quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A GREVE, O SAPO E O ESCORPIÃO


1. Fiz greve. Como professor universitário tinha razões para o fazer: o Processo de Bolonha vai continuando o seu trabalho de corrosão das universidades públicas e uma austeridade desenhada e imposta pela irracionalidade neoliberal vai agravando a deriva.Além disso, cumpri a decisão do meu sindicato.

2. As esquerdas parecem epicamente condenadas a degladiarem-se entre si. As direitas navegam em águas aparentemente mais tranquilas. Abaixam-se para ver se a tempestade lhes passa por cima e se no fim ficam mais fortes e as esquerdas mais fracas.

3. O sector dominante da esquerda institucional resmunga oficiosamente uma imagem de fracasso da greve que a realidade teimosamente desmente. Os sectores dominantes das esquerdas sociais desenham um cenário demolidor que, se tivesse a dimensão afixada, já teria varrido qualquer governo. Esgrimem entre si números como se o peso da greve não fosse o resultado de um balanço sócio-politico, mas um hipotético apuramento impessoal de uma luta entre números.

4. O primeiro parece acreditar que, se fizer os sindicatos morder o pó, poderá navegar tranquilamente numa imaginária harmonia, gerida pelos generosos e altruístas senhores do dinheiro, que lhes continuarão a deixar movimentar as alavancas do poder. Os segundos parecem acreditar que se destroçarem o sector dominante da esquerda institucional verão abrir-se as portas de um outro poder político, onde os interesses que defendem tenham verdadeiro eco.

Mas se os trabalhadores forem vencidos e os sindicatos aniquilados, na constância do capitalismo, nenhum governo de esquerda respirará sequer cinco minutos de poder institucional. E se a esquerda institucional dominante for desmoronada, seguir-se-ão governos de direita, cuja novidade será o agravamento brutal de tudo aquilo que fez com que os sectores dominantes das esquerdas sociais combatessem o sector dominante da esquerda institucional.

Por isso, esta greve teve também uma dimensão trágica. Ela fez-me recordar aquela história do sapo que para ajudar um escorpião a atravessar um ribeiro o transportou no seu dorso. Contudo, a meio da travessia o escorpião espetou o seu ferrão venenoso no sapo. E ferido mortalmente o sapo perguntou. "Porque me matas, sabendo que se eu morrer também tu morres". E o escorpião respondeu: "É da minha própria natureza". E morreram os dois.

Mas neste caso, é como se a história envolvesse dois pares de sapos e de escorpiões. Num deles é a esquerda institucional que faz de sapo; no outro, são as esquerdas sociais. O desenlace é o desaparecimento de todos, seja qual for o papel que desempenharam.

5. Há uma subtil ironia, impregnando tudo isto. Embora pareçam desconhecê-lo, para cada uma das partes, os problemas da outra são afinal também seus. E cada uma delas precisa da força da outra para que, a prazo, não fique irremediavelmente enfraquecida.

Reconheço que a probabilidade de isto ser entendido por qualquer das partes, é escassa. Possivelmente, cada um dos lados continuará a incensar a sua própria santidade e a construir infernos onde gostaria de ver o outro; a construir minuciosamente a culpa do outro e a inocência própria.

Mas quem conseguir despir o seu olhar, por um momento, da neblina das aparências mais prementes, facilmente verá que, se ambos os lados continuarem a intercambiar sucessivamente entre si os papeis de sapo e de escorpião, acabarão por se afundar.

Este não é um resultado que qualquer das partes vá imputar à greve de hoje, mas foi uma reflexão que ela em mim, irresistivelmente, desencadeou. Não é entusiasmante. Mas poderemos passar-lhe por cima, ignorando-a, só pelo facto de nos incomodar ?

7 comentários:

Anónimo disse...

Eu não fiz greve,quanto muito ajudei a fazê-la na minha condição de reformado já uns bons anitos.

Sobre a esquerda propriamente dita, tanto a constitucional como a social desde os primórdios que se não entendem. Portanto não é só de agora. Talvez seja a forma de exercer o poder, talvez.

Entretanto estou de acordo com o seu texto Rui Namorado hoje, mas amanhã quem me dirá?

Não quero aceitar perante a tristeza que me tenta invadir, rotulos de mediocridade...

Nós somos um produto não acabado da escola política da vida e por isso mesmo, deixemos amadurecer as condições que nos vai legar a (conjuntura) eterna da Igualdade, da Fraternidade e da Liberdade.

Hoje,ainda não estão criadas as condições para que socialistas, comunistas e outros progressistas se dêm as mãos.
É a realidade histórica actual.

Mas pelo que me toca tenho fé de que tarde ou cedo isso irá acontecer!

Por isso mesmo recuso o estigma sobre Lenine como sobre Jaurés.

A desvergonha de se nos atribuir rótulos de mediocridade não deixa de ser uma realidade. Acabemos com isso!

Posto isto, o esforço para irmanar na mesma acção política e social os homens e mulheres com cultura de esquerda tem de passar pelo combate à cultura devisionista da rotolagem e pela acção ponderada dos intelectuais de esquerda deste país, pois que são estes últimos o maior valor de Portugal.

De o Catraio abraços

Henrique Dória disse...

Rui: este teu texto não é mais do que um ruminar da própria culpa.

Rui Namorado disse...

Caro Henrique Prior

Fazendo jus à parte do teu nome pelo qual eras conhecido, falas como um verdadeiro Cardeal. Mesmo em política, não resistes à tentação de distrbuires infernos.

Mas eu, em política, sou um verdadeiro laico:posso reconhecer erros, mas nunca sinto culpas.
Abraço.

Rui Namorado

Anónimo disse...

O texto de Rui Namorado está politicamente correcto, mas... será que este governo é de esquerda, ora, ora - Mudemos o figurante.

Pirata

Rui Namorado disse...

O "Pirata" escorrega para uma discreta confirmação daquilo que o texto pretende dizer.

Zé Manel disse...

Mas quem acredita que este PS é a esquerda, sequer uma qq esquerda institucional ou outra??? Nem os pp rosas já têm a mínima ilusão.Quanto a unificações, todos sabemos que está fora de questão. O PC nunca se uniu nem unirá a ninguém, porque isso faz parte da sua natureza como diz o scorpio.Só resta ao cidadão deixar os partidinhos entretidos nas suas guerrilhas institucionais e tentar criar movimentos cívicos que realmente actuem de acordo com o sentir das bases e não pelos ditames e interesses conjunturais das cliques instaladas. É o que ando a fazer!!! E vocês???

Rui Namorado disse...

O seu pode ser um primarismo generoso e bem intencionado, mas não deixa de ser primarismo.

Com base nesse tipo de pensamento, o máximo a que pode almejar é a criar um movimentozinho muito ajeitadinho engordá-lo bem engordado, para que no momento oportuno os poderes de facto da nossa sociedade tal como saboroso galináceo o apreciem num delicioso churrasco.