quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Evocação de Eugénio de Andrade


O José Cândido Rodrigues, numa peregrinação por gavetas e papeis, encontrou um poema que tinha escrito aquando da morte de Eugénio de Andrade e enviou-mo.

Como todos os dias são dias de todos os poetas, este é um bom dia para evocar esse grande poeta. Por isso, aqui me associo ao Zé Cândido, antecedendo o poema dele de um outro que escolhi entre os do próprio Eugénio de Andrade, para ambos o evocarmos. Além de duas conhecidas fotografias dele, escolhi uma outra para imagem da atmosfera que se quis induzir, tendo-a ido buscar ao blog Alterius, onde foi publicada por sutenorio em 26/11/2005.



ARREPIO NA TARDE


Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra:um pequeno réptil
no sol súbito e quente de março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ouquatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.

(Eugénio de Andrade)





NA MORTE DE EUGÉNIO DE ANDRADE


Deixas as palavras muito tristes
Muito tão tristes como se perdessem um padrinho
Que em cada manhã as acordava de mansinho

Porque tu dormias com elas ao colo
E com elas tecias cálices e corolas
E desenhavas canteiros
Para as flores de todos os jardins.
E sobre a copa das florestas
Vazavas perfume temperado de harmonias
Enquanto pelas ruas desenhadas em franja
Um movimento, um alarido, uma festa colorida
De rosas, de verde, de laranja e melodias.
Tudo era sempre a força e o feitio das palavras nascidas
Da fúria maternal, suave, de geleia
E tudo calmo e transparentes como lua cheia.

Os engenhos rudes e mecânicos
Atiraste sempre para a outra margem
E para eles olhavas como quem olha
Para a horda bárbara e tirânica
Incapaz de perceber
Ou de saborear
A aragem das palavras a desabrochar

Escolheste um dia de Junho
Um dia suave e morno
Um dia vestido de azul do mar ao firmamento
Para adormecer mais suavemente
Um sono sem retorno.


(José Cândido Rodrigues)

Sem comentários: