sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O demónio dos balcãs


A presidência portuguesa parece ter escapado ao grande incómodo político de ter que enfrentar a independência do Kosovo. Foi afirmado que se chegou hoje a um consenso entre os 27 países da EU, a propósito da solução do problema. Não se menospreze, contudo, a conhecida diferença de posições entre alguns dos países europeus.

Entretanto, a UE parece apostada em seguir os USA no reconhecimento da independência unilateral do Kosovo, tudo indicando que está apenas tentando suavizar o impacte de uma decisão já tomada. Em abstracto, até pode parecer uma posição aceitável: deixar que cada povo se autodetermine, podendo ser independente se o quiser. E sê-lo-ia se fosse essa a posição assumida pela União Europeia e pelos USA, perante todos os casos idênticos. Haveria, é certo, que ponderar as consequências de uma instabilidade generalizada das fronteiras. Mas se fosse uma posição universal, provavelmente, os bons resultados acabariam por chegar alguns anos depois.

Mas, duas razões complicam dramaticamente o problema. Em primeiro lugar, os países em causa têm tido, em regra, uma posição oposta à que agora parecem preferir. Em segundo lugar, fingem desconhecer que a fragmentação da Jugoslávia foi conduzida por alguns países da União Europeia e pelos USA, sem qualquer sentido de equilíbrio e de justiça, aproveitando-se sofregamente da debilidade extrema, por que então a Rússia passava.

Ora, o que, em primeiro lugar, é indispensável recordar é que a Jugoslávia não era um federação de repúblicas etnicamente diferenciadas ou historicamente estabilizadas. Misturava, de algum modo, as duas lógicas, corrigindo-as para enfraquecer relativamente a Sérvia, tornando assim a Federação mais equilibrada. Nessa medida,houve algumas das repúblicas que corresponderam, no essencial, a linhas de demarcação étnica, mas noutras isso não aconteceu.

Nomeadamente, ficaram dentro da Croácia zonas históricas de povoamento sérvio há centenas de anos. Precisamente, as zonas onde os sérvios escreveram páginas duríssimas de resistência, quer ao Império Otomano, quer, mais tarde, aos nazis alemães. Além disso, Tito inventou uma Bósnia –Herzegovina, onde misturou os muçulmanos, enquanto remanescentes do antigo dominador, com sérvios e croatas, de modo a que nenhum dos três povos ficasse em maioria. Compensou a Sérvia, deixando sob a sua égide duas regiões autónomas: Kosovo, com albaneses e Vojvodina , com húngaros. Havia, depois, uma República muito próxima da Sérvia - o Montenegro - e duas outras, relativamente periféricas e, de algum modo, bastante distanciadas da rivalidade surda entre sérvios e croatas - a Macedónia e a Eslovénia.

Este “puzzle” mostrou-se viável. Mas não era difícil prever que havia uma condição indispensável para o manter estável: que as várias Repúblicas se conservassem unidas, dentro de um mesmo Estado.

Não é este o momento para uma interrogação mais funda sobre o significado de ter sido um croata a liderar a afirmação internacional da Jugoslávia e de ter sido um sérvio a dramatizar a sua fragmentação. Mas o que é certo é que, chegado o momento da separação, o caminho mais limpo e de menores riscos não foi seguido.

De facto, ou se respeitavam todas as fronteiras das Repúblicas existentes, o que exigiria uma grande unidade dos principais países europeus, dos USA e da Rússia, garantindo internacionalmente os direitos de todas as minorias; ou se renegociava, sob os auspícios da ONU, o mapa político jugoslavo numa base étnica. No essencial, nesta segunda hipótese, tudo se poderia ter resolvido, ligando à Sérvia as regiões de maioria sérvia, na Croácia e na Bósnia, dando à Croácia as zona de maioria croata na Bósnia e dando independência ao Kosovo. Os problemas da minoria albanesa da Macedónia e da Vojvodina podiam ser resolvidos numa lógica semelhante, se fosse necessário

A primeira solução teria exigido uma forte acção diplomática antes da guerra civil ter atingido limiares irremediáveis. Mas, a segunda esteve sempre a tempo de ser escolhida. O reconhecimento sôfrego da Croácia, com as suas fronteiras históricas, pela Alemanha foi o passo irremediável que precipitou a Jugoslávia no caos.

A Sérvia, mais forte militarmente, só foi contida pela intervenção das potências europeias e pelos USA. A escassa conflitualidade que foi suscitada pelas independências da Eslovénia e da Macedónia, o modo pacífico como recentemente o Montenegro cortou amarras com a Sérvia, harmonizam-se bem com a perspectiva que defendo.
Aliás, se essa via tivesse sido conjugada com um compromisso forte para uma adesão conjunta de todas as repúblicas da ex-Jugoslávia à União Europeia, muita da dramaticidade do rearranjo de fronteiras podia ter sido evitada.

O caminho que está a ser preparado está cheio de hipocrisia e de cínica imposição da lei do mais forte, combinada com a chantagem de Estados ricos para com um Estado relativamente pobre. Quer exigir-se aos sérvios no Kosovo o que se lhes recusa na Bósnia, para já não falar nas regiões de maioria sérvia da Croácia. Não é uma posição justa, pelo que não dignifica quem a vier a tomar. E quem a assumir perderá um pouco mais de credibilidade e de autoridade moral.

Há, é certo, ainda a sombra de Milosevic, morto no decurso de um julgamento que, em vez de conseguir a sua condenação moral e jurídica, se transformou numa inominável farsa, em que se encenaram rituais de justiça, para embrulhar melhor uma simples retaliação política ditada pela lei do mais forte.

E nem me estou a referir à desigualdade de tratamento dada aos beligerantes mais directos. Estou a pensar numa chamada "comunidade internacional" que se pavoneia, julgando como criminosos os políticos dos países mais fracos, mas que se limita a suaves resmungos, perante os responsáveis por não menos mortes, dos países mais fortes.

Milosevic lesou gravemente a Sérvia. A sua política autoritária agravou muito as sequelas humanas de um conflito que o seu nacionalismo estreito encorajou. Mas não foi o único, nem foi ele o inventor do “puzzle” que mais contribuiu para a guerra. E, principalmente, já depois de ter consumado o que de pior teve sua política, foi vedeta internacional, ao lado do Presidente Americano e de outros líderes europeu, tendo então sido exaltado como estadista prudente e possível grande artífice de uma desejada pacificação da Bósnia.

Enfim, hoje, à nossa frente só temos soluções más, por acumulação de erros cometidos por muitos. Não sejamos, pois, hipócritas até ao ponto de fingirmos que só há culpas sérvias para se ter chegado ao beco sem saída a que se chegou. E não sejamos imprudentes, abrindo a caixa de Pandora de uma independência forçada, imposta pelo simples funcionamento da lei do mais forte, mesmo escondida por detrás de montanhas de frases feitas, daquele linguajar diplomático que consegue reduzir a silêncios impenetráveis as mais numerosas legiões de exuberantes palavras.

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