segunda-feira, 26 de maio de 2008

Combustíveis, cereais e capitalismo


Se fosse possível assistir ao modo como tem ecoado em Portugal, a crise dos combustíveis, com a serenidade com que se assiste a uma boa peça de teatro, talvez nos fosse evidente o carácter trágico que têm assumido os falares veladamente assustados dos mais qualificados declamadores das receitas tradicionais da ideologia económica dominante.

Perante prenúncio sérios, traduzidos principalmente na escalada dos preços do petróleo e dos cereais, de que a máquina mundial de concentração das riquezas e de disseminação da pobreza parece em vias de mais uma brutal aceleração. Perante a alta probabilidade de que o preço de um escandaloso luxo e de privilégios, para uma fatia muito estreita de cidadãos, seja uma cadeia incontrolável de miséria, fome e explosões sociais. Explosões sociais que podem ser desespero em carne viva, desespero daqueles a quem roubaram o futuro e que pode destruir as sociedades que temos.

Perante tão trágicos anúncios de sofrimento e tempestades, pateticamente, os angélico oráculos do sistema, quase com os olhos em alvo, piedosamente invocam o deus da concorrência para que tudo venha remediar, como se estivesse ao alcance de tão frágil divindade, um tão hercúleo cometimento.

Podem os cidadãos sucumbir ao peso de dificuldades crescentes, podem as empresas ser sugadas pela sede insaciável dos petroleiros, podem acumular-se os sinais de tumultos de desespero, entre os mais pobres dos pobres, que os sentados nas cadeiras do poder não conseguem ir mais longe do que proclamar a força do mercado, como reservatório infalível de todas as esperanças.

Entretanto, esmoendo como jibóias o doce sabor dos lucros, os violinistas da especulação, confraternizam com seráficos banqueiros, com os sôfregos petroleiros, modorrando todos docemente numa sesta tranquila. Uma sesta que se limita a fruir a aprazível sombra das sacrossantas leis do mercado, pelas quais, aliás, a concorrência e a competitividade disseminam um piedoso incenso.

É nessas alegres cavaqueiras que se riem dos amanuenses da política que cumprem, como se fossem tábuas de uma religião científica, as suaves leis do capitalismo. Leis que, aliás, cumprem por completo a sua generosa função: enriquecer os ricos, tornando os pobres mais pobres, de uma maneira tão subtil que os convença de que a riqueza dos ricos nada tem a ver com a pobreza dos pobres. Mas que, evidentemente, vão continuar a mostrar uma completa inutilidade, como instrumentos susceptíveis de resolver os problemas dos povos, dos países, dos cidadãos.
Leis que, paradoxalmente, os seus beneficiários tratam com a desenvoltura de quem, conhecendo-lhes o sentido e a razão de ser, as manipula e relativiza como simples instrumentos, enquanto alguns dos que se julgam adversários da finalidades delas, as veneram como se fossem o mais objectivo acervo de evidências e verdades científicas que alguma vez foi conhecido entre os homens.

Os que parecem esquecidos do que queriam (e julgavam) ser, para se deixarem aprisionar pela servidão do imediatismo quotidiano, apenas se preocupando em gerir honestamente as sociedades que temos, ajoelham perante os novos deuses de uma nova ciência oculta que, arvorando-se em indutora de enriquecimento, mais não consegue do que ir fabricando um pequeno número de ricos à custa de uma enorme expansão de pobres.

E, cada vez mais assustados, começam a perceber que esse capitalismo, que se confessou racional, progressista e liberal, prometendo a exuberância das riquezas como primeiro passo para uma partilha posterior, sucessivamente adiada, é no essencial um implacável predador.
De facto, é como se estivesse, na sua própria natureza, ser um permanente exagero de si próprio, numa desfilada que a cada momento se acelera. Por mais que os governos do mundo se prestem como cordeiros a sucessivos sacrifícios, nunca satisfarão a sede desse deus sem limites.

É por isso que os aplicados sargentos da governança parecem, em todos os níveis, cada vez mais cegos quanto ao óbvio e cada vez mais esperançados em horizontes vazios.

No caso português, está em curos uma farsa ridícula, que os seus encenadores procuram revestir das cores solenes do drama. Um rasgado ministro perguntou a uma autoridade, ultra-especializada e hiper-neutral, se realmente há cartel entre os petroleiros portugueses, entre os oito hiper-petroleiros que se reuniram numa estranha associação, que apenas os alberga a eles próprios.


Ora, o perspicaz ministro quer saber da boca do sábio regulador, se os oito associados da petrolíssima associação terão combinado entre si alguma coisa que, podendo convir-lhes, não convenha a ao país. Estranha pergunta, difícil resposta...

4 comentários:

aminhapele disse...

Boa malha!

Anónimo disse...

Na política como na vida, dois mais dois são sempre quatro.

Vejamos os números da gasolina:

No dia 29.09.2006 a Gasolina 95 custava 1,228 euros e o petróleo bruto 58 Dólares. Estes 58 deflacionados para o câmbio de hoje dão 71 dólares certos.

Até hoje, a 95 aumentou 1,228 para quase 1,50 euros = +22,1%

Por sua vez, o barril passou de 71 dólares de hoje para 133 = +62 dólares = +87,2%.


O Mercado está louco, como diz o presidente da OPEC, mas aparentemente não a Galp nem outras gasolineiras, porque 22,1% é muito menos que 87,2%.

Claro, a Galp é obrigada a ter stocks estratégicos para um certo número de mesess, pelo que ao vendê-los ganha muito dinheiro, mas tem de os repor ao preço actual e enquanto stocks são activos e não prejuízos, pelo que não perturbam as contas em termos lucros ou prejuízos.

Pessoalmente estou de greve à gasolina, utilizo o menos possível a minha viatura e vou para o trabalho em transporte público, o que me obriga a andar dus vezes meia hora a pé e que é muito salutar.

Nota: a escolha da data referida tem a ver com uma factura de gasolina que ficou entre os meus papéis e que descobri na semana passada..

Ontem a Teodora Cardoso disso nos "Prós e Contras" que o capitalismo provoca as crises, mas também as resolve. Efectivamente, o regime soviético foi uma crise permanente em todos os sectores de produção, menos nos equipamentos para matar seres humanos.

Os americanos costumam inventar coisas sem esperar por subsídios dos Estados regionais ou centrais.
Há um blog curioso que mostra o motor que funciona a água do mar, ou o seu princípio, inventado por um engenheiro americano.
Está em:
http://alutablog.blogs.sapo.pt

DD

Anónimo disse...

Tu és um doce. Sempre foste. Dizes tudo certo mas com um polimento que afaga mais do que irrita. E o capital precisa de ser irritado, precisa de perder as estribeiras, precisa de ficar perplexo. A crispação social está aí e já vem tarde...É preciso que o capital não nos venha maniatar mais ainda. O rebuliço é urgente já que a revolução é impossível. Ela só se faz com armas e essas estão do outro lado. Berra!

Anónimo disse...

RN comenta:

1.Espero que a tua referência não tenha uma conotação diabética.

2. Respondo-te com uma história. Quando Zenha e Cardia ainda estavam politicamente afastados, numa qualquer circunstância convivial, Zenha virou-se para Cardia e disse:
- Você diz coisas terríveis, com um ar suave.
Ao que Cardia retorquiu:
- E você diz coisas suaves, com um ar terrível.