Cada uma das várias componentes políticas da esquerda esmiúça, com frequência até ao tutano, os erros e as limitações de cada uma das outras, com um rigor por vezes compulsivo, com um bisturi analítico verdadeiramente implacável. O mesmo acontece também entre as várias tendências entretanto surgidas dentro de cada uma delas. E o mesmo ocorre até dentro de cada uma dessas tendências. Acontece, mesmo que não faça muito sentido.
De facto, é um estranho sonambulismo político este, em que cada um parece comprazer-se com a desgraça própria de ficar mais isolado, perante o peso implacável dos poderes instituídos, perante o conservadorismo hábil da direita. Estranho sonambulismo político este, em que cada um parece retirar uma inesperada energia da demonstração, que consiga fazer, de que o vizinho do lado, fazendo-se passar por esquerda, é afinal de direita, ou faz objectiva e totalmente o seu jogo; de que o vizinho do lado, em vez de somar a sua força à força dele, alinha afinal com o inimigo. Estranho sonambulismo político este, em que cada um parece mais preocupado em agredir (para afastar) os possíveis aliados do que em seduzir (para conquistar) novos companheiros.
E assim descubro-me a pensar que uma tão forte e generalizada compulsão dificilmente pode ser imputável a uma simples deficiência de carácter ou a uma desagradável falha da inteligência. Mais provável é estarmos perante um sentimento forte de ausência, de um auto-diagnóstico generalizado de uma carência que aflija. De facto, neste doentio esmiuçar da proximidade acontecida, como esteio desejado de uma diferença que afaste, só pode estar uma humilhante cegueira quanto ao futuro, uma ausência total de um pensamento verdadeiramente estratégico, uma embaraçosa nudez prospectiva. Uma falha que se quer esquecer, que se recalca, mas que volta por esses atalhos para a todos assombrar.
Embaraçadas e aflitas, as esquerdas, em todos os seus estados, esmagam ou cobrem de esquecimento, dentro de cada uma das suas famílias, as vozes, mais ou menos isoladas, que realmente se interrogam quanto ao futuro, que realmente interpelam as rotinas instituídas, que realmente se recusam a olhar para o futuro como se este pudesse ser uma reprodução cinzenta e nebulosa do presente. Mas essa crispação autocentrada não chega para afastar o nevoeiro, não basta para colmatar essa falta de horizonte, não supera essa carência completa de um verdadeiro futuro.
É essa aflição lancinante de se sentir sem horizonte, precisamente, quem se quer peregrino de todas as viagens, que pode explicar o acumular de gestos sem sentido, o percurso reiterado por caminhos sem saída, a agressão implacável ao companheiro mais próximo, com esquecimento do inimigo que nos espera em todas as tocaias da vida.
Mas por mais enérgico que se consiga ser no compulsivo esmiuçar do acabado de acontecer, por mais implacável que se consiga ser na destruição do vizinho, nada de essencial mudará enquanto não se reconquistar o futuro, reaprendendo-se a pensá-lo para que seja objectivamente possível caminhar para ele. E não se pense que se tem pela frente uma tarefa hercúlea a roçar o impossível. Pelo contrário, trata-se simplesmente de ter presentes dois pontos de partida indissociáveis:
De facto, é um estranho sonambulismo político este, em que cada um parece comprazer-se com a desgraça própria de ficar mais isolado, perante o peso implacável dos poderes instituídos, perante o conservadorismo hábil da direita. Estranho sonambulismo político este, em que cada um parece retirar uma inesperada energia da demonstração, que consiga fazer, de que o vizinho do lado, fazendo-se passar por esquerda, é afinal de direita, ou faz objectiva e totalmente o seu jogo; de que o vizinho do lado, em vez de somar a sua força à força dele, alinha afinal com o inimigo. Estranho sonambulismo político este, em que cada um parece mais preocupado em agredir (para afastar) os possíveis aliados do que em seduzir (para conquistar) novos companheiros.
E assim descubro-me a pensar que uma tão forte e generalizada compulsão dificilmente pode ser imputável a uma simples deficiência de carácter ou a uma desagradável falha da inteligência. Mais provável é estarmos perante um sentimento forte de ausência, de um auto-diagnóstico generalizado de uma carência que aflija. De facto, neste doentio esmiuçar da proximidade acontecida, como esteio desejado de uma diferença que afaste, só pode estar uma humilhante cegueira quanto ao futuro, uma ausência total de um pensamento verdadeiramente estratégico, uma embaraçosa nudez prospectiva. Uma falha que se quer esquecer, que se recalca, mas que volta por esses atalhos para a todos assombrar.
Embaraçadas e aflitas, as esquerdas, em todos os seus estados, esmagam ou cobrem de esquecimento, dentro de cada uma das suas famílias, as vozes, mais ou menos isoladas, que realmente se interrogam quanto ao futuro, que realmente interpelam as rotinas instituídas, que realmente se recusam a olhar para o futuro como se este pudesse ser uma reprodução cinzenta e nebulosa do presente. Mas essa crispação autocentrada não chega para afastar o nevoeiro, não basta para colmatar essa falta de horizonte, não supera essa carência completa de um verdadeiro futuro.
É essa aflição lancinante de se sentir sem horizonte, precisamente, quem se quer peregrino de todas as viagens, que pode explicar o acumular de gestos sem sentido, o percurso reiterado por caminhos sem saída, a agressão implacável ao companheiro mais próximo, com esquecimento do inimigo que nos espera em todas as tocaias da vida.
Mas por mais enérgico que se consiga ser no compulsivo esmiuçar do acabado de acontecer, por mais implacável que se consiga ser na destruição do vizinho, nada de essencial mudará enquanto não se reconquistar o futuro, reaprendendo-se a pensá-lo para que seja objectivamente possível caminhar para ele. E não se pense que se tem pela frente uma tarefa hercúlea a roçar o impossível. Pelo contrário, trata-se simplesmente de ter presentes dois pontos de partida indissociáveis:
1) se o capitalismo se tem vindo a transformar aceleradamente no túmulo da história, o futuro só é pensável como um pós-capitalismo;
2) se há um longo caminho de transformações sociais encadeadas entre si para nos levar até ele, não o poderemos percorrer sem usar em simultâneo o protagonismo de um Estado transformador, cujas alavancas temos de conquistar, e o dinamismo social da teia de entidades guiadas pela cooperação e pela solidariedade, cujo quotidiano temos que partilhar.
Enquanto as esquerdas continuarem historicamente paradas e estrategicamente desarmadas, serão tentadas a continuarem compulsivamente a interpelarem-se como passados e a desconsiderarem-se como futuro. E as sociedades que temos, guiadas pela direita sua guardiã histórica, continuarão a perder-se lentamente na desesperança que, dia a dia, mais e mais, nos vai sufocando.
Enquanto as esquerdas continuarem historicamente paradas e estrategicamente desarmadas, serão tentadas a continuarem compulsivamente a interpelarem-se como passados e a desconsiderarem-se como futuro. E as sociedades que temos, guiadas pela direita sua guardiã histórica, continuarão a perder-se lentamente na desesperança que, dia a dia, mais e mais, nos vai sufocando.
2 comentários:
muito bem
Gostaria de reforçar a ideia com que acaba o post:
"Enquanto as esquerdas continuarem historicamente paradas e estrategicamente desarmadas, serão tentadas a continuarem compulsivamente a interpelarem-se como passados e a desconsiderarem-se como futuro. E as sociedades que temos, guiadas pela direita sua guardiã histórica, continuarão a perder-se lentamente na desesperança que, dia a dia, mais e mais, nos vai sufocando".
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