Está a ocupar um lugar de relevo no debate inserido no processo da eleição do Secretário-Geral do PS, a questão das eleições primárias como método de escolha dos candidatos do PS nas diversos processos eleitorais que estruturam institucionalmente a nossa democracia. Esse relevo deveu-se principalemnte ao destaque que Francisco de Assis deu a esse tema na sua campanha. O problema têm uma inequívoca importância própria, mas não pode ser separado da necessidade de o PS viver uma metamorfose profunda, em muitos outros aspectos. Isso não impede que ele possa ser objecto de uma reflexão autónoma, mas nunca se deve esquecer que ele está muito ligado a outros aspectos da vida do partido.
Várias foram as vozes que se levantaram dentro do PS a esse respeito, ao longo dos anos. Por mim, participei em algumas das iniciativas pioneiras, envolvendo a questão das primárias. Iniciativas essas que em conjunto com outras ajudaram a chegarmos ao ponto onde estamos. Por isso vou, a partir de hoje, transcrever extractos ou divulgar textos, em cujo processo de elaboração participei, os quais fazem referência às eleições primárias. Como verão eles envolvem outros temas conexos, o que ilustra o que acima afirmei quanto à ligação desta questão a outras.
Este primeiro Documento, data de Abril de 2002. É um extracto do Manifesto Político que tornou pública a existência do Clube Político Margem Esquerda. Esse Manifesto foi subscrito por 130 militantes do PS, tendo sido o culminar de um processo que demorou vários meses. O Secretário-Geral do PS era então Ferro Rodrigues a quem comunicámos pessoalmente a criação do clube, havendo razões para pensar que a nossa iniciativa contribuiu para a consagração nos Estatutos do PS da possibilidade de existirem clubes de política no interior do partido. Bom, mas vamos ao que mais interessa, eis o documento:
" 5. Renovar profundamente o Partido Socialista
5.1. A geografia eleitoral portuguesa faz com que nada se possa esperar da esquerda, no plano institucional, sem o envolvimento directo e liderante do PS. Isso e a nossa qualidade de militantes deste partido tornam incontornável a necessidade de se reflectir sobre o seu presente, para podermos valorizar o seu futuro.
É hoje quase um lugar comum, dentro do PS, dizer-se que, com ressalva da sua comprovada eficácia como máquina eleitoral, funciona mal. Bastaria isto para que fosse necessária a sua regeneração.
No entanto, atravessamos um tempo em que a própria transformação da sociedade lança novos desafios aos partidos políticos. E, como se tal não bastasse, não é possível esquecer que, ao contrário do que ocorre com os partidos de direita, na esquerda são os partidos os espaços políticos decisivos. Decisivos, não só como instrumentos de disputa e exercício do poder político, mas também como instâncias do combate ideológico.
5.2. Em termos genéricos, podemos dizer que o PS necessita de reestruturar completamente os seus órgãos nacionais, redimensionando-os de modo a que possam exercer de facto as competências que lhes são atribuídas, redistribuindo essas competências e responsabilizando cada um deles pela execução das linhas de orientação traçadas em cada Congresso.
5.3. Por outro lado, o PS precisa de criar uma rede nacional de secções de acção sectorial, pelo menos num conjunto de áreas-chave, de modo a que elas possam exprimir com representatividade posições reflectidas em cada uma dessas áreas temáticas. E assim podem funcionar como focos de propositura e crítica, sem deixarem de poder ser veículos especializados de transmissão aos militantes de informações e explicações da direcção do partido.
5.4. Mas tudo isto pode ser inútil, se não houver também uma mudança radical na filosofia com que se distribuem responsabilidades e se escolhem dirigentes dentro do PS.
Para cada órgão, em cada conjuntura, têm de ser avaliadas as necessidades e os objectivos que estão em causa, devendo as escolhas ser feitas a partir deles, com base, em exclusivo, nas virtualidades demonstradas previamente por cada militante para as atingir. Apenas podem ser tidos em conta a capacidade política, a competência técnica e o nível de eficácia já demonstrado, anteriormente, no desempenho dessas ou de outras funções.
5.5. Não pode, também, deixar de se aperfeiçoar o sistema de designação dos candidatos do PS nos diversos tipos de eleições. Tem que ser sempre efectivo o poder estatutário de escolha dos membros de cada órgão que tenha essa competência. Deve adequar-se sempre o poder das maiorias existentes em cada órgão, à relatividade da sua dimensão. Deve recorrer-se à consulta directa dos militantes das estruturas a que correspondam os candidatos que estiverem em causa, salvo circunstâncias excepcionais devidamente tipificadas.
5.6. Também parece útil estruturar e articular organicamente com o Partido o protagonismo político dos cidadãos independentes que colaboram com o PS, nas autarquias, na AR, no Governo e nos gabinetes de estudo. Poderia começar–se por recenseá-los, para lhes outorgar alguns direitos de participação na vida do Partido.
Em conjugação com isso, poder-se-ia instituir a qualidade formal de eleitor inscrito, a partir da qual , sem os vincular à disciplina do Partido, se concederia, aos cidadãos que se inscrevessem como eleitores do PS, um conjunto de direitos de participação na vida do partido.
Estes direitos seriam alargados aos cidadãos que colaboram com o PS nos termos atrás definidos. Deste modo, seria mais transparente e mais autêntica, mas também mais visível e menos circunstancial, a abertura do PS aos independentes, que aceitam colaborar com ele, mas não estão dispostos a inscreverem-se como militantes.
5.7. Toda esta mutação, que apenas se esboçou em termos muito genéricos, e que só será fecunda se não for parcelar, deverá ter em conta dois outros vectores.
5.7.1. Primeiro, o PS tem de se assumir como instância de animação e de estímulo à participação cívica dos cidadãos na vida pública, bem como ao seu protagonismo associativo e cooperativo, o que significa uma mudança qualitativa do modo como se relaciona com a sociedade civil. Algo aproximado a uma transformação que acrescente ás suas funções actuais, a que não deve renunciar, as de um verdadeiro movimento social, ou de animador de um leque de movimentos sociais.
5.7.2. Em segundo lugar, o PS tem de aprender a aproveitar em pleno as novas tecnologias da informação, impregnando o seu quotidiano com novas rotinas radicadas na sua utilização sistemática, de modo a que não só potencie a sua eficiência organizativa, mas também para que seja para os seus militantes uma experiência viva de modernidade.
5. 8. Deste modo, o PS precisa de uma renovação que vise o aumento da sua eficácia, dando-lhe maior consonância com as mutações civilizacionais, tornando-o mais visivelmente fiel à sua razão de ser histórica, reforçando o seu papel na qualificação da democracia em Portugal, impregnando melhor o seu quotidiano por uma ambição utópica.
Só assim poderemos solucionar realmente os problemas que hoje se colocam á eficácia do PS como organização, à credibilidade dos seus eleitos como expressões do poder político democrático e à profundidade da sua inserção na sociedade portuguesa.
5.9. O PS é hoje um partido que abrange quase 40% do eleitorado, o que implica necessariamente uma significativa heterogeneidade política. Essa heterogeneidade é, em si mesma, uma enorme vantagem política, uma riqueza que não pode ser desperdiçada.
O pluralismo interno não é, por isso, apenas o corolário de uma atitude democrática que se inscreve no código genético do PS, é uma condição para aproveitar plenamente toda a energia política existente dentro do conjunto dos militantes do partido.
Mas para que o pluralismo espelhe com fidelidade e transparência a diversidade de correntes internas, é indispensável que elas se revelem e estruturem, para que não se caia numa teia de equívocos, em que se disfarça a lógica dos pequenos grupos de pressão, recorrendo a uma imaginária valorização de diversidades que nem foram reveladas, nem clarificadas, nem testadas. Teia de equívocos que apenas tem servido para que um outro camarada seja sucessivamente cooptado para lugares de liderança, com base numa vaga sugestão de que representa uma corrente de opinião interna que nem se assumiu como tal, nem os escolheu. "