quarta-feira, 19 de maio de 2010

Nunca renunciar a um horizonte socialista


O texto que se segue integrou o documento político fundador do clube político Margem Esquerda (ME), instituído no PS pouco depois da viragem de século. No âmbito da auto-reflexão permanente que, julgo eu, está inscrita no código genético da Corrente de Opinião Esquerda Socialista (COES), merece que o recordemos para reapreciar ou aprofundar o seu conteúdo, para calibrarmos com mais rigor as ideias expressas, para as tornarmos mais claras. E o texto que se segue, é tanto mais importante, quanto constitui o cerne da nossa identidade político-ideológica, no seio da constelação socialista. Uma identidade que deu sentido à existência do referido clube e, na minha perspectiva, está na base da criação da COES, na medida em que marcou o sentido estratégico mais fundo da moção”Mudar para Mudar”.

Falo em reapreciar e aprofundar o seu conteúdo, melhorando-o, uma vez que sendo este texto de grande amplitude conceptual, faz sempre sentido procurar melhorá-lo. Melhorá-lo, mas não esquecê-lo ou passar a recusá-lo como matriz da nossa identidade, pois se assim acontecesse seria esta que estaríamos a mudar e não apenas um texto.

Ora, uma mudança tão essencial teria exigido um processo explícito de reexame, que nunca ocorreu. E, é claro, que nem me passa pela cabeça, que se deva sequer pôr a hipótese de que essa possível mutação tivesse ocorrido sem que o tivéssemos querido ou sem que disso nos tivéssemos apercebido.

E, sublinho, isto vale tanto para a Margem Esquerda como para a Esquerda Socialista, já que a nossa corrente surgiu assumindo a continuidade política com o clube. Ora, se ela tivesse querido romper com a identidade referida, essa continuidade teria desaparecido e haveria de ter sido ao menos mencionada se, facto, tivesse ocorrido. Não foi isso que aconteceu. E, falando por mim, eu nunca teria aderido à ES se ela não tivesse sido a continuidade da ME.

Por isso, parece-me que será este território conceptual o primeiro que devemos percorrer para tornarmos ainda mais claros e inequívocos os alicerces político-ideológicos da COES. Eis o texto:




Nunca renunciar a um horizonte socialista


Mais de dois séculos decorreram desde a Revolução Francesa. Não foram, contudo, suficientes para apagar muitas das chagas sociais e humanas que continuam a desafiar o mundo.
A aceleração do tempo histórico e do progresso tecnológico, com a dinâmica de mudança que implica, tornou-se um factor social de uma importância decisiva, surgindo como um desafio que tem que ser enfrentado com uma eficácia muito maior do que aquela que até agora tem sido conseguida. Mas não podemos confundir o relevo da aceleração da mudança com uma certa retórica ilusionista da modernidade, que ignora a complexidade das sociedades actuais, encarando-as numa perspectiva redutora, de índole economicista e anti-humanista, que, em larga medida, se destina a servir de cortina de fumo para ocultar alguns dos problemas mais graves do mundo de hoje.
Se o socialismo se quer afirmar como a juventude do mundo, não pode ficar preso a um passado que já não existe, isto é, tem de saber compreender as novas tendências de mudança das sociedades actuais. Mas, sob pena de perder a alma, de deixar de ser ele próprio, tem de aprender a reencontrar-se mais profundamente com os seus valores históricos. Não pode alhear-se dos flagelos sociais que estão na raiz da sua existência e que se mantêm ou se agravaram. Não pode ficar indiferente aos problemas e às angústias dos traba­lhadores, bem como de todos os que sofram exclusão, exploração ou opressão.
Muitos serão os problemas e os temas dignos de atenção que elegeremos como objectos de reflexão e debate. Queremos, no entanto, desde já destacar duas áreas de incerteza, entre as várias que podiam ser escolhidas, que merecem ser exploradas, para que possamos compreender melhor tudo o que com elas se relaciona.
A primeira diz respeito à fluidez do conceito actual de socialismo, ao carácter discutível do que significa um horizonte socialista como objectivo e como possibilidade histórica que se mantém em aberto.
A segunda diz respeito à dificuldade em aferir com precisão em que medida as grandes linhas de orientação política por que optamos, bem como os objectivos políticos genéricos que assumimos conjun-turalmente em termos programáticos, nos aproximam ou nos afastam de um horizonte socialista. E essa dificuldade aumenta, quando estão em causa medidas políticas pontuais de significado limitado.
Os socialistas têm que ser capazes de fazer sempre uma dupla ava­liação das suas orientações e das medidas políticas que preconizam. Têm de saber em que medida elas perturbam ou melhoram o fun­cionamento corrente da sociedade, em que medida elas são harmo­nizáveis ou contraditórias com a procura de um horizonte socialista e com a trajectória a percorrer para dele nos aproximarmos.
Isso nunca foi fácil, mas o desmoronamento do modelo soviético tornou possível uma consciência mais aguda da sua dificuldade. Não porque ele tenha atingido directamente os partidos da Internacional Socialista, mas porque tornou evidente que o problema da alternativa ao capitalismo deveria ser colocado em termos mais complexos do que até então.
De facto, mesmo não tendo inscrito no seu código genético o sonho
do assalto a um Palácio de Inverno como acto fundador e purificador, era dominante na Internacional Socialista a valorização da ideia de uma espécie de "grande noite eleitoral", que abrisse abruptamente um novo tempo, em que os socialistas, a partir do governo de um único país, aí construíssem democraticamente uma sociedade dife­rente.
A Internacional Socialista recusava-se a caminhar para o socialismo, sacrificando a democracia. Na sua identidade era central a ideia de que só em democracia era possível alcançá-lo. No entanto, ainda que difusamente, encarava a falta de democracia como o problema essencial do modelo soviético,
Com o seu desmoronamento, todavia, ficou claro que o modelo soviético não foi um simples atalho histórico, penalizado apenas por ter escolhido uma rota que sacrificou a democracia para atingir mais depressa uma sociedade justa. Foi, sim, um colectivismo produtivista de Estado, globalmente diferente do socialismo, que em vez de con­duzir rapidamente ao um futuro libertador, deixou milhões de seres humanos divididos entre uma miragem que afinal nunca existiu e um passado a que é impossível voltar.
Hoje, é mais fácil perceber que não será o simples exercício do poder político num determinado Estado que, por si só, nos aproximará deci­sivamente de um horizonte socialista.
Hoje, é mais fácil perceber que a actualidade da ideia socialista se radica na possibilidade do socialismo ser um horizonte qualificante da democracia e da civilização humana, para o qual a sociedade no seu todo caminhará ou não, com naturais sobressaltos e retrocessos, no quadro de um processo prolongado, ainda distante do seu termo. Horizonte que não deve confundir-se com um destino pré-defenido, já
que é antes uma referência que sustenta uma ambição reformadora radical, fundada num projecto aberto sempre em evolução. Uma ambição guiada pelos valores do socialismo, em permanente cons­trução crítica no quadro de uma atitude prospectiva, realista e incon­formada, que não aceita que o capitalismo seja o fim da história.
Renunciar a esse horizonte é perder a identidade socialista. Valori­zá-lo é uma opção que está longe de estar balizada e caracterizada, podendo dizer-se que estamos perante um espaço problemático e não perante um conjunto de orientações reflectidas e testadas.
Está em causa um processo de amadurecimento social que deve contar com um importante protagonismo do Estado, mas que está muito longe de lhe ficar circunscrito. A evolução do tecido social terá de conjugar-se com o exercício do poder político, numa sinergia vir­tuosa. A valorização do Estado como expressão plena da política é uma prioridade que implica uma renovada atenção sobre as suas crescentes responsabilidades reguladoras e uma rigorosa dinâmica reformadora da administração pública. Mas não pode dispensá-lo também de um novo tipo de relacionamento com as dinâmicas soci­ais de base, que constituem uma vertente insubstituível do desen­volvimento social, assumindo-se como instância de permanente encorajamento e de apoio crítico às suas iniciativas.
Neste contexto, percebe-se que a estatização dos meios de produção não seja encarada como etapa necessária de uma evolução socia­lista. Ficou mais nítido o seu carácter instrumental, bem como os riscos de, por si só, poder não conduzir aos objectivos que a justifi­cavam, ou contribuir mesmo para nos afastar deles.
No entanto, também não parece sustentável querer substituir um fundamentalismo económico de pendor estatizante, por um funda-
mentalismo privatizador, radicado no neo-liberalismo como numa ver­dadeira religião do mercado.
Na época da globalização, em que é visível o seu carácter contra­ditório, temos de assumir a incomodidade de um pensamento crítico. Um pensamento capaz de combater as ideias feitas, mediaticamente inculcadas peio aparelho ideológico-cultural dominante, como se re­presentasse a verdade definitiva. Um pensamento crítico que nos impeça de confundir a realidade com aquilo que gostaríamos que ela fosse, mas que esteja longe de aceitar aquilo que existe.
Por isso, em cada conjuntura, devemos procurar perceber sempre qua! é a força propulsora principal, qual é o obstáculo mais difícil. Estarão estes aspectos devidamente ponderados nas questões que ocupam a ribalta das nossas ideias? E estarão estas irremediavel­mente ancoradas na nossa experiência histórica, correspondendo, por isso, a uma sociedade que já é passado? Por que outras vias de­veremos prosseguir? Com base em que novas referências? Alguma vez transformaram os homens a sociedade, a não ser a partir da va­lorização das questões que lhes ocorreram? Se não devemos va­lorizar as questões que refiectidamente nos ocorrerem, que questões devemos, então, valorizar?
Sem nunca renunciarmos a uma atitude anti-dogmática, poderemos orientar-nos melhor nesta multiplicidade de interrogações, se con­frontarmos sempre o presente com o horizonte socialista que nos identifica e que ambicionamos como futuro.
É, por isso, preciso que estejamos atentos às transformações do ca­pitalismo, sabendo que elas podem, eventualmente, conduzir a pro­fundas alterações da própria natureza da luta política, sem nunca cairmos na ilusão de que o capitalismo se extinguiu.
Seria de facto a suprema ironia que os socialistas renunciassem a combatê-lo, com a alegação de que já não existe, precisamente num tempo em que os seus arautos decretaram a sua irreversível vitória histórica.
Isto não significa que encaremos o capitalismo numa óptica simplista e redutora, que menospreze a sua complexidade, os seus aspectos ambivalentes, as suas virtualidades de dinamização económica. Significa antes, que o consideramos incapaz de eliminar a pobreza e a marginalidade, de suscitar a felicidade humana e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, generalizada e sustentadamente, dado o facto de ser predominantemente predatório e desumanizante. Nesta medida, é decisiva a nossa capacidade para revitalizar os va­lores socialistas da liberdade, da justiça, da igualdade, da frater­nidade, da solidariedade, do respeito pela natureza, da cooperativi-dade, da criatividade cultural, da inovação organizacional, subme­tendo-os a uma permanente reactualização crítica, que os complete e enriqueça. No fundo, será talvez um caminho para encarar o socia­lismo como um humanismo que possa aproximar o mundo de hoje da felicidade, livrando-o dos pesadelos colectivos que continuam a povoá-lo.
Por tudo isto, o território conceptual assinalado pelo leque de hipóte­ses e de interrogações que acabamos de percorrer constituirá um dos principais objectos da nossa atenção e da nossa actividade.

6 comentários:

Henrique Dória disse...

Caro Rui
Acho notável a tua persistência em acreditar que o PS alguma vez assumirá um programa de esquerda! O PS é, claramente um partido de centro direita, e a grande maioria dos militantes é aí que o quer. Grande parte dos que votam nele, votam num mal menor. Assim como grande parte dos que votam no Bloco e no PC.
Na verdade,o nosso espectro político é esquizofrénico: tem dois partidos do centro direita,o PS e o PSD, que aparentemente se guerreiam mas têm políticas muito semelhantes. Deveriam unir-se.
À esquerda, não há partidos, mas duas seitas religiosas que são o Bloco e o PC, que continuam a acreditar na missão salvífica da classe operária.
É importante que todos os homens livres de de bons princípios se unam e construam o partido de esquerda que não existe. Chamar-lhe-ia PARTIDO DA JUSTIÇA, em homenagem a Rawls.
Por mim já deixei de gastar cera com o fraco "defunto" que é o PS. Gostaria de ver a Margem Esquerda a desamarrar da margem direita.
Um abraço.

JGama disse...

Foi oportuna a postagem do Rui.
O problema maior não será apenas a invenção de um verdadeiro partido de esquerda. O nome "partido da justiça" nada acrescenta a um "partido socialista" a não ser a homenagem a Rawls. No meu entender, um problema ainda mais importante é o de pensar um partido de esquerda (nacional e europeu)que, assumindo o desafio de se colocar na luta política como o actor principal na construção de uma sociedade mais justa, embrião de uma alternativa ao capitalismo, não se afaste do horizonte do poder político, palco onde poderá ter alguma eficácia quanto à competência transformadora da realidade. No espectro político português qual o espaço partidário que mais se aproxima destas condições? Sugiro aqui um exercício mental: apesar de todos os defeitos, irradiem completamente do espaço político português o PS e vejam o que lhes resta como soluções salvadoras.

Rui Namorado disse...

Caro Henrique:

É sempre bom ouvir os amigos. Especialmente, quando exibem uma bela energia de esquerda.

Mas fiquei algo espantado, quando traduzes a tua laboratorial pureza ideológica, evocando um dos ícones da direita mais subtil e quando escolhes como designação de um hipotético partido redentor um nome já usado noutras paragens por partidos retintamente de direita. Veja-se o caso da Turquia.

Aliás, pareces ignorar a velha máxima da luta política:" Se aumentares muito o campo dos teus inimigos , nunca conseguirás vencê-los".

Um abraço.

Henrique Dória disse...

Caro Rui
Estranho que consideres Rawls a direita subtil.Não é a minha opinião.Alguém que defende a rede para que ninguém caia abaixo de determinado nível que pode subir constantemente, alguém que defende a função social da empresa ( tinha piada ver o PS a pôr isso em prática) nunca me atraveria a classificá-lo de direita face ao PS que temos.Quanto ao nome do artido não me parece importante o que sucede/u na Turquia. Parece-me mais importante considerar que a Justiça é a primeira das Virtudes gregas, e é algo de que necessitamos como de pão para a boca.
A Justiça começa por um mínimo de desigualdades. Está mais que provado que a busca da igualdade ( que nunca existiu nem existirá, felizmente, já que como indivíduos somos todos diferentes, e socialmente também é desejável que sejamos diferentes, até nos rendimentos, pois a ambição e o espírito empreendedor de alguns, canalisado em benefício de todos, é essencial ao progresso, como está demonstrado)a todo o custo leva ao totalitarismo e à estagnação.
Para mim entendo suficiente que não sendo permitido a ninguém ganhar mais de 20 vezes do que o salário mais baixo, isso seria uma boa amplitude para a desigualdade.
Finalmente: não se trata de multiplicar inimigos mas de desejar o melhor e a verdade.Sem preconceitos nem medos.Com alguma esperança lúcida.
Um abraço.

Rui Namorado disse...

Caro Hnerique:

O problema não está numa adequação da realidade social a um leque de ideias generosas, está na mudança do tipo de sociedade.

Não é a maldade dos homens a causa essencial das injustiças que sofremos, mas sim a inadequação estrutural e crescente do capitalismo, como sistema compatível com um mínimo de decência na vida em sociedade.

Aliás, estou até convencido de que o próprio Rawls concordaria comigo, quanto aos termos e ao modo como me referi a ele,uma vez que certamentenão se sentiria motivado para parecer o que não era.

Henrique Dória disse...

Caro Rui
Volto à nossa "conversa".
Na sequência de Rawls, mas indo mais além, tenho para mim que as desigualdades são desejáveis desde através delas se obtenha um nível de bem estar geral superior ao que se obteria com a igualdade.
Confesso que estou convencido que Rawls, como pensador honesto que era, não desdenharia esta formulação.
Mas isto é ainda muito vago, e creio que a Justiça e a democracia se controiem não só na vida pública mas na vida empresarial.Esta tem andado totalmente arredada da democraci.Os pensadores de esquerda são avessos a pensar nela, mas é sobretudo a ela que a democracia deverá chegar.
Aí creio que são essenciais dois princípios, como o mostrou a actual crise:
a)Participação relevante do Estado em todas as empresas económica e socialmente relevantes.
b)Participação dos trabalhadores em decisões essenciais para a vida das empresas:1º grelha salarial.2º destino ds lucros 3º deslocalização.
Um pedido: permites-me que coloque esta nosa conversa no odisseus?
Um abraço