sexta-feira, 21 de outubro de 2011

NÃO SER CÚMPLICE E ABRIR CAMINHO !


[ Esta é uma segunda versão corrigida de um texto aqui publicado, ontem. Não sofreu alterações de fundo, mas apenas as modificações inerentes a uma melhoria do estilo, no sentido de tornar o texto mais legível. ]


1. O sentido de voto do PS quanto ao Orçamento de Estado, seja ele qual for, não será suficiente para impedir a sua aprovação pela maioria parlamentar de direita. Essa circunstância, no entanto, não lhe retira um relevante valor simbólico e um importante significado político. Precisamente por isso, está longe de ser uma questão menor.
É inconcebível que, dadas as suas linhas gerais, o PS vote a favor. A dúvida coloca-se entre o voto contra e a abstenção. Há quem sublinhe o excesso de zelo do Governo, em face do compromisso com a “troika”, preconizando um voto contra, que torne clara a distância que separa o PS deste Governo. Para defender a abstenção, há quem lembre a responsabilidade do PS pela situação em que estamos, destacando o valor simbólico aos olhos do mundo de uma imagem de convergência nacional.

2. Para dar consistência a uma opinião há duas questões prévias a ter em conta. A primeira envolve o compromisso do PS ser fiel ao que acordou com a “troika”; o que não é o mesmo que estar aprisionado por um guião imutável que tivesse que ser seguido à letra. Pelo contrário, o que está em causa é um compromisso político, entre o PS e a actual maioria governamental, por um lado, e a "troika" pelo outro.
Esse compromisso político não é, por isso, um feixe de obrigações de sentido único que permita exigir tudo ao PS, e nada à maioria governamental. As obrigações são para ambos. Desse modo, se, no quadro desse compromisso, o PS pode ter que aceitar medidas com as quais não concordaria em circunstâncias normais, compreende-se que a maioria de direita, por contrapartida, se devesse sentir obrigada a não ir tão longe quanto poderia ir no cumprimento dos seus desígnios próprios, se não quisesse ter o apoio do PS.
Ora, não é isso que se tem visto. A maioria de direita tem-se comportado como se o PS tivesse obrigações para com ela, sem qualquer reciprocidade. Assim, tem-se desviado dos acordos com a “troika”, num sentido totalmente oposto ao que se pode esperar que o PS queira. E, não contente com isso, tem provocado sucessivamente este partido, levando ao paroxismo a sua ânsia de justificar os desmandos próprios com erros que lhe imputa. Daí, uma intensa campanha de propaganda contra os dois Governos anteriores, numa atitude sectária, traduzida em vociferações e insultos, muitas vezes não harmonizáveis com a convivência democrática.

Como ilustração eloquente do que se acaba de dizer, recorde-se o coro de alucinados que tem cantado o imaginário hino da responsabilização criminal dos ex-governantes do PS, pelos alegados desvios orçamentais que terão consentido. Realmente, essa vozearia dá como adquirido que terá havido actos culposos de má gestão de dinheiros públicos, relevantes criminalmente, imputáveis aos dois governos anteriores. Mas, de facto, tudo isso está longe de ser evidente, está longe de ser um dado adquirido e está ainda mais longe de ter sido provado.

E como factor de desqualificação dessa deriva justicialista, recorde-se, a título de exemplo, como ela omite, por completo, o decisivo contributo para a conjuntura actual, dado pelas inércias predatórias do sistema capitalista, aliás, encorajadas pela desregulação financeira universal conseguida pelo triunfo do neoliberalismo.
Mas essa campanha, além de alicerçada em alegações enganosas e não provadas, é em si própria hipócrita. Na verdade, se estivessem seguros do que dizem, certamente que teriam já secundarizado as gritarias mediáticas, tendo accionado os mecanismos judiciais adequados para se chegar à punição dos crimes que dizem ter sido praticados.

Nada disso aconteceu. Pelo que, ou estamos perante uma simples hipocrisia, ou o que realmente tais figurões pretendem é uma outra coisa, ainda mais grave: eles propõem a criação de novos tipos legais de crime, para com base em novas normas jurídicas irem punir factos que já tenham ocorrido antes. Ora, independentemente do acerto jurídico-penal desses novos tipos de crime, que aliás só muito difusamente identificam , estamos perante uma deriva autoritária a que nem Salazar ousou chegar, perante uma violação grosseira do cerne da nossa Constituição: isto é, aplicar retroactivamente leis que criminalizam comportamentos que antes não davam lugar a punição. É uma rasteirice política autoritária na sua mais descarada expressão.

E, de facto, todo este ruído mediático, onde se acotovelam tó-tós, carcaças carcomidas, eternos adolescentes deslumbrados pelo microfone e políticos manhosos, deixa cada vez mais a descoberto um ranço justicialista e reaccionário. Um ranço que procura transformar aqueles de quem se discorde em potenciais criminosos e o comportamento político, que não corresponda ao que eles acham certo, num crime. Nem os tribunais plenários da outra senhora estavam impregnados por uma lógica tão radicalmente tributária do totalitarismo.
Por isso, o PS, sublinhando sempre que não há ninguém dentro dele que não assuma a responsabilidade por tudo aquilo que faz, tal como não há ninguém dentro dele que esteja ou queira estar acima da lei, deve tornar claro que não haverá consenso nem acordos entre ele e quem o agrida na praça pública com base em pulsões autoritárias e justicialistas, estranhas ao funcionamento normal do estado de direito.

3. A outra questão a resolver é a das recorrentes acusações que a direita e os aparelhos ideológicos dominantes têm feito recair sobre os dois governos anteriores, imputando-lhes uma responsabilidade exclusiva e culposa de todos os males de que o país padece.


Aliás, neste campo reina, no seio do PS e da sua base social de apoio, alguma confusão. De facto, parece oscilar-se entre uma recusa seca em se discutir a essa governação e uma aceitação acrítica de todas as críticas que os nossos adversários lhes fizeram. É, no entanto, indispensável ir-se mais longe e mais fundo, sem se perder mais tempo. É preciso, na verdade, analisar-se e compreender-se o que se fez e o que nos fizeram, para podermos caminhar sem cairmos nas mesmas armadilhas e sem sermos alvos mansos de mistificações e de mentiras.
Ora, é possível detectar se houve e quais foram as consequências gravosas das medidas que realmente foram tomadas pelos governos em causa. Mas essa avaliação deve ser completa e rigorosa, não podendo por isso esquecer que o primeiro Governo de Sócrates herdou dos governos da direita, liderados por Barroso e Santana, uma situação financeiramente calamitosa, como então foi publicamente anunciado e reconhecido. Do mesmo modo, não pode ignorar que a evolução das contas públicas percorria uma trajectória de reequilíbrio, quando, à escala mundial, se desencadeou a crise financeira de 2008. Também não pode olvidar que uma parte dos problemas suscitados pela crise das dívidas soberanas foi consequência dos movimentos especulativos do capital financeiro internacional que em última instância visavam e visam o euro, tendo contado com a cumplicidade tácita e a miopia estratégica dos líderes da direita europeia que estão no poder. Por outro lado, deve também ter-se em conta que, no caso português, a crise política desencadeada pela direita e pelas oposições de esquerda, ao recusarem-se a aprovar o PEC quatro foi, por si só, um poderoso impulso para o agravamento das dificuldades do nosso país.

Nessa medida, seria importante que fosse de imediato criado um grupo de trabalho pluridisciplinar, constituído por socialistas experientes e habilitados, que elaborasse um relatório rigoroso, através do qual se pudesse verificar qual o contributo das diversas causas acima mencionadas para a situação actual. Realmente, insistindo em ideias já expressas, precisamos de saber até que ponto os automatismos inerentes à lógica capitalista, que a deriva neoliberal tornou menos controláveis pelos mecanismos de regulação, nos conduziram à crise actual.

E há perguntas que têm que ter resposta: Até que ponto contribuíram para a crise as decisões ou as omissões políticas dos poderes dominantes na União Europeia e no FMI? Até que ponto contribuiu para a crise a sofreguidão da banca pelo lucro rápido, devidamente protegida e encorajada pela hegemonia mundial do capital financeiro? Até que ponto foi um factor de agravamento da situação portuguesa a decisão das oposições de derrubarem o governo anterior, por intermédio da inviabilização do PEC quatro? Até que ponto contribuíram para a crise actual decisões, medidas ou estratégias dos dois Governos anteriores; e quais foram elas?
Sem uma análise rigorosa da contribuição de cada um destes factores para a situação actual, continuaremos atolados no reino dos palpites e da simples propaganda, cada um tentando demonizar e santificar aquilo que lhe convenha, sem verdadeiramente compreender por completo o que se passou. Neste jogo, o PS fica a perder, desde logo porque o aparelho ideológico da direita, agora coadjuvado pelo exercício corrente do poder político por um governo de direita, é largamente dominante. Por outro lado, a direita não tem escrúpulos, quando se trata de propaganda, e as outras esquerdas não podem sem prejuízo próprio permitir que tudo fique claro.
O PS tem por isso, necessariamente, que tomar essa iniciativa, sob pena de se irem instalando no ambiente social falsas representações do que realmente se passou nas últimas décadas, dirigidas a forjar como verdadeira uma narrativa histórica que desqualifique o PS.
Para ilustrar tudo isso, com um exemplo sugestivo ainda que menor, lembremos a ficção de que desde a entrada na UE tem havido uma ocupação quase exclusiva do Governo de Portugal pelo PS. Mas de facto, não foi assim: de 1985 a 1987: governo minoritário do PSD; de 1987 a 1995: governos maioritários do PSD; de 2002 a 2005 : governos maioritários PSD/CDS. E do outro lado, de 1995 a 2002: governos minoritários do PS; de 2005 a 2009: governo maioritário do PS; de 2009 a 2011: governo minoritário do PS.Ou seja, nos últimos 26 anos o PS esteve 13 no Governo e a direita outros 13, mas a direita governou 11 anos com maioria absoluta e o PS apenas 4.

Ora, se mesmo aquilo que é uma evidência factual ostensiva , facilmente verificável sem margem para dúvidas, é falsificado sem vergonha pela propaganda da direita, o que acontecerá com realidades menos objectiváveis e menos imediatamente verificáveis?

4. Deste modo, parece claro que, seja ela qual for, a posição do PS, quanto ao Orçamento, ganhará muito se for acompanhada por uma operação política que mostre com toda a clareza a verdade dos acontecimentos, mas ficará vulnerável aos mais diversos ataques se cair na cena política, como um facto isolado.
Quanto à posição a tomar, sublinhando sempre a importância da iniciativa proposta, parece mais clarificador e coerente optar um voto contra na votação do Orçamento de Estado, quer na generalidade , quer na votação final global.
Mas tudo poderá ser prejudicado, se o voto for encarado como um ponto de chegada e não como um ponto de partida. Um ponto de partida que assinale a aposta num caminho alternativo que é preciso começar a construir, desde já, em conjunto com os outros partidos socialistas europeus. Um caminho que incorpore uma ambição clara por uma outra forma de viver, por um outro tipo de sociedade que realmente seja compatível com a identidade histórica dos socialistas e com os valores e princípios que nos distinguem das outras famílias políticas, colocando-nos no coração da esquerda e do futuro. Só é realista a vontade de superar as dificuldades presentes, se soubermos amarrar cada uma das nossas acções políticas mais significativas a um futuro que valha a pena.
Ou seja, cada passo em frente é importante se for dado num caminho nosso, mas pode reduzir-se a quase nada se o deixarmos isolado e perdido.

3 comentários:

Maltez da Costa disse...

Opinião lúcida... Tenho esperança de que o PS saiba também pelo menos desta vez, tomar uma posição que não subverta os principios que sempre o nortearam na defesa de um socialismo humanista. O PS não pode caucionar, abstendo-se, politicas neo liberais, mesmo quando invocadas na defesa do país. O PS não tem que colocar em causa a sua acção governativa anterior, cedendo à chantagem de quem fez pior quando governou. O PS tem que continuar a marcar diferença da direita reacionária e da esquerda extremista e conservadora, porque nem uns, nem outros se tem movido no interesse dos mais desfavorecidos. Errar é humano, persistir no erro não é aceitável.
"malez da costa"

antoniommiguel.blogspot.com disse...

Parabéns pela opinião!
Será não vão escolher este caminho?
Esperam que a direita prossiga na sua acção devoradora, da desinformação torpe e vilipendiadora ?
O PS tem pessoas capazes, utilizem-nos!

Anónimo disse...

Penso que o PS não deve caucionar exageros de banda curta. E vamos lá deixar os extremistas de lado.
Neste momento é necessário olhar para o povo que trabalha e este diz-nos que é preciso travar esta onda direitista que mais parece um Tsunami calamitoso.
Bem sabemos quem governou o país
nos últimos anos.
Por isso avancem com o Não.
com respeito. Adelino Silva