terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Esquerda


Se a esquerda se deixar diluir na sombra das revoluções perdidas como simples saudade, arrisca-se a rapidamente se transformar num museu de si própria.

Mas será realista continuar a conjugar futuro com esperança num país, num continente, num mundo, onde a esquerda se tenha esvaído nos seus próprios atalhos?

Se a história fosse um destino que nos esperasse, talvez pudéssemos repousar na generosidade das nossas utopias. Mas é, talvez, antes um leque de caminhos que nos desafia a descobrir qual deles nos levará mais facilmente para um horizonte verdadeiramente nosso. Um leque, ele próprio, em mutação, já que dentro dele se vai mudando a sede da vocação futurante, bem como o lugar da vertigem de abismo de alguns dos caminhos que o compõem.

Mas se é certo que a esquerda depende do oxigénio da liberdade, ela perde-se irremediavelmente se consente no adiamento da igualdade, ou se permite que a aprisionem na complacência perante o que é injusto no mundo de hoje. Por isso, a esquerda não pode estar em paz com as guerras, nem com a fome, nem com a miséria, nem com a insalubridade das condições sociais de vida, nem com a degradação do ambiente.

As velhas narrativas da esperança liam-se confiantemente como futuro. Mas o futuro que julgaram poder colher foi-lhes fugindo persistentemente. E, no entanto, talvez não estivessem enganadas. Apenas terão julgado que entre o inebriamento do efémero e o ar fresco de uma respiração livre, que entre a vertigem do auto-aniquilamento e a planície dos sonhos cumpridos, as sociedades fariam a escolha óbvia. Não fizeram. E não sei se, verdadeiramente, as inesperadas vias percorridas no último século foram uma escolha ou uma desastrosa inércia. Mas a sofreguidão dos caminhos próprios do capitalismo trouxe-nos para um mundo em que persistem as razões de rejeição dos que sonharam superá-lo, agora tragicamente acentuadas. Por isso, onde antes a esperança se perfilava como um desafio ao que era plúmbeo na circunstância de então, há hoje um perfume crescente de tragédia.

A esquerda não é já apenas protagonista das narrativas da esperança, já que se tornou na única narrativa realista da sobrevivência da humanidade. Num mundo em que as mais poderosas estruturas e as mais insidiosas mistificações segregam, dia após dia, a ocultação da realidade, guiando-nos para novos abismos com a alegação de que nos levam pelo único caminho possível, é difícil romper essas brumas, para trazer para a luz a imagem completa e real dos desafios que se colocam perante o mundo actual.

Se a esquerda consentir na dissimulação evanescente do capitalismo, deixando-o refugiar-se no conforto de uma imaginária inexistência, limitando-se a seguir agendas conjunturais , dilacerando-se numa surda guerra civil entre as suas várias componentes, não estará apenas a suicidar-se estupidamente, como se fosse burra, estará a dar um forte contributo para a inviabilidade das sociedades humanas, ou a contribuir para que no futuro sejam mais prováveis pesadelos do que paraísos.

Por isso, é indispensável que a esquerda, toda a esquerda, aprenda a rever-se na sua própria pluralidade, para que possa saber distinguir a rivalidade interna como emulação fraterna, da conflitualidade com a direita como contexto da decisão estratégica. Por isso é indispensável que a esquerda aprenda a gerir o capitalismo sem renunciar a pilotar o seu abandono, que aprenda a ser paciente e flexível no modo de caminhar, mas intransigente e firme quanto aos objectivos últimos, na partilha de um horizonte socialista.

Nas sociedades actuais, predominantemente capitalistas, a esquerda é ainda estruturalmente subalterna, mesmo que estejam ao leme dos respectivos países governos nacionais de forças políticas de esquerda. E mesmo que a esquerda também lute entre si, não deixa de continuar a ser o combate essencial, o confronto com a direita.

Por isso, nem se pode confundir a acção política transformadora com uma simples engenharia economicista que procure esculpir a sociedade como se ela não estivesse viva e em movimento, nem reduzi-la a uma agenda generosa de gestão corrente do capitalismo com umas pitadas de social, pautada pelas balizas inventadas pelos ideólogos da conservação do capitalismo.

2 comentários:

gui castro felga disse...

texto denso (subtexto e entrelinhas que não sei se leio em todas as suas dimensões), muito interessante e inquietante. concordo com uma data de coisas. falta o modus operandi...

ando presa ao porto (por portas por lixar, paredes por pintar, entulho e coisas que tais) por isso ainda não te fui chatear a coimbra... e portanto cá vai o convite: que tal se dessem um saltinho cá um dia destes? vias o meu work in progress (dois anos, já passa, and counting, as capelas imperfeitas...), conversávamos sem hora de ir embora, jantávamos os cinco... gostava(mos) muito.

e às vezes o porto faz bem às almas esquerdistas desalinhadas e revoltosas quanto ao mundo-que-há... =)

Anónimo disse...

Olá!

Se for possível, objectivamente, será um óptimo convívio.

Vamos a ver.

RN