Entre os debates emergentes, que a pouco e pouco se vêm aproximando da centralidade nas preocupações dos cidadãos, está o que se vem travando, com grande ressonância na política autárquica, sobre as cidades, sobre o modo de as valorizar como focos geradores de uma nova qualidade de vida. As pequenas, as médias, as grandes cidades, bem como as grandes metrópoles de relevo mundial, têm seguramente problemas diferentes. Diferença também marcada pela identidade dos povos em que se radicam, pelo tipo de países a que pertencem, pelas culturas que nelas predominam. Mas muitas são as problemáticas semelhantes que as agitam e muito há a esperar da ponderação comparada entre o que, para além das suas diferenças, há de comum entre elas.
Pareceu-me por isso interessante, dar a conhecer neste blog um texto recentemente divulgado na excelente revista brasileira de grande circulação, CartaCapital. O seu autor é um arquitecto italiano de relevo mundial, Massimiliano Fuksas, (65 anos).
Nestes, como em muitos outros domínios, uma imaginação criativa do futuro é meio caminho andado para se chegar até ele. Por isso, sem que com ele concorde totalmente, mas pelo facto de admirar o seu rasgo futurante, resolvi transcrever o referido texto. Ei-lo.
O caos sublime e a boa vizinhança
"A arquitetura extrapolou definitivamente os seus restritos limites e investiga territórios e realidades que protagonizam mudanças substanciais e repentinas. Fases de crise alternam-se de forma esquizofrênica a momentos de desenvolvimento, segundo regras incompreensíveis. Às dificuldades dos analistas de compreender as causas, contrapõe-se àquilo que eu defino como “o caos sublime”. Não se trata, este caos, de uma desordem desencadeada por desastres sociais e econômicos, mas uma maneira diferente de viver à procura das relações entre seres humanos. Do estudo e da atenção dirigidos às diversas formas de realidade humana e urbana surgirá uma forma (um mundo?) livre do peso do passado, com o olhar para um presente atento às consequências de nossas ações em prol do futuro. A arquitetura e os materiais aspiram a se tornar mais que simples realidade. As megalópoles e as periferias representam também as aspirações dos moradores de abandonar a condição de meros agregados urbanos. A cidade, ou aquele diabólico “magma” que ainda teimamos em assim chamar, deseja transformar-se em outra realidade. É nossa tarefa ajudá-la, depois de ter compreendido as razões e os sentimentos envolvidos nesse processo. As pessoas escolhem sempre habitar as áreas urbanas, apesar de, nelas, viverem pior, não melhor. No entanto, a cidade é o lugar da economia, da troca, da possibilidade de enriquecer. A cidade é a contradição contínua e excitante. É gente que você encontra, o estresse que tolera, os perigos aos quais vai de encontro, os interesses e as curiosidades que satisfaz. A cidade, enfim, é o tempo que vivemos. É a contemporaneidade, é não se considerar um marginal. Não se pode mais aceitar a estrutura colossal que nos liga ao antigo sistema inglês, das artérias de ligação concêntricas, que agora somente servem para conter a invasão dos “nômades urbanos” nas zonas verdes públicas do centro, um modo de ver a cidade derrotada pelo peso do trânsito descomunal. Para trabalhar em uma cidade, é necessário aceitar de forma inevitável a sua lógica e as suas características. Precisamos operar no interior desse caos. Mas a regra vale para qualquer aglomerado urbano de grandes dimensões que a cada dia vive o assalto de novos fluxos imigratórios e deve, por isso, levar em conta a poluição e o tráfego, os engarrafamentos, a velha e a nova pobreza, muitas vezes com o desespero profundo de grupos sociais de todo marginalizados. Uma cidade que funciona bem, em um certo sentido, é Tóquio. Sem nenhum plano, sem nenhum projeto. Instintivamente se deu, ali, uma dupla estrutura. De um lado, os arranha-céus, os edifícios do trabalho ou a verticalidade frequentemente multifuncional, já que em um plano há um museu e, em outro, algumas moradias. Do outro, as tradições, as velhas casas baixas, até os casebres precários, como em uma cidade italiana do sul assolada por terremoto. Porém, Tóquio não somente escapou da explosão, depois de ter adotado instintivamente, e sem nenhuma programação vinda do alto, o modelo duplo (ou seja, a verticalização associada à horizontalização), como melhorou. Seus moradores descobriram o prazer da vida de bairro, afeiçoando-se a seus sushibars, a seus espaços, a seus teatros. Esta é a complexidade de uma metrópole resolvida sem a presunção de que tudo ganhe o toque de um “bruxo curandeiro” ali aportado, movido por um plano a inventar regras, a arrumar o que não pode ser arrumado. Le Corbusier também apoiava as vantagens da concentração da construção vertical em relação à horizontalização das cidades-jardim, a economia do espaço, do máximo aproveitamento de uma só área. A diferença fundamental entre metrópole e megalópole não é a quantidade dos habitantes, mas a aceleração do crescimento. Na Europa não existem, pelo menos até agora, megalópoles, somente metrópoles. Megalópoles são Kuala Lumpur, Daca e Calcutá. A megalópole é, enfim, a moderna representação do nomadismo. O agregado desloca-se, modifica-se continuamente, é algo dúctil. A megalópole, muitas vezes, não tem sequer um centro, não é policêntrica como a metrópole. Há duas formas de “fazer urbanística” que lembram outras tantas formas de cozinhar. O primeiro sistema é compilar uma bela lista, ir ao mercado e comprar todo ingrediente requerido, ainda que passado. O outro sistema prevê ir ao mercado e escolher as mercadorias com base em seu frescor. Sou apegado a esta segunda lógica: vou ao mercado da cidade, ou mesmo da megalópole, e procedo usando o que encontro. É necessário superar a lógica do passado, que previa uma cidade dividida em zonas e em áreas de interesse: as habitações privadas, os escritórios e o trabalho, o comércio, a diversão. É preciso promover um mix de todos esses componentes. Seria uma forma de exorcizar um problema, relativo à nossa incapacidade de controlar formas mais articuladas e fragmentadas. Misturar necessidades diferentes significa experimentar e acompanhar as mil contradições do nosso tempo. E nesse ponto é que voltamos ao “caos sublime”. Gosto de lembrar que a palavra sublime origina-se do latim sub-limus, ou seja, que sobe de forma oblíqua. Por isso pode-se prever um início partindo do que está embaixo, das necessidades espontâneas, das necessidades reais de gente que mora na cidade e gera o caos, porém se eleva para o alto, porque a aspiração a uma vida digna de ser vivida é comum a todos os seres humanos. No imediato pós-guerra, os problemas urbanísticos eram bem menos espantosos e angustiantes. Tratava-se, no fundo, de reconstruir áreas bombardeadas e destinar áreas campestres a uma urbanização mais ou menos controlada. Houve o período do dirigismo, da cega confiança nos planos reguladores e no projeto grandioso. Vale pensar, para citar um dos modelos mais famosos e imponentes, a Brasília de Niemeyer, a Daca de Louis Kahan ou a Chandigarh do mesmo Le Corbusier. Observando hoje essas cidades, seus únicos lugares onde se vive bem são aqueles espontâneos. Como os aglomerados em volta das paradas de ônibus que se tornaram mercados e locais de encontro. Esta é a escolha da gente que mora nos lugares nascidos de um plano. Não é culpa dos urbanistas, dos projetistas. Não é culpa dos habitantes, que talvez “não entendam” ou “não apreciem” os projetos. Estou convencido de que qualquer morador de Brasília ou do Corviale em Roma, caso imaginasse uma solução de moradia, pensaria em uma pequena casa com alpendre, mesmo se erguida de simples caniços. É uma perspectiva muito mais humana. O forte crescimento econômico do Brasil tem São Paulo como coração financeiro e centro de acumulação. O desenvolvimento de São Paulo produziu uma megalópole de 12 milhões de habitantes, mas, levando-se em conta as povoações limítrofes, supera-se em muito este número. A área de São Paulo tem, portanto, aproximadamente 20 milhões de habitantes. A indústria de construção presente na cidade deve ser sua principal fonte de recursos. Observando-se São Paulo do alto, de uma torre da marginal do Pinheiros, por exemplo, obtém-se um skyline voltado para o alto. Os canteiros de obras atualmente ocupam cada área livre disponível. Um rio lamacento, entre os mais poluídos (e esta questão, sempre presente na plataforma de cada político no poder, jamais é resolvida), caminha pelas construções. A insuficiência de um sistema de transporte público veloz como o Metrô e outras ligações sobre trilhos decidiu que a cidade fosse asfixiada pelo trânsito. O desenvolvimento da megalópole não concede nada à arquitetura. Sobre master plans odiosamente repetitivos aparecerão edifícios de grandes escritórios comerciais americanos, isto no melhor dos casos. A equação entre desenvolvimento, modernismo e arquitetura não parece tão evidente. As torres em construção são, em sua maioria, destinadas a residências, e podemos dizer que possuem duas “filosofias”. A primeira: são paralelepípedos verticais aos quais os arquitetos condescendentes devem dar uma fachada vendável. A segunda: as torres são revestidas com decoração e molduras que se reportam vagamente a um estilo entre as beaux arts e a art déco. Por sorte, o Brasil possui uma sólida tradição moderna, que prossegue com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha e com o centenário Oscar Niemeyer. Não podemos nos esquecer de Lina Bo Bardi, com seu museu-ponte em São Paulo, o Masp, e o centro cultural recuperado de uma antiga fábrica, o Sesc Pompeia. O prefeito decidiu iniciar seu mandato eliminando todos os paineis publicitários que invadiam a cidade. Caso fosse perguntado aos cidadãos o que lhes poderia ser mais útil, a resposta seria sempre a mesma: uma grande rede de Metrô. A cidade agredida pelo trânsito naturalmente se orienta para a vida de bairro. Aquilo que os urbanistas e os políticos não foram capazes de fazer, isto é, uma mistura de residências e escritórios, serviços e verde, os cidadãos construíram sozinhos, ao escolher viver nos bairros em que trabalham. Deste modo, este espaço foi redefinido para abrigar o tempo livre e a cultura de seus habitantes e promovido ao velho e eterno conceito de “vilarejo”. São Paulo pode assim tornar-se uma cidade onde se experimenta a possibilidade de fazer conviver o muito grande, a megalópole, com o muito pequeno, o “bairro”.
2 comentários:
não conhecia este texto. gostei. partilhei-o no facebook, numa plataforma sobre arquitectura e os problemas laborais dos arquitectos (maldita arquitectura, chama-se). abraço
Que atinência na tautologia gripada..!
Nestes tempos do dia maior e do dia menor há-de haver sempre alguém que respingue uns ditongos a mais. Só que a natureza, não sendo vingadora, vai-nos tramando dia a dia com a conformidade da sua vitória final e sempre-eterna. E é nisto que temos de pensar!
Até agora cada homem colheu e colhe para si ou tenta colher uns derivados naturais que julga ser só dele, e, então, toca de lhe dar um timbre que julga diferente, de outro mundo, do mundo dele, mas que afinal não passa da sua própria natureza.
Parece que alguém quer que vivamos a mundividência de Darwin? Pois sim. Não era mau rapaz..!
Parece que alguém quer viver o ideal de Voltaire. Pois bem, tratem de expurgar a malidecência concebida deste último século e dos anos seguintes..!
Até parece que estando encostado ao muro-da mentira-hoje-poder-dar-lhe-á grande jeito.
Mas não é verdade. Hoje reina a mentira, parecendo que é verdade. E o que interessa de facto é a verdade mesmo que pareça uma mentira. Só há é que desmistifá-la.
Boas Festas do vosso amigo/desconhecido "O Catraio"
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