sábado, 5 de março de 2011

ENCONTRAR AS PERGUNTAS CERTAS


O que tem acontecido nos últimos anos, no plano económico e financeiro, sublinha uma verdade que os chamados desfavorecidos (podem chamar-se, com mais propriedade, explorados e oprimidos), sejam eles muito, pouco ou nada jovens, têm vindo a sentir na pele: o modo como está organizada socioeconomicamente a sociedade, faz com que ela não consiga produzir riqueza sem concomitantemente gerar pobreza e exclusão.

Por isso, o que será verdadeiramente decisivo para o aproveitamento da energia política, que já transparece do processo conducente à série de manifestações anunciadas pela geração, alegadamente à rasca, e pode revelar-se ainda muito maior, é a medida em que sejam capazes de colocar na agenda política as perguntas essenciais, abrindo com elas uma nova geração de políticas e sugerindo a possibilidade de um novo ciclo histórico.

Por exemplo, pode colocar-se de novo na ordem do dia um reexame sobre a legitimidade ética e a viabilidade política de se continuar a entregar a entidades privadas as decisões de investimento e de alocação de recursos financeiros, a partir do funcionamento do dogma da propriedade privada dos meios de produção. De facto, não deve esquecer-se que, no essencial, o capital é o trabalho anterior cristalizado, abstracto portanto, e é a ideia de que esse tipo de apropriação é inerente à lógica de mercado, a qual é olhada como a única que pode presidir, eficazmente e com um mínimo de efeitos colaterais perversos, à organização de uma sistema económico complexo numa conjuntura de modernidade. E que, portanto, está na base do tipo dominante de propriedade dos meios de produção actualmente vigente. As pessoas que desempenham o papel de capitalistas são investidas de um poder, cuja lógica está na ideia de que é esse o melhor caminho para beneficiar toda a sociedade e não como um benefício pessoal para quem o detém. É claro que as vantagens pessoais que suscita essa qualidade são um motivo forte para que os seus beneficiários queiram perpetuar esse tipo de estrutura, mas não é essa ambição o cerne da sua legitimidade.

Por isso, seria um enorme avanço na luta por uma sociedade nova se das manifestações saísse ao menos a dúvida quanto ao acerto em se insistir num tipo de sociedade que manifestamente não consegue desatar os nós que ela própria criou. Sonhos passados que se transformaram em pesadelos, caminhos que durante décadas se prometiam virados para o futuro, mas que se revelaram ser atalhos para lado nenhum, não podem ser encarados como certificados de eternidade para o tipo de sociedades em que temos vivido nos últimos séculos, até porque se desenham no horizonte limites objectivos à sua sobrevivência que só o fanatismo conservador, a estupidez mais bronca ou um verdadeiro egoísmo geracional podem ignorar. Pelo contrário, as rotas ilusórias antes percorridas fornecem-nos um vasto catálogo de erros e equívocos que não devem ser repetidos, que só voltarão a ser repetidos se a experiência histórica for desprezada.

O pior que podia acontecer é que destas novas multidões que se prometem ficasse a ilusão de que há algures um déspota esclarecido, ou um grupo maior ou menor de déspotas esclarecidos, capaz de na esteira de uma qualquer alquimia política, de onde resultasse uma panóplia de medidas miraculosas, trazer uma felicidade imediata para todos. Pelo contrário, tudo será diferente se começar a ser compreendido que só numa sociedade nova perderá razão de ser a angústia que os aflige, mas que ela será bem menor logo que realmente estejam a trilhar um caminho que os possa levar até ela; se for compreendido que a mudança que se precisa é um salto de uma dimensão imensa que só pode ser dado se, principalmente, a sociedade se puser em movimento, obrigando o Estado a uma sinergia virtuosa rumo a um mesmo horizonte. Um caminho tão ambicioso e tão necessário não se percorre em pouco tempo, mas quanto mais tarde começar a ser percorrido menos provável é que alguma vez o venha a ser.

Enfim, o futuro como horizonte só existirá se os que vivem os actuais presentes não deixarem que lho confisquem. Por isso, em suma, o que de melhor podem oferecer a si próprios os manifestantes que irão para as ruas, a si próprios e a todos nós, é começarem desde já a recuperar o futuro. Um futuro que as sórdidas sociedades actuais tão lamentavelmente têm esvaziado.

4 comentários:

Unknown disse...

Caro professor,

Ao ler as suas palavras leibrei-me deste pequeno (grande) conceito de dominação, que conheci nas minhas aulas de Teorias Sociológicas:
A dimensão ideológica da dominação, pode ser definida como a capacidade de uma classe ou grupo social condicionar os espíritos e as práticas a ponto de levar os indivíduos a aderir a modos de pensar que inviabilizam a crítica social e a reproduzir os modos de fazer estabelecidos, como se fossem os únicos possíveis (a lógica do “pensamento único”).

Reinventar o futuro, ou, como diz, recuperá-lo, requer bem mais do que um corte da copa de uma árvore. Pois já vimos pela nossa história que não é por se cortar a copa de uma árvore que as suas raízes são arrancadas.

Tenho dúvidas quanto a este novo movimento. Parte de mim quer ir para a rua, quer erguer os braços. Outra parte está mais trémula: Será ou não este um verdadeiro mote? Será ou não mais uma mera busca de protagonismo?
Sacudindo, digo: Na vida temos a obrigação de lutar, mas não de vencer.

Um abraço,
João Matos

Rui Namorado disse...

Também tenho dúvidas.

As emoções de revolta são inequivocamente justas, mas o modo como têm sido colocadas as questões parece-me potenciar o risco de falsas respostas.

Anónimo disse...

As sociedades se formaram sem ambiguidades dessa natureza. Elas se formaram e pronto.

Estar com Deus e o Diabo ao mesmo tempo é o mesmo que se não está com alguém.

Os risco individuais por vezes superam os colectivos.

Há que pensar, reflectir e fazer análise. Depois seguir o caminho que se julga certo.
Por que isto, meus amigos, não vai lá com dúbias palavras.

De o "Catraio" com amizade.

Rui Namorado disse...

Saúdo o regresso do misterioso "Catraio", como sempre muito objectivamente subjectivo, o que sendo uma característica, não é um defeito.

Mas sempre pergunto:se isto "não vai lá com dúbias palavras", com o que vai então ?