sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Por detrás das palavras...



Certas fórmulas, certas frases feitas, certas proclamadas evidências lógicas, são tão incansavelmente repetidas, tão correntemente presentes no jargão mediático, tão abençoadas por circunspectos cultores do intelecto, que cada um de nós acaba por repeti-las, associando-se ao coro sem falhas do incauto senso comum.

É o que acontece, por exemplo, com as correcções em alta (ou em baixa) das previsões do FMI, ou do Banco de Portugal, ou do Banco Central Europeu.
De facto, acabamos por deglutir sem resistência, essas correcções, como se fossem expressas em palavras limpas de qualquer armadilha ideológica ou de qualquer ambiguidade lógica. Deixamos que essas dissimuladas repartições do neoliberalismo continuem a fabricar ilusões e a adormecer-nos com propaganda, aceitando-as como se fossem pitonisas de uma ciência exacta, infalível e sem mácula.
E, no entanto, se realmente estivéssemos acordados, facilmente surpreenderíamos, sob a frágil aparência da superfície mais ostensiva, a sombra embusteira da ocultação ideológica, a crueza da falibilidade e da falta de rigor de que padecem; da sombra de mafiosidade que paira sobre tantas instituições financeiras.

Ora, imaginem lá, num instante de fantasia, o que diriam se na visita ao vosso médico ele vos dissesse : "Revejo em alta o meu diagnóstico da semana passada, o Senhor não tem uma gripe, tem uma pneumonia". Ou então: "Revejo em baixa, o meu diagnóstico da semana passada o Senhor não tem uma cirrose, tem apenas uma hepatite".

Certamente, que perceberiam na hora a evidência do óbvio: o médico errou o diagnóstico e estava a corrigi-lo.

Ora, se nos libertarmos da atmosfera de distorção ideológica reinante, também compreenderemos que não há revisões em alta, nem revisões em baixa de previsões anteriores. Há apenas previsões erradas e a consequente necessidade de as corrigir. De as corrigir como erros.
Esta é uma realidade que devia ser evidente.
O FMI ( e os seus congéneres) erram, de facto, muitas vezes as previsões que fazem. E é isso, naturalmente, que devem assumir. Descem assim ao nível dos mortais, saindo desse Olimpo de plástico onde se imaginam deuses? Certamente! Não poderão deixar de renunciar à blindagem pseudo-científica com que querem proteger as suas opiniões? Evidentemente!
Mas nós precisamos de instâncias de apoio às decisões dos poderes democráticos que, mesmo falíveis, nos ajudem, numa interacção plural e aberta, não precisamos de instâncias pseudo-infalíveis, que apenas sirvam para nos darem as ordens que convêm aos poderes de facto que na verdade as dominam.
Estou a exacerbar um detalhe? Talvez. Mas estou também a mostrar uma peça de um puzzle mistificatório, através do qual nos dificultam uma visão clara do modo como funciona realmente o capitalismo actual, de quem ganha com ele como se estivesse num paraíso e de quem sofre com ele como se vivesse num inferno.
Cultivemos o pensamento crítico, um dos mais sólidos garantes da liberdade.Insistamos, uma vez mais: não há correcções em alta, nem correcções em baixa das previsões anteriores. Há previsões erradas que tiveram que ser corrigidas.

3 comentários:

Anónimo disse...

Já alguém disse que os economistas são muito bons a prever o passado mas incapazes de prever o futuro.
Miguel Beleza, numa entrevista na TV, disse que um dos seus grandes mestres na Universidade dos E.U.A. que frequentou dizia aos alunos:"Vocês nunca façam previsões; mas se alguma vez não puderem deixar de as fazer, então façam várias: pode ser que acertem em alguma!
Também um célebre economista dos mais importantes do séc. XX disse qualquer coisa como isto: "a Bolsa é uma cambada de ignorantes, cada um tentando adivinhar o que o outro vai fazer".
É que a economia capitalista é assim mesmo:imprevisível. Podemos estar hoje razoavelmente e amanhã na miséria.

aminhapele disse...

Sobre previsões "científicas" conto-te uma história real.
Nos tempos em que,pela primeira vez,estava para ser pai,levei minha mulher à consulta de um grande especialista,que tinha consultório na Sá da Bandeira.
Ele tinha fama de não falhar previsões(estamos a falar de há mais de 40 anos...),quer sobre eventuais deficiências do futuro bébé,quer do género masculino ou feminino que vinha aí...
Um dia,anos mais tarde,o senhor explicou-me a sua infalibilidade sobre o género:ele dizia aos futuros pais "rapaz",mas na ficha clínica escrevia "rapariga"...
Nunca houve reclamação das suas previsões!
Claro que tal lógica não se pode aplicar ao BCE,nem mesmo ao BP.

JM Correia Pinto disse...

Força Rui, não desistas. Mantém-te crítico.
O problema dos economistas nem sequer está na sua incapacidade em preverem o futuro que, por definição, não é antecipável. Está em compreenderem o presente!
Abraço
CP