quinta-feira, 4 de maio de 2017

As eleições em França enquanto labirinto



As eleições em França enquanto labirinto

1. O suspiro de alívio posterior à primeira volta das eleições presidenciais francesas tem vindo a ser toldado por uma ligeira brisa de preocupação. A extrema-direita, que era dada como irremediavelmente batida, recusa  a dar-se antecipadamente por vencida.
A esgrima de golpes baixos e de pequenas traições, que caracterizou o relacionamento entre si dos atores de todo o resto do espetro político, torna difícil, mesmo aos estados-maiores partidários, juntarem-se numa marcha sem falhas que dê a vitória ao candidato nem de direita/ nem esquerda.
 Mas pior do que isso, a degradação da qualidade de vida  de uma grande parte dos setores populares e o dramático confisco de um futuro que lhes permita a esperança, tornam possível que as vitimas não se convençam a seguir na esteira de quem lhes promete a mesma desigualdade e a mesma subalternidade, mesmo que isso os leve por  caminhos de absoluto desastre. Ou seja, os eleitores populares podem ignorar as indicações de voto em quem se diz apostado em prosseguir a via neoliberal, ainda que temperada com algumas inovações. É um erro, é certo. Mas quem é colocado em situação de  desespero pode errar mais facilmente.
 É estranho? Talvez, mas é estúpido dar como certo que quem se vê excluído e desprezado, mergulhado na infelicidade e no medo, responda sempre com equilíbrio e inteligência às adversidades. Se os supostos  “crâneos” se extraviaram no labirinto das suas próprias subtilezas, como exigir que o povo aja sempre com a lucidez que eles antes não revelaram?

2.Se olharmos para a relação de forças revelada na primeira volta das eleições presidenciais francesas, podemos identificar cinco áreas politicamente demarcadas. Uma extrema- direita com 21,30%, uma direita com 24,71%, um centro de 24,01 %, uma esquerda com 25,94% e uma extrema-esquerda com 1,73%. A candidata da extrema-direita e o candidato do centro passaram à segunda volta.
Se compararmos estes resultados com os das primeiras voltas das três anteriores eleições presidenciais ( todas elas já  realizadas neste século), verificamos que o centro teve 6,84 em 2002, 18, 57 em 2007 e 9,3 em  2012; a extrema-direita teve 19,20 em 2002, 10,44 em 2007 e 17,90 em 2012; a direita teve 29,90 em 2002, 33,41 em 2007, 28,97 em 2012 e 24,71 em 2017; a esquerda teve 32,45 em 2002, 30,69 em 2007, 42,04 em 2012 e 25,94 em 2017.
Este conjunto de resultados mostra que a extrema-direita apenas se reforçou em pouco mais de três pontos percentuais desde 2012 e que já quase chegara aos 20% em 2002. Ou seja, a sua pujança não é uma novidade absoluta, mas principalmente  uma consequência do esvaimento dos outros setores políticos. Mostra também que o centro é realmente a área que mais cresceu em termos absolutos, sendo certo que, já em 2007, o seu candidato se aproximara dos 19 %.
A direita, cujo eixo principal é o partido gaullista (LR), teve  um desaire político importante, pelo facto de o seu candidato não ter passado à segunda volta, mas em número de votos não se desmoronou. O candidato dos LR teve menos 7% dos votos que tinha obtido o candidato do mesmo partido em 2012, em parte pelo escândalo em que se viu envolvido em plena campanha.
A esquerda, abrangendo as forças políticas apoiantes das candidaturas de Hamon e de Mélenchon, foi fortemente penalizada, tendo recuado no seu todo 16% desde 2012. Mas este número global oculta um fator de agravamento do significado deste recuo. De facto, o candidato do PSF, partido dominante que em 2012 colocara o seu candidato na Presidência da República, teve em 2017  menos 22% de votos em relação aos  que Hollande tivera em 2012 na primeira volta ( desceu de 28, 63 para 6,36 %). Em contrapartida, o candidato dos insubmissos, apoiado pelo Partido Comunista Francês e pelo Partido de Esquerda, ambos integrantes da Frente de Esquerda, subiu, relativamente a 2012, mais de 8% de votos (de 11,10 para 19,58 %).
Portanto, a mensagem mais forte que os resultados transmitem é uma drástica reprovação do eleitorado quanto à  Presidência de Hollande e à sua governação. O seu partido, o PSF, viu assim o seu candidato fortemente penalizado, tendo perdido eleitores, quer em benefício do centro quer em benefício do outro candidato de esquerda. Esta reprovação era suficientemente evidente para ter levado Hollande a não se recandidatar, o que nunca acontecera durante a Vª República com nenhum presidente cessante que se pudesse recandidatar. Os militantes e simpatizantes socialistas deram, aliás, um sinal de sentido idêntico, quando nas eleições primárias preferiram largamente um ex-mimistro que se demarcara da condução política de Hollande ao ex-primeiro ministro que mais emblematicamente a pusera em prática.
De facto, Hamon representou objetivamente uma tentativa  de quebrar a identificação do PSF com a política de Hollande; ou de pelo menos a relativizar. Esta via era estreita. Era difícil sair da sombra impopular de um Presidente da República  do mesmo partido sem claramente o criticar . E maiores foram as dificuldades, porque a ala direita do Partido Socialista, claramente vencida nas primárias, rompendo com a decência mínima de respeitar a palavra dada e um mínimo de lealdade partidária , foi tornando crescentemente ostensivo o seu apoio a Macron , o candidato centrista. 
E a insalubridade  ética  dessas manobras foi agravada  pelo facto desse candidato, ser um jovem politicamente inexistente que passou a existir rapidamente apenas  por ter sido cooptado por Hollande para seu conselheiro e mais tarde instalado como um importante ministro de Valls. E, parecendo de início ser um mero instrumento de arremesso no combate florentino entre Hollande e Valls, Macron viria a fazer-se gente entrando na grande politica pela pequena porta da traição aos seus dois padrinhos. Suprema ironia. O segundo dos apunhalados traiu depois a sua palavra em prol de quem o traíra, apoiando expressamente Macron contra Hamon ; e o primeiro foi obrigado agora a vir a público pugnar do alto da sua Presidência pela vitória de quem tão rasteiramente o traíra.
Defender que o arejamento político das propostas de Hamon  e uma alegada conotação com a ala esquerda do seu partido são as causas principais pela esqualidez do resultado que obteve como candidato do PSF, ronda a desonestidade intelectual ou é pura simplesmente um sinal de cretinismo político. Hollande governou em sentido oposto ao que prometeu como candidato e acabou por se dotar de um primeiro-ministro que dispunha de uma escassa base de apoio no eleitorado do PSF, quiçá mais disposto a destruí-lo do que a liderá-lo. O quinquénio hollandista enxovalhou pelas suas opções uma larga parte do povo de esquerda que o havia eleito. Teve já uma primeira resposta. Vejamos o que virá a seguir.

3. Para já, é ainda cedo para se falar no desmoronamento de um sistema político. Por enquanto, o que ocorreu foi um forte safanão no principal partido da esquerda francesa, havendo ainda o risco de esse safanão o poder atingir mais profundamente nas próximas eleições legislativas.
Se Macron, como parece muito provável, for o vencedor das eleições presidenciais, será transferida para as legislativas a decisão do combate político em curso. Macron vai procurar dotar-se de uma maioria presidencial que lhe permita governar segundo o seu programa. É muito duvidoso que o consiga.
Falta saber se conseguirá sequer suscitar uma coligação entre os deputados do seu partido e um ou mais parceiros. Que parceiros ? Os socialistas do PSF ? Os gaullistas dos LR? Qual a força de atração que exercerá sobre outras forças de esquerda menos relevantes  como é o caso dos Verdes e dos Radicais de esquerda ? Ou sobre outras forças de direita, como é o caso dos centristas que eram aliados históricos dos LR?  O novo partido de Macron ( “En Marche”) absorverá por completo os centristas tradicionais apoiantes de  François Bayrou ? Enfim, muitas dúvidas, muitas incertezas.
Incertezas que , aliás, se complicam pela escassez de tempo que vai decorrer entre a segunda volta das Presidenciais e a primeira das Legislativas. Complicação acrescida por uma combinação explosiva entre o sistema eleitoral francês e a relação de forças política que a primeira volta sugere.
De facto, o sistema uninominal a duas voltas vigente em França garante que disputarão a segunda volta os dois candidatos mais votados na primeira volta  em cada círculo eleitoral, mas permite que outros candidatos, além deles,  também o possam fazer, desde que tenham obtido na primeira volta pelo menos 12.5% de votos em relação aos eleitores inscritos. Na relação de forças habitual, entre 577 círculos eleitorais, as disputas tripartidas na segunda volta, em regra, atingiam as escassas dezenas, não havendo disputas quadripartidas. Ora, cálculos ainda grosseiros, a partir da relação de forças atual, apontam para a possibilidade de mais de 250 disputas  tripartidas e de alguma dezenas de quadripartidas.  A hipótese de a Frente Nacional, exceder muito o seu deputado atual, aumenta exponencialmente; e a incerteza quanto aos resultados finais aumenta ainda mais.
A importância  de acordos entre as várias forças políticas cresce muito. Quer desde logo na possível renúncia cruzada a ter candidatos em certos círculos na primeira volta, mas também depois nas desistências na segunda volta de candidatos de certos partidos em favor de candidatos de outros.
Conseguirá a direita continuar sem fazer acordos com a FN? Se continuar a ser essa a ser a decisão oficial dos partidos de direita, serão obedecidos em todos os casos?  Haverá algum acordo entre os LR e o partido de Macron para desistências mútuas? E entre estes e os socialistas? E estes últimos continuarão a ter acordos com os Verdes e os radicais de esquerda? E haverá acordos de apoio cruzado e desistências entre os socialistas e os insubmissos de Mélenchon ? No quadro destes últimos, os comunistas do PCF agirão com autonomia? Múltiplas perguntam, enormes dúvidas.
Dúvidas acrescidas pelo facto de não ser certo que os resultados da recente primeira volta se repitam , mesmo aproximadamente, nas legislativas. O que se projeta quer na possível força do PSF, quer na do partido de Macron, quer nos insubmissos de Mélenchon. Ora, a dúvida sobre a força real de cada um deles é um fator suplementar de incerteza em quaisquer negociações.
O PSF, tal como o LR, ao relacionar-se com o partido de Macron não pode menosprezar o facto dele assentar a sua expetativa de afirmação e crescimento na destruição desses dois partidos, em especial do PSF. Este aliás, além de correr o risco de se partir antes das eleições, or causa das candidaturas, corre ainda o  risco de uma divisão grave entre os que prefiram depois  aliar-se a Macron e os que prefiram aliar-se a Mélenchon. Entram ou não na nova maioria presidencial ? Se sim, deixam a outros o protagonismo da oposição a uma política de cariz neoliberal; se não, deixam à direita o exclusivo de uma aliança com Macron ? Uma ou outra opção podem ter consequências eleitorais logo na segunda volta; e mais tarde podem suscitar clivagens dramáticas. Clivagens entre fações do partido ou, mais grave, clivagens entre o partido e os seus eleitores que podem vir a abandoná-lo, como já aconteceu na Grécia, na Polónia, na Hungria e , mais recentemente, na Holanda. Mas que um partido de esquerda perca apoio por agir como se fosse de direita ( aconteceu assim nos casos citados atrás) é estruturalmente mais perigoso do que perder por ser fiel à sua identidade.

4. Para concluir, é legítimo afirmar-se que os dois processos eleitorais, que se iniciaram em França e terminarão nos próximos meses, configuram um verdadeiro labirinto político, cuja principal raiz está na incapacidade da esquerda francesa no seu todo responder aos desafios predatórios do neoliberalismo. Um neoliberalismo que se apossou já das instâncias europeias, confiscando-as em benefício da sua lógica destrutiva.

 Mas há um labirinto que se se sobrepõe a esse. É o labirinto de pequenas e grandes explicações e pseudoexplicações que, no essencial, visam mais iludir-nos sobre o que se está a passar do que ajudar-nos a compreender.

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