Está instalado no espaço mediático um enorme embuste, gerado por uma manobra política que transgride a ordem constitucional vigente. Trata-se de fazer esquecer que a aliança eleitoral de direita só ganhará as eleições se tiver maioria absoluta. Falhado esse objectivo será politicamente derrotada. Não terá qualquer legitimidade para ser sequer convidada a formar governo. Ora, nem as sondagens domésticas inventadas pelos partidos do governo ousaram apontar para esse resultado. Modestamente, não se atreveram a mais do que ficcionar uma vantagem da soma dos dois partidos da coligação em face do PS. Não tendo também ousado, mesmo nessas sondagens domésticas,sugerir que o PSD , por si só teria mais deputados do que o PS.Para não se arrastarem pela campanha com uma derrota pendurada no pescoço,tentados pela vertigem do poder mesmo que o povo os não queira, só lhes restou ficcionar um caminho tortuoso, mesmo entrando no terreno fugidio do desrespeito pela ordem juridico-constitucional. É a denúncia dessa verdadeira tentativa de golpe de Estado que fiz num texto que ontem foi publicado no Jornal I. Deixo-o à vossa consideração.
Contra o golpe de
Estado deslizante
"Está em marcha a tentativa de um subtil
golpe de Estado. Quer garantir que o PSD e o CDS permaneçam no poder mesmo sem
uma maioria absoluta. Depende, portanto, da remota hipótese de a soma dos
deputados do PSD e do CDS exceder a do PS; e só será necessário se a direita
não obtiver maioria absoluta. A opinião pública foi preparada para aceitar como
legítimo o resultado pretendido, inculcando-se-lhe a ilusão de que o objectivo
do golpe cabe na ordem jurídico-constitucional.
As esquerdas não lhe têm dado
importância. Ou por entenderem que a tentativa em causa pressupõe um cenário
político improvável, ou por acharem que podiam beneficiar eleitoralmente com
ele, ao acirrarem-se os receios de um êxito do actual governo. A probabilidade
de o PSD e o CDS somados terem mais deputados do que o PS é remota, mas existe.
A hipótese de uma maioria absoluta de direita é pura retórica propagandística.
Mas tentativa de golpe não deve ser ignorada.
Nestas eleições, o PS disputa, com o PSD
e o CDS coligados, a maioria absoluta. Se não a obtiverem, deverá ser chamado a
formar governo o partido com o maior número de deputados. Isto é, o PS, já que
o PSD, isoladamente, a fazer fé nas sondagens, não tem hipóteses de ser o
partido com o maior número de deputados. Portanto, ou o PSD e o CDS coligados
têm maioria absoluta e ganham as eleições, ou perdem-nas; e o PS, como partido
mais votado, é chamado a formar governo, quer tenha maioria absoluta, quer seja
apenas o maior partido.
Na verdade, o PSD e o CDS coligaram-se,
não se fundiram. E a Constituição dá ao PR o poder de nomeação do
primeiro-ministro, “ouvidos os partidos representados na Assembleia da
República e tendo em conta os resultados eleitorais” (art.o 187).
Constitucionalmente, apenas são relevantes os partidos políticos. As
coligações, juridicamente, caducam no dia das eleições (formando grupos
parlamentares autónomos). Podem apenas manter-se no plano político. A
competência do PR é, pois, condicionada. Ele tem de ouvir os partidos políticos
para depois decidir, tendo em conta os resultados eleitorais. Não pode
ficcionar a subsistência jurídico-constitucional de uma coligação que se
extinguiu, nem pode ignorar o que lhe disserem os partidos.
Ora, a conjugação dos calendários
eleitorais inviabiliza a realização de novas eleições legislativas durante
meses. Assim, quem for encarregado de formar governo pode permanecer nele quase
um ano, independentemente da vontade dos deputados. Isto é, se o PSD e o CDS,
mesmo não obtendo maioria absoluta, fossem chamados a formar governo, isso
implicava que, tendo sido expulsos do poder pelos eleitores, continuassem a
governar. Seria um ataque contundente à democracia.
O plano em causa implica também que
recaiam sobre o PS as dificuldades geradas pelo golpe. Esperar-se-ia que
chovessem sobre ele as maiores pressões para que viabilizasse o novo poder
ilegítimo; nacionais e internacionais, de poderes económicos e políticos, dos
“mercados” e do complexo mediático. O PS teria de escolher entre resistir a
pressões brutais e implacáveis ou ceder. Cedendo, provavelmente, estaria
condenado a murchar no plano eleitoral e a fragmentar-se. Resistindo, estaria
sob um fogo implacável.
Par além disso, o golpe procura tornar
político-institucionalmente irrelevantes os outros partidos de esquerda – ou
seja, desconsiderar quase um quinto do eleitorado. Esta agressão à legitimidade
democrática seria um verdadeiro golpe de Estado deslizante, devastador para a
paz social e para a credibilidade da democracia.
Por isso, os partidos de esquerda só
podem repudiar essa tentativa, tornando claro que apresentarão uma moção de
rejeição de qualquer governo PSD/ CDS, tenha ele ou não maioria absoluta. Se o
fizerem, a natureza do golpe ficará a descoberto no seu grosseiro desrespeito
pela ordem constitucional. Desmascarado, dificilmente poderá prosseguir."
Rui Namorado - Professor jubilado da Universidade de Coimbra [02/09/2015]
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