Fiquei siderado pelo que acabei de ouvir na conferência de
imprensa dada pelos advogados de José Sócrates. A leitura mais pessimista do respectivo
processo, no plano da qualidade do nosso sistema judicial, do grau de
credibilidade da protecção das liberdades cívicas que ele faculta, foi
gritantemente sublinhada.
E não há dúvida que é difícil imaginar-se que uma tão baixa qualidade de desempenho
das entidades públicas envolvidas neste processo seja apenas o resultado de um episódico tropeção de
dois ou três responsáveis , tendo sido apenas a má sorte que fez com que o alvo
fosse um antigo primeiro-ministro, que por mero acaso o foi em representação do
PS. É pelo menos tão improvável como cada um de nós ganhar o primeiro prémio do
euromilhões.
Mais provável do que este rosário de azares é o de haver um
propósito no lançamento deste caso com estas características. Não é possível termos
certezas, mas podemos fazer conjecturas, algumas das quais verosímeis. E é legítimo que nos interroguemos.
A escolha do alvo tem alguma coisa a ver com uma pulsão
revanchista de certas categorias profissionais ligadas à justiça que se
sentiram lesadas pela governação de José Sócrates? Ou essa escolha tem apenas a
ver com uma especial antipatia episódica de quatro ou cinco magistrados para
com um antigo primeiro-ministro? Ou essa escolha traduz no essencial uma opção
de combate ao PS através de alguém que representou o partido à frente do
Governo?
Qualquer destas hipóteses representaria uma gravíssima
instrumentalização do aparelho judicial para uma interferência ilegítima e
ilegal no processo político.
Mas se nenhuma destas hipóteses corresponder à verdade , nem
por isso poderemos esperar tranquilamente que se faça justiça. De facto, os
atropelos detectados na condução deste processo pela maior parte das entidades
públicas que nele intervieram, se não foram especialmente causados pela
identidade do visado, podem ser a má sorte de qualquer cidadão. Isto significa que
a democracia conquistada , além de
outras mazelas, sofre agora de uma anemia aguda do nosso sistema de aplicação
da justiça, quando se trata de proteger os direitos dos cidadãos. A gravidade desta hipótese é diferente da anterior , mas não
é menor.
Deixemos pois a justiça funcionar, mas estejamos atentos ao
seu funcionamento. Não nos esqueçamos que ela só é legítima e só tem base legal
por ser exercida em nome do povo. Em nosso nome, portanto. Ora, por aquilo que
outros fazem em nosso nome também nós somos responsáveis. Por isso, há uma
responsabilidade cívica a que não devemos fugir: a de escrutinarmos a qualidade da justiça prestada. Haver crimes
por descobrir, criminosos por punir, inocentes condenados, cidadãos que são
incomodados pelo aparelho judicial por razões extra judiciais, haver arguidos
cujos direitos processuais não são escrupulosamente respeitados, haver vítimas
que não são protegidas e ressarcidas, são delitos básicos na aplicação da
justiça que não podem ser consentidos, que se forem aceites como possíveis ou
até como naturais degradarão profundamente a qualidade da nossa democracia.
democraciademocraciademocracia.
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