quarta-feira, 28 de maio de 2008

Croquetes de Maio de 68


1. Quarenta anos sobre um evento perdido no emaranhado das memórias são uma tentação irresistível para os empalhadores de notícias.

E assim, perante plateias de ouvintes algo espantados, foram-se espalhando imagens de um Paris de há quarenta anos, com umas tantas pedradas, com polícias e jovens com ar alucinado a correr de um lado para o outro. Fileiras de circunspectos pensadores grisalhos iam sendo convidados para nos dizerem o significado do que tinha acontecido. E assim se foi gerando uma estranha mistura de filósofos e de papagaios, que em conjunto representaram folcloricamente o papel de comentadores.
Lá foram construindo e mastigando as memórias, até que tudo somado se chegou a um insólito croquete de memórias, imagens, ideias e dislates, que reduziram o Maio Francês de 1968 a um insólito croquete de delírios, no meio do qual de quando em vez como um náufrago sem esperança aflorava uma ideia interessante e uma memória relevante.

2. Dito isto, imaginando-me um espectador distante dessas memórias a olhar para a superfície variegada que lhe foi mostrada, com inocente curiosidade, vou descrever a confusão que a superfície mediática poderia ter induzido no meu espírito.


De facto, uns sujeitos já entradotes e umas matronas devastadas pela idade, foram chamados a contar na televisão, a um difuso conjunto de atónitos espectadores e de saudosos recordadores dos velhos tempos, o que na verdade aconteceu em França, em 1968.

E foi assim que uma louraça, ligeiramente passada, misturou a pílula com umas pedradas em Paris , falou do seu médico católico, dos filhos nascidos à razão de dois por ano. Pôs em tudo isso um vago perfume francês e num gesto displicente deu a entender que isto era tudo uma grande choldra.

Um magano de bigode acinzentado falou vagamente nos sonhos dos estudantes de há quarenta anos e acusou os políticos actuais de serem umas bestas e de terem estragado tudo.

Um comentador científico de eventos triviais deu uma pitada de De Gaulle ao cozinhado francês da época, consentiu que alguns operários espreitassem discretamente na história dos eventos, tendo assegurado que, sem o Maio de 68, nem o Sarkosy se tinha divorciado.
Um professor já encarquilhado que ensinara em Paris, ameaçando ver os seus oitenta e tal anos desmoronarem-se a qualquer momento, gabou-se da grande desforra do professorado, por ter continuado a dar lições magistrais.
Foi então que uma jornalista, levemente aflausinada, culpou rudemente os desgraçados dos estudantes de 68 de terem vivido estes quarenta anos a estragar tudo o que tinham conseguido. Embora não se tivesse dado ao trabalho de revelar, nem o que conseguiram, nem como o estragaram.
Um filósofo pós-moderno, que foi a Paris em Junho do mesmo ano, proclamou que começou em Maio de 68, em Paris, a crise do marxismo; e que o muro de Berlim levou no Arco do Triunfo, nesse ano, o seu primeiro abanão.
A Dª Miquelina garantiu que o grande culpado de terem engravidado a Mariazinha do rés-do-chão direito foi o Maio de 68. Concordando com ela, o Coronel Felismino atribuiu uma grande dose de culpa aos comunistas e aos arruaceiros que, lá como cá, detestam a ordem e a disciplina.


Um historiador do desporto assegurou que o fenómeno desportivo sofreu um poderosos impulso cosmopolita com as barricadas no Quartier Latin. E, inquirido sobre a influência do Maio de 68 em Portugal, um sociólogo muito em voga disse, ao fim de cinco minutos de reflexão, que não sabia. Acrescentando, no entanto, que ele se ouvira então, em Portugal, como um ruído longínquo.

Um velhote um tanto alucinado, a quem perguntaram se tinha estado em Paris, disse que evidentemente e deu como certa uma ligação entre o Maio de 68 e a queda do Salazar de uma cadeira, quando contava barcos a olhar o Tejo.

Numa roda erudita, um entrevistador procurou arrancar uma relação qualquer entre Mao Tse Tung e o Maio francês, no que foi imediatamente apoiado por um ex-futuro expoente do maoísmo português, que assegurou que o que desencadeou a revolta dos estudantes franceses foram os poemas de Mao e o livro vermelho dos guardas da revolução chinesa. Uma morena intelectual e anafada recordou, entretanto: " O Idiota Internacional"; mas a loura esquelética que se sentava em frente sustentou firmemente a importância do: "Viva a Revolução!".


Ficou, entretanto, muito mal visto um sindicalista que veio para a televisão falar numa greve geral e nos acordos que foram conseguidos. O jornalista deu mesmo a entender que a classe operária se vendeu ao patronato, tendo ficado muito longe da irreverência heróica de dois estudantes que mijaram numa estátua de Napoleão, alegando tratar-se de um general burguês.

Uma estagiária de jornalismo assegurou num inquérito de rua ao interpelar um passante sobre Maio de 68 que o Conbandit foi um industrial que inventou a pílula, sendo agora Ministro da Saúde da Dinamarca.


Um jovem comentador de política internacional sugeriu que o Maio de 68 foi um conluio entre a CIA e o KGB, para lixarem o De Gaulle. Um pouco embaraçado o jornalista perguntou-lhe se isso teve alguma coisa que ver com o desaparecimento do General, durante alguns dias. Ao que o especialista respondeu que ele foi raptado para que a esquerda pudesse tomar o poder, mas que os comunistas não se entenderam com os socialistas e tiveram que ir buscar outra vez o De Gaulle, deixando-o ganhar as eleições para que o poder não caísse na rua.

Um jovem sacerdote católico garantiu que a revolta dos estudantes franceses foi um surto de satanismo incentivado pelo Sartre e sua mulher, que o piedoso clérigo garantiu chamar-se Simone Signoret.


Um filósofo brasileiro, muito reputado,o garantiu que o Maio de 68 lhe fazia lembrar o Lula, sugerindo que a Igreja brasileira era um antro de ateus que deviam ser excomungados por Roma.

Um céptico exigente, que costuma desprezar toda a gente, disse que em Maio de 68 não se passou nada de importante. Foram apenas uns filhos-família que querendo-se deitar com as namoradas ficaram irritados por terem sido proibidos de tal labor, tendo desatado aos gritos e às pedradas. A isso, retorquiu um especialista que as pedradas foram em Paris, mas o caso das namoradas foi em Nantes, devendo ainda sublinhar-se que o namorado impaciente não era o Cohn-Bendit , mas o irmão.

Para acabar com as discussões o actual Presidente da República Francesa fez uma proclamação solene ao povo francês dizendo que todas as dificuldades por que a França está a passar hoje no mundo se devem, em grande parte, ao Maio de 68.

E um irrequieto jornalista, claramente do século XXI, comparando o Maio de 68 em França com a actualidade política portuguesa, afirmou, peremptoriamente, que se os candidatos à liderança do PSD, estivessem em real consonância com o Maio de 68, ter-se-iam seguramente despido durante o último debate.

1 comentário:

aminhapele disse...

E assim fica provado:
o vinagre é para utilizar quando é preciso!
Há que soltá-lo da galheta...