"A Europa já foi o rosto da aventura, uma fronte de curiosidade, rasgando o desconhecido. Sonhou-se centro do mundo e horizonte, para onde haviam de convergir todos os futuros. Isso não impediu que, uma e outra vez, os deuses da guerra a percorressem loucos. Parecem agora ter adormecido, embora aqui e ali, de quando em vez, ameacem despertar, lembrando-nos que existem.
Mas se a olharmos em contraste com os sonhos dos que a têm carregado penosamente nos seus ombros, um século atrás de outro, ficaremos transidos pela ausência dos futuros que os de baixo modelaram com o seu próprio sofrimento, pagando por eles o preço completo das suas vidas. Por isso, para lá das luminosas avenidas das grandes metrópoles, para lá das auto-estradas onde velozmente se caminha para ignotos destinos, para além das catedrais onde se percebem os rostos dos séculos passados, há um murmúrio profundo de incomodidade que algumas multidões têm trazido à superfície em muitas praças europeias. Várias Europas procuram caminhos entre as cidades do velho continente. Nem sempre se vêem umas às outras, nem sempre se conhecem, nem sempre se suportam. Há, em primeiro lugar, a Europa das sinfonias, das subtis cantatas, dos violinos que atravessam os sonhos como pássaros azuis; a Europa das cores, das formas que vão para além da natureza, que são uma nova natureza; a Europa das palavras construtoras de poetas, com mantos de melancolia e assomos de tristeza, com explosões de alegria e sede de futuros; a Europa da curiosidade e do conhecimento; a Europa do pensamento que amanhece através de todas as muralhas. A Europa como alfobre de utopias. Há depois a Europa dos braços cansados, dos íngremes caminhos do esforço e do trabalho, dos dias fechados pelo pão que falta, das alegrias ligeiras e contidas dos que temem pelo que há de mais simples em qualquer futuro. Uma Europa que se mistura com os novos europeus saídos da desgraça, em busca de uma pequena luz de esperança.
Há ainda, como vizinha desta, uma pequena Europa que se tem vindo a prometer nas praças de algumas cidades. Uma Europa jovem a quem confiscaram o futuro e que pode ser um novo sopro de vida nas avenidas velhas das ideias mortas. Algumas outras Europas tacteiam destinos nas palmas misteriosas das sua mãos; dispersas e avulsas; generosas; talvez assustadas.
E há depois a narrativa de ferro da Europa Institucional; uma história de políticos dia a dia mais previsíveis, menos familiarizados com a respiração de novos tempos, mais limitados por rotinas burocráticas; uma história de senhores do dinheiro que se escondem por detrás de alegados automatismos económico-financeiros que circunspectos académicos, falsamente, garantem como espelhos fiéis da ciência. É por isso necessária uma nova narrativa europeia, onde realmente caibam todos os caminhos que os povos e os cidadãos europeus queiram percorrer, onde as várias Europas cresçam com vigor exercendo liberdade. Uma narrativa que seja a voz de uma Europa que olhe de novo para o infinito, com familiaridade e alegria, por ser o corpo final de história vivida de todos os sonhos e de todos os sofrimentos dos povos europeus".
[ Rui Namorado]
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