1. As manifestações que, no sábado passado, ocorreram, um pouco por todo o mundo, mostraram que há uma enorme energia política de resistência aos automatismos predatórios do capitalismo dominante. Mas, olhando-se para as imagens mediáticas mais correntemente difundidas, verifica-se que não predominavam entre os manifestantes sinais que sugerissem uma identificação clara daquilo que é essencial combater-se. na verdade, embora abundassem as críticas a muitos dos frutos da árvore que tem que ser destruída, raramente ela foi explicitamente mencionada. Também parece predominar a opção pela acção não-violenta e uma inequívoca vontade de aprofundamento da democracia. Por outro lado, em muitos casos, explicitam-se reivindicações dirigidas a uma entidade outra, talvez o Estado de cada um dos países, como se no horizonte se perfilasse a ambição predominante de ver uma entidade omnipotente resolver os problemas individuais de cada um dos manifestantes (ou dos seus próximos) e de corresponder aos seus sonhos e às suas legítimas ambições.
Esta perspectiva é ilusória, ainda que provavelmente seja uma primeira etapa que tem que ser percorrida como experiência. O próprio facto de os manifestantes se assumirem como "indignados" é emocionalmente forte, eticamente legítimo, mas politicamente fraco. Há aqui muito caminho a percorrer. Se não se perderem na névoa da desilusão e do desânimo, ou se não se extraviarem por caminhos fechados, tenderão a aprender que só colherão os frutos que eles próprios gerarem, ou em cuja gestação participarem decisivamente. Poderão agir a partir das suas próprias forças num protagonismo totalmente autónomo; ou procurarem sinergias e alianças com todas as forças políticas, sociais e culturais que se movam com base em lógicas diferentes da lógica capitalista, ou que inscrevam num horizonte pós-capitalista o sentido último da sua identidade histórica.
Esta última via parece-me a mais fecunda e a mais desejável. Se vier a verificar-se a sua impossibilidade, os riscos de dissipação de toda esta energia política, ou de conversão em alternativas violentas, que subalternizem a democracia, aumentam. E, de algum modo, podem ser, em si próprios, a materialização antecipada de um fracasso. Por isso me parece importante apostar-se no caminho mais cooperativo.
2. Mas se este levantamento pacífico universal, que dá os seus primeiros passos, for aniquilado ou esvaziado, não serão só os seus protagonistas os derrotados. Toda a esquerda será derrotada. E dentro dela terá contornos mais dramáticos a derrota da esquerda que se reconhece no Partido Socialista Europeu e á escala mundial no significado histórico (hoje adormecido) da Internacional Socialista. E isto será particularmente nítido no quadro europeu, no âmbito da União Europeia.
Na verdade, tem sido esta a componente da esquerda que mais frequentemente tem assumido responsabilidades governamentais, talvez por ser aquela que, em regra, dispõe de maior peso eleitoral. Por isso mesmo, é-lhe imputada uma parte da responsabilidade política pela situação actual, o que torna um processo ainda mais complexo a sua aproximação institucional com o movimento dos "indignados". Mas nem estes têm, em tempo útil, hipótese de uma intromissão directa nas esferas institucionais de decisão política, sem a sua inserção nos partidos socialistas, nem estes últimos têm qualquer hipótese de uma governação, que reflicta os seus valores e projecte na prática a sua identidade histórica, sem uma dinamização convergente dos movimentos sociais, os quais só podem verdadeiramente atingir os seus objectivos e multiplicarem-se, num contexto de inconformismo social assumido, como aquele agora protagonizado pelos "indignados".
Não afasto por completo a possibilidade do entrelaçamento do movimento dos "indignados" com as outras esquerdas, aliás aparentemente muito mais fácil. Mas, nesse caso, haverá duas dificuldades que embaraçam o potencial de mudança dessas possíveis aproximações. Por um lado, embora daí possa sair um alargamento das frentes de protesto, dificilmente se entrará numa dinâmica transformadora da sociedade, conducente a outros modos de viver e de produzir. Por outro lado, sem absolver por completo os socialistas da tentação instrumentalizadora, não é realista ignorar-se que nas outras esquerdas essa tentação está inscrita muito mais profundamente no respectivo código genético. Ora, quanto maior for o êxito das tentativas de instrumentalização dos "indignados" maior será o risco da sua banalização; e consequente enfraquecimento.
3. E se olharmos, mesmo num breve relance, para o que se passa na vida recente dos partidos que integram o Partido Socialista Europeu, podemos verificar sem pessimismo que se acumulam sinais de alarme. Sem empolarmos a relevância dos resultados do PS nas recentes eleições na Madeira, não os podemos desconsiderar por completo: foram os piores desde a refundação da nossa democracia em 1974. Se olharmos para a Polónia, constatamos que os sociais-democratas polacos permanecem enterrados na irrelevância política, abaixo dos dez por cento, tendo sido ultrapassados por um partido de uma esquerda atípica, surgido de novo; e continuando assim a permitir que a alternativa de governo na Polónia se jogue entre liberais e conservadores. Para quem, no fim dos anos 90 do século XX, tinha feito eleger um Presidente da República e era o partido claramente liderante de um governo de esquerda é certamente uma enorme provação e um dramático retrocesso. Talvez, em parte, deva agradecer a sua decadência à docilidade com que seguiu Blair na sua lamentável aventura iraquiana. Os sociais-democratas dinamarqueses, à frente de uma coligação de esquerda, voltaram ao Governo, depois de uma cura de oposição de mais de dez anos, apesar de, enquanto partido isolado, terem tido os piores resultados dos últimos cem anos. Na Alemanha, em sucessivas eleições estaduais, tem-se solidificado o feliz prenúncio de uma derrota da direita, nas próximas eleições federais. Mas o Partido Social-democrata Alemão (SPD), força nuclear do PSE, tem beneficiado muito modestamente do recuo das direitas. Pelo contrário, têm sido os Verdes a aproveitá-lo, perfilando-se no horizonte um acréscimo espectacular da sua relevância política, em detrimento do SPD.
Neste panorama cinzento do espaço socialista europeu, irrompeu recentemente um sinal de efectiva novidade. Realmente, as primárias abertas a toda a esquerda, organizadas pelos socialistas franceses para escolher o candidato presidencial que vão apoiar, transformaram-se num facto político de enorme repercussão em França. O PSF tinha apontado um milhão de votantes como o patamar cuja superação significaria um êxito político claro. Na primeira volta, votaram mais de dois milhões e seiscentos mil eleitores e na segunda volta, disputada entre os dois candidatos mais votados na primeira, votaram mais de dois milhões e oitocentos mil votos, tendo triunfado François Hollande. Sabendo-se que o universo de membros inscritos no PSF ronda os cento e vinte mil, pode avaliar-se o significado e a importância das referidas primárias abertas.
4. Dada a história recente e a importância do PS na cena política portuguesa, compreende-se que ele esteja a atravessar uma fase muito complexa e difícil da sua vida. Mas não pode olvidar-se como é crucial, para si e para o país, que ouse viver uma metamorfose que verdadeiramente o coloque à altura dos desafios que o esperam. Por isso, o processo de alteração dos estatutos não pode vir a reduzir-se a uma sombra empobrecedora do que seria necessário pôr em prática.
É assim imprescindível que acordem os que tenham caído na ilusão perigosa de que a alteração dos estatutos do PS pode não ir além de uma esgrima subtil entre vírgulas e pontos finais, de um regateio entre artigos e alíneas, de um deslizar ronceiro de "poréms " e "todavias".
Em suma, não se pode repousar numa simples engenharia artesanal concebida para tapar pequenos buracos ou para espalhar subtis armadilhas mansas, destinadas a apanharem, com a doçura possível, algum infractor mais descarado ou mais estúpido. Isto é, todos aqueles que verdadeiramente seria escandaloso não deslegitimar. Percorra-se, pois, esse previsível rosário de pequenos detalhes, mas não se esqueça que eles apenas são uma modesta parte da superfície do que deve ser feito.
Usando uma metáfora clarificadora, é urgente deixarmos de ser um partido unidimensional, para darmos um passo inequívoco rumo à pluridimensionalidade. Ou seja, há que prosseguir na procura de uma melhoria clara da nossa capacidade de intervenção institucional, como partido que aspira exercer o poder democrático, em todas as instâncias do Estado Português e da União Europeia. Há mesmo que procurar o reforço dessa vocação, estreitando e enriquercendo os nossos laços com os cidadãos que integram o espaço social que se identifica politica e ideologicamente com o PS; e, muito especialmente, com o nosso eleitorado fiel, mesmo que sem menosprezo por aqueles que apenas irregularmente nos apoiam.
E, para isso, uma das vias mais relevantes é a realização de eleições primárias abertas para a escolha dos candidatos do PS a todas as eleições, com a natural diferenciação de processos correspondente às diferenças que as distinguem. Após o que se passou com os socialistas franceses seria de uma enorme miopia política insistir nos preconceitos que aprisionam o PS numa estrutura obsoleta e em preconceitos organizativos claramente passadistas.
Mas não basta ficarmos por aqui. É preciso criar raízes mais fundas na sociedade em que vivemos. E só um radical arejamento cívico pode dar ao PS energia para passar a ter um papel novo como impulsionador, aliado e globalizador dos movimentos sociais radicados em lógicas não-capitalistas. E só uma energia poderosa e nova o pode conduzir a essa nova intervenção em territórios politico-sociais dos quais sempre esteve ausente. Complementarmente, a intromissão do PS em novos territórios de acção política socialmente relevantes será um enorme factor de aproximação do PS aos movimentos de "indignados". Aprendendo a mover-se como força dinamizadora das sinergias entre estes três pólos, o PS terá alcançado a renovação de que necessita e terá oportunidade de viver a desejada metamorfose.
5. Por isso, repito-o, parece-me de uma enorme miopia política reduzir um indispensável processo de renovação do PS, com a amplitude suficiente para provocar a sua metamorfose, a uma modesta reforma estatutária, que não seja mais do que uma caricatura do que é realmente necessário.
Os sinais de aviso e de alarme vão-se acumulando. Ignorá-los pode ser devastador. Nas ruas parece crescer a indignação da esperança. Se não queremos murchar em conjunto com este tipo de sociedade, gerador de injustiça e potenciador de desigualdade, temos que ser capazes de fundir generosidades sem arrefecer a revolta. Mas, para isso, temos que ir muito além das rotinas mansas que se apossaram da luta política, fazendo com que ela mais pareça um ritual destinado a cumprir calendário, do que um combate que não se pode perder.