sábado, 25 de outubro de 2008

O muro de Berlim do capitalismo


O Júlio Mota enviou-me, depois de o ter traduzido, o texto do deputado do Partido Socialista Francês e Presidente do Conselho Geral de Saône-et-Loire, Arnaud Montebourg, publicado no diário francês “Le Monde” em 21.10.08.
É esse texto que abaixo se transcreve. Montebourg é um dos expoentes mais brilhantes da nova geração de dirigentes socialistas franceses. Animou uma das mais criativas correntes de esquerda dentro do PSF, continuando a ser uma figura de proa na competição política actualmente em curso, no seio do partido a que pertence.

Os socialistas têm que estar à altura dos novos desafios que se lhes colocam, em França, na Europa, no Mundo. E os socialistas portugueses não podem ser dados como ausentes desse combate, sendo certo que uma das mais insidiosas formas de ausência é o refúgio em lugares comuns mais ou menos justificativos, mais ou menos superficiais, numa ladainha insípida que pode alimentar telejornais, mas não contribui em nada para a abrir novos caminhos como é indispensável.
Por este e por outros meios, comecemos a romper o silêncio...



O muro de Berlim do capitalismo
Arnaud Montebourg


" Esta crise é, desde o desmoronamento do muro de Berlim, a mais grave derrota que conheceu uma ideologia, com o seu cortejo de passos às cegas, de mentiras e de propaganda. O quase desaparecimento de Wall Street é, em certa medida, a queda do muro de Berlim do capitalismo liberal e mundializado. A ideologia do mercado livre, o comércio livre, a finança livre e a recusa obsessiva da intervenção da política na economia é um dogma que atinge a estupidez e conduz ao inferno. O nosso governo empenha-se profundamente na arte de compor e encher de radares e de polícias as nossas estradas; no entanto, a única estrada sobre a qual recusou obstinadamente desde há anos que aí instalassem linhas brancas, radares e guardas é a da finança, onde a liberdade não conhece nem moral nem virtude.
A questão da ordem pública para assegurar a segurança da economia está, pois, em cima da mesa, como há, de resto, uma ordem pública em matéria sanitária, ambiental ou anti-terrorista, a fim de assegurar a segurança das pessoas e dos bens. Lutar contra as zonas de não direito, é o dever de um Estado. Hoje, a finança tornou-se uma zona de não direito à escala mundial. E é ela que assusta os cidadãos, aforradores, assalariados, empresários. É dela que os Estados nos devem proteger, mesmo se eles próprios organizaram a sua própria impotência política.
Os líderes mais liberais, entre os quais está Nicolas Sarkozy, não têm nenhuma credibilidade nas suas declarações, evocando não se sabe que refundação do capitalismo, uma vez que a responsabilidade que lhes cabe, ao terem recusado com toda a violência do seu dogmatismo qualquer medida de regulamentação ou de limitação, é pois esmagadora. Este presidente faz, em conjunto com o patronato reunido em torno da sua associação, o Medef, a apologia da sacro-santa auto-regulação: é tão pouco eficaz e credível para lutar contra uma fraude como a dos títulos subprimes da mesma forma que o é a autodisciplina num grupo de pré-delinquentes..
O mesmo podemos dizer quanto à fascinação que exerceu sobre este homem a louca criatividade da finança americana, ao ponto ter influenciado as suas próprias propostas, uma vez que ele defendia ultimamente a ideia de aumentar o acesso ao crédito hipotecário para as famílias de fracos aos rendimentos, o que significava transplantar os créditos em créditos subprimes em França. E o mesmo podemos igualmente dizer quanto à sua recusa em acabar com os paraísos fiscais, bancários e judiciais, como o Luxemburgo ou a City de Londres que, no seio da União Europeia, organiza um verdadeiro dumping regulamentar e desregulador.
Este pobre Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro do Luxemburgo e presidente do Eurogrupo, vê Dexia desmoronar-se por ter agido de modo inconsciente com a sua bênção de liberal obsessivo. E ele é o mesmo que nos tratava, a Vincent Peillon e a mim próprio, durante os nossos inquéritos parlamentares sobre os paraísos fiscais europeus “de sheriff-inquisidores”; é o mesmo que protegeu a manutenção no sector privado da câmara de compensação Clearstream, de práticas e métodos bem contestáveis! São estes mesmos europeus ultraliberais que deixaram as Bolsas tornarem-se empresas privadas e desde a fusão de NYSE com Euronext sob a alçada do direito americano ultra-leve!
Quem acreditará nestes responsáveis capazes de impor o contrário que proclamaram? Cabe, por conseguinte, à esquerda rearmar a política para lutar contra a finança louca.. Deve fazê-lo tendo sempre presente que também não está isenta de críticas nesta matéria. Também se deixou-se atordoar com as miragens e as promessas de crescimento que prometiam os liberais; também sucumbiu à crença que a liberalização dos movimentos de capitais iria facilitar o financiamento das empresas e, por conseguinte, beneficiar os assalariados.
Repor a ordem na economia passa pela luta contra a insegurança financeira: primeiro, desarmar os delinquentes potenciais que são os banqueiros; seguidamente, reforçar o arsenal legislativo de repressão, para criar verdadeira uma ordem pública económica que dispõe de sanções à medida, apropriadas. É imperativo restringir os instrumentos que permitem especular. É necessário pôr um termo - e por conseguinte proibir - a titularização dos créditos pelos bancos, que é um meio para estes se descartarem do risco. Os bancos que emprestam dinheiro a uma família ou uma empresa devem manter-se como credores e manter o crédito nas suas contas, até ao reembolso completo.
A crise actual impõe também que se retorne a uma divisão clara e nítida das actividades entre a economia real e a financeira. A mistura dos tipos de actividades que foi autorizada entre os bancos de investimento, de depósito e de seguro estão na origem da queda do banco franco-belga Dexia, assim como do segurador americano AIG. porque os seus dirigentes quiseram desenvolver-se também na actividade de assegurar os investidores contra as perdas especulativas. A crise actual impõe também proibir aos actores financeiros como os hedge funds (fundos especulativos) que andem a especular nos mercados. A loucura da especulação não poderia ser detida sem um enquadramento rigoroso das formas de remuneração dos operadores na alta finança, que só conhecem - -quer ganhem quer percam - apenas as suas comissões, os seus bónus! Mas o que é mais importante, será fazer com que estas interdições sejam respeitadas. Onde é que estavam os poderes públicos e as famosas autoridades reguladoras supostamente independentes? As autoridades de supervisão do sector financeiro (Autoridade dos mercados financeiros, Comissão bancária, Banco de França,) são dirigidos por personalidades procedentes do mundo financeiro. E o seu interesse está ligado ao das pessoas que supervisionam. O resultado, é que não controlam nada. É por conseguinte necessário alterar o modo de nomeação destes responsáveis. É necessário uma presença dos deputados, representantes de assalariados, de pequenos accionistas, dos clientes dos bancos nestas instâncias, verdadeiros braços armados das políticas.
Uma vez este sector posto sob controlo, é necessário imaginar um outro meio para financiar a economia. Não é anormal que, numa economia de mercado, certos sectores estejam sujeitos a um monopólio público, quando o sector privado mostrou que era incapaz de cumprir a sua tarefa. A finança é este sector. E vê-se o risco que existe por se confiar a instituições privadas o cuidado de financiar toda a actividade económica de um país. As fontes de crédito secam-se e a economia corre o risco de parar. Como mostram-no as práticas do micro crédito, seria por conseguinte saudável confiar a instituições com fins não lucrativos a distribuição do crédito. A criação de um serviço público do crédito, que seja gerido pela Caísse des Dépôts et Consignations, uma instituição sólida que soube permanecer afastada da especulação, poderia responder às necessidades de financiamento da economia.
A crise mostra também que o dogma liberal subjacente à construção europeia não protege nem o cidadão nem a economia. Que sentido tem hoje os termos de livre concorrência ou a proibição dos auxílios estatais quando tudo está a desabar? Para que serve um Banco Central Europeu obcecado por uma inflação que não sabe jugular, e um crescimento em quese empenhou em abafar?
Os cidadãos aceitarão uma Europa reforçada se sabem que as instituições os beneficiam e não apenas ao mundo da finança. A hora não é mais para as medidas tímidas, do laisser-faire, para a fatalidade do mundo da finança como este vai. A política deve rearmar-se e aproveitar o desmoronamento da finança para impor as suas regras do jogo e sem medo. E não deve contentar-se em passar para a caixa registadora como sempre o fez, em virtude do bom e velho provérbio que quer que se privatize os lucros e que se socializem os prejuízos."


[Artigo publicado em Le Monde de 21.10.08]

Sem comentários: