sábado, 1 de outubro de 2011

A UNIVERSIDADE E O GUERRILHEIRO

Foi há poucos dias, setecentos e vinte e um anos depois da sua fundação, que a Universidade de Coimbra recebeu como seu novo doutor honoris causa Xanana Gusmão. Honrou-se com a iniciativa a Faculdade de Letras, que assim o fez sentar nos cadeirais entre os seus doutores na velha Sala Grande dos Actos, correntemente chamada a Sala dos Capêlos.


Com júbilo e jubilado, também eu, devidamente integrado na minha Faculdade, a de Economia, com as suas cores bem marcadas nas insígnias doutorais , acompanhei, ao som da charamela e sob o repicar lento dos sinos da velha torre, o candidato e o seu padrinho, Eduardo Lourenço, no lento cortejo saído da Biblioteca Joanina para se dirigir ao longo do Pátio das Escolas para a Via Latina. Muitos timorenses, muitos turistas, muitos estudantes olharam-nos com a habitual curiosidade. O cortejo percorreu a Via Latina e entrou na Sala dos Capêlos. Os da frente foram abrindo alas para que os de trás fossem passando, até que entre nós passasse o Candidato e o seu Padrinho, o Magnífico Reitor e o Director da Faculdade de Letras.


O candidato formulou grave e brevemente a sua súplica com a tranquila leveza de quem sabe que vai ser atendido. Ouviram-se depois os doutores que atestaram com eloquência a qualidade do candidato e a credibilidade do padrinho. Como sempre sem um aplauso, já que na Sala Grande dos Actos todas as ovações são sempre substituídas pelos acordes enérgicos da charamela que aplaude com a sua música uma e outra vez o que se acaba de ouvir.


O candidato foi aceite. José Alexandre "Kay Rala Xanana" Gusmão era um novo doutor da nossa Universidade, honoris causa. Antes de ocupar o seu lugar nos cadeirais, junto dos seus pares da Faculdade de Letras, o novo Doutor veio cumprimentar, um por um, os doutores de todas as Faculdades: Letras, Medicina, Direito, Ciências e Tecnologia, Farmácia, Economia, Psicologia e Ciências do Desporto. A todos abraçou, ouvindo quase sempre breves palavras de boas-vindas. Quando chegou a minha vez, enquanto lhe dava o abraço esperado disse-lhe: " Bem-vindo ! É uma honra termos entre nós um guerrilheiro!" Pareceu-me perpassar pelo abraço que ia acabar, uma brisa de comoção.


Mas foi realmente o que aconteceu. Mais do que o primeiro Presidente da República de Timor Leste, mais do que o seu actual chefe de governo, quem atravessou a manhã clara vindo da luz filtrada do Mondego e entrou, como em sua casa, no coração da Universidade, foi um guerrilheiro saído das fundas prisões da Indonésia, ocupante e opressora, transportando o sonho improvável de um pequeno país independente, de uma liberdade simples, de uma identidade inteira. Se na história realmente vivida, algum David desamparado enfrentou alguma vez um invencível Golias, esse David foi o povo de Timor Leste, quando se levantou contra a Indonésia. E entre os cavaleiros do impossível que deram o seu pequeno corpo e a sua única vida para que a grande alma do povo pudesse acontecer, conta-se sem qualquer dúvida Xanana Gusmão.


Por isso, enquanto a luz clara de sempre me procurava os olhos mais uma vez naquele sala, não pude deixar de ver como numa corrente de imagens aquilo que a saudade já designa como os loucos anos sessenta. Loucos seguramente, porque se um dia, por mais longíquo que ele seja, a vida for justa e livre para todos, essa loucura será respirada sem ansiedade. Vi-os realmente e foi como se os estudantes de Coimbra que então resistiram à sombra asfixiante do salazarismo, transformados numa nuvem de alegria, entrassem de novo na Sala dos Capelos para verem um guerrilheiro ser recebido em casa deles. Uma nuvem de alegria, porque eles sabem que um pouco do mérito de aqui se ter chegado lhes cabe a eles. O mundo não é o que sonharam, mas uma parte das sombras foi vencida.


Deixei então a memória vaguear levemente, através dos séculos de vida da nossa Univerisade. Olhei-a como se fosse um "puzzle", um enorme "puzzle", cujas peças vão sendo conhecidas à medida que o tempo passa. Nessa imagem imensa, vemos zonas sombrias e zonas luminosas. E é como se as noites mais lúgubres estimulassem a explosão das manhãs mais claras. As luzes da esperança que esforçadamente se acendem aqui e ali não se ignoram entre si. Quando há uma que se acende de novo, é como se todas as outras rejuvenescessem. Por isso, embora eu me tenha lembrado dos anos sessenta por terem sido também meus, sei bem que a chegada até nós de um guerrilheiro deu nova vida a todos os momentos de luz da história secular da nossa Universidade e enterrou um pouco mais na escuridão do olvido as manchas de pequenez e de vergonha.

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