sábado, 5 de setembro de 2015

A justiça é realmente cega?



Fiquei siderado pelo que acabei de ouvir na conferência de imprensa dada pelos advogados de José Sócrates. A leitura mais pessimista do respectivo processo, no plano da qualidade do nosso sistema judicial, do grau de credibilidade da protecção das liberdades cívicas que ele faculta, foi gritantemente sublinhada. 
E não há dúvida que é difícil imaginar-se que uma tão baixa qualidade de desempenho das entidades públicas envolvidas neste processo seja  apenas o resultado de um episódico tropeção de dois ou três responsáveis , tendo sido apenas a má sorte que fez com que o alvo fosse um antigo primeiro-ministro, que por mero acaso o foi em representação do PS. É pelo menos tão improvável como cada um de nós ganhar o primeiro prémio do euromilhões.
Mais provável do que este rosário de azares é o de haver um propósito no lançamento deste caso com estas características. Não é possível termos certezas, mas podemos fazer conjecturas, algumas das quais verosímeis. E é legítimo que nos interroguemos.
A escolha do alvo tem alguma coisa a ver com uma pulsão revanchista de certas categorias profissionais ligadas à justiça que se sentiram lesadas pela governação de José Sócrates? Ou essa escolha tem apenas a ver com uma especial antipatia episódica de quatro ou cinco magistrados para com um antigo primeiro-ministro? Ou essa escolha traduz no essencial uma opção de combate ao PS através de alguém que representou o partido à frente do Governo?
Qualquer destas hipóteses representaria uma gravíssima instrumentalização do aparelho judicial para uma interferência ilegítima e ilegal no processo político.
Mas se nenhuma destas hipóteses corresponder à verdade , nem por isso poderemos esperar tranquilamente que se faça justiça. De facto, os atropelos detectados na condução deste processo pela maior parte das entidades públicas que nele intervieram, se não foram especialmente causados pela identidade do visado, podem ser a má sorte de qualquer cidadão. Isto significa que a democracia conquistada  , além de outras mazelas, sofre agora de uma anemia aguda do nosso sistema de aplicação da justiça, quando se trata de proteger os direitos dos cidadãos. A gravidade desta hipótese é diferente da anterior , mas não é menor.

Deixemos pois a justiça funcionar, mas estejamos atentos ao seu funcionamento. Não nos esqueçamos que ela só é legítima e só tem base legal por ser exercida em nome do povo. Em nosso nome, portanto. Ora, por aquilo que outros fazem em nosso nome também nós somos responsáveis. Por isso, há uma responsabilidade cívica a que não devemos fugir: a  de escrutinarmos  a qualidade da justiça prestada. Haver crimes por descobrir, criminosos por punir, inocentes condenados, cidadãos que são incomodados pelo aparelho judicial por razões extra judiciais, haver arguidos cujos direitos processuais não são escrupulosamente respeitados, haver vítimas que não são protegidas e ressarcidas, são delitos básicos na aplicação da justiça que não podem ser consentidos, que se forem aceites como possíveis ou até como naturais degradarão profundamente a qualidade da nossa democracia.

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