguar drasticamente as contribuições para a Segurança Social. As frases saiam-lhe fogosas e leves. Mas se estivesse a ouvir, o país estaria a tremer.

O coelhote afagava com carinho os pobres capitalistas a quem prometia libertar da pesada exploração a que os vorazes trabalhadores os submetiam. Quebraria energicamente os seus luxos desmedidos e os privilégios insuportáveis que fruíam á custa do sacrificado patronato ao qual prometia afagar carinhosamente a magreza dos seus lucros, quebrando-lhea doce tristeza que sofria no aconchego das suas quintas e mansões . Seriam finalmente livres para arrastarem o país para um progresso sem fronteiras. O Estado ficaria reduzido à sombra de um velho esqueleto liberto desse anacronismo opressor que é o de proteger os desfavorecidos, beliscando ao de leve os benefícios dos poderosos.

O entrevistador atónito atrevia-se numa reserva e logo o coelhinho o esmagava com uma solução linear e simples. Tão simples que ninguém ousara ainda lembrar-se dela. Garantia com uma segurança quase melíflua que os pobres iam finalmente deixar de sobrecarregar injustamente os ricos, que generosamente se manteriam dispostos ao sacrifício da exacerbação dos seus lucros.

O antigo coelhinho, depois coelhote, era agora um coelhão impante, ameaçando com um sorriso beato todo o país. Na casa cor de laranja a que o coelho pertence , por um momento, hesitou-se entre a crispação e a indiferença.

E quando, no dia seguinte, o Dr. João Semana, o já referido chefe da casa, se olhou ao espelho como todos os dias e perguntou: “Espelho meu, há alguém a dizer mais dislates do que eu ?”
Contra o que há muito vinha acontecendo o espelho desta vez disse: “Há sim senhor: o coelho”.
“O coelho ? Qual o da Europa?”
“Não, homem de Deus, o Passos.”

Aliviado e satisfeito o Dr. João Semana enfrentou o novo dia com uma nova tranquilidade, já que enquanto houvesse coelhos daqueles não estaria sozinho.