As
eleições em França enquanto labirinto
1.
O suspiro de alívio posterior à primeira volta das eleições presidenciais
francesas tem vindo a ser toldado por uma ligeira brisa de preocupação. A
extrema-direita, que era dada como irremediavelmente batida, recusa a dar-se antecipadamente por vencida.
A esgrima de golpes
baixos e de pequenas traições, que caracterizou o relacionamento entre si dos
atores de todo o resto do espetro político, torna difícil, mesmo aos
estados-maiores partidários, juntarem-se numa marcha sem falhas que dê a vitória
ao candidato nem de direita/ nem esquerda.
Mas pior do que isso, a degradação da
qualidade de vida de uma grande parte
dos setores populares e o dramático confisco de um futuro que lhes permita a
esperança, tornam possível que as vitimas não se convençam a seguir na esteira
de quem lhes promete a mesma desigualdade e a mesma subalternidade, mesmo que
isso os leve por caminhos de absoluto
desastre. Ou seja, os eleitores populares podem ignorar as indicações de voto
em quem se diz apostado em prosseguir a via neoliberal, ainda que temperada com
algumas inovações. É um erro, é certo. Mas quem é colocado em situação de desespero pode errar mais facilmente.
É estranho? Talvez, mas é estúpido dar como
certo que quem se vê excluído e desprezado, mergulhado na infelicidade e no
medo, responda sempre com equilíbrio e inteligência às adversidades. Se os
supostos “crâneos” se extraviaram no
labirinto das suas próprias subtilezas, como exigir que o povo aja sempre com a
lucidez que eles antes não revelaram?
2.Se
olharmos para a relação de forças revelada na primeira volta das eleições presidenciais
francesas, podemos identificar cinco áreas politicamente demarcadas. Uma
extrema- direita com 21,30%, uma direita com 24,71%, um centro de 24,01 %, uma
esquerda com 25,94% e uma extrema-esquerda com 1,73%. A candidata da
extrema-direita e o candidato do centro passaram à segunda volta.
Se compararmos estes
resultados com os das primeiras voltas das três anteriores eleições
presidenciais ( todas elas já realizadas
neste século), verificamos que o centro teve 6,84 em 2002, 18, 57 em 2007 e 9,3
em 2012; a extrema-direita teve 19,20 em
2002, 10,44 em 2007 e 17,90 em 2012; a direita teve 29,90 em 2002, 33,41 em
2007, 28,97 em 2012 e 24,71 em 2017; a esquerda teve 32,45 em 2002, 30,69 em
2007, 42,04 em 2012 e 25,94 em 2017.
Este conjunto de
resultados mostra que a extrema-direita apenas se reforçou em pouco mais de
três pontos percentuais desde 2012 e que já quase chegara aos 20% em 2002. Ou
seja, a sua pujança não é uma novidade absoluta, mas principalmente uma consequência do esvaimento dos outros
setores políticos. Mostra também que o centro é realmente a área que mais
cresceu em termos absolutos, sendo certo que, já em 2007, o seu candidato se
aproximara dos 19 %.
A direita, cujo eixo
principal é o partido gaullista (LR), teve
um desaire político importante, pelo facto de o seu candidato não ter
passado à segunda volta, mas em número de votos não se desmoronou. O candidato
dos LR teve menos 7% dos votos que tinha obtido o candidato do mesmo partido em
2012, em parte pelo escândalo em que se viu envolvido em plena campanha.
A esquerda, abrangendo
as forças políticas apoiantes das candidaturas de Hamon e de Mélenchon, foi
fortemente penalizada, tendo recuado no seu todo 16% desde 2012. Mas este
número global oculta um fator de agravamento do significado deste recuo. De
facto, o candidato do PSF, partido dominante que em 2012 colocara o seu
candidato na Presidência da República, teve em 2017 menos 22% de votos em relação aos que Hollande tivera em 2012 na primeira volta
( desceu de 28, 63 para 6,36 %). Em contrapartida, o candidato dos insubmissos,
apoiado pelo Partido Comunista Francês e pelo Partido de Esquerda, ambos
integrantes da Frente de Esquerda, subiu, relativamente a 2012, mais de 8% de
votos (de 11,10 para 19,58 %).
Portanto, a mensagem
mais forte que os resultados transmitem é uma drástica reprovação do eleitorado
quanto à Presidência de Hollande e à sua
governação. O seu partido, o PSF, viu assim o seu candidato fortemente
penalizado, tendo perdido eleitores, quer em benefício do centro quer em
benefício do outro candidato de esquerda. Esta reprovação era suficientemente evidente
para ter levado Hollande a não se recandidatar, o que nunca acontecera durante
a Vª República com nenhum presidente cessante que se pudesse recandidatar. Os
militantes e simpatizantes socialistas deram, aliás, um sinal de sentido
idêntico, quando nas eleições primárias preferiram largamente um ex-mimistro
que se demarcara da condução política de Hollande ao ex-primeiro ministro que
mais emblematicamente a pusera em prática.
De facto, Hamon
representou objetivamente uma tentativa
de quebrar a identificação do PSF com a política de Hollande; ou de pelo
menos a relativizar. Esta via era estreita. Era difícil sair da sombra
impopular de um Presidente da República do mesmo partido sem claramente o criticar . E
maiores foram as dificuldades, porque a ala direita do Partido Socialista,
claramente vencida nas primárias, rompendo com a decência mínima de respeitar a
palavra dada e um mínimo de lealdade partidária , foi tornando crescentemente
ostensivo o seu apoio a Macron , o candidato centrista.
E a insalubridade ética
dessas manobras foi agravada pelo
facto desse candidato, ser um jovem politicamente inexistente que passou a
existir rapidamente apenas por ter sido
cooptado por Hollande para seu conselheiro e mais tarde instalado como um
importante ministro de Valls. E, parecendo de início ser um mero instrumento de
arremesso no combate florentino entre Hollande e Valls, Macron viria a fazer-se
gente entrando na grande politica pela pequena porta da traição aos seus dois
padrinhos. Suprema ironia. O segundo dos apunhalados traiu depois a sua palavra
em prol de quem o traíra, apoiando expressamente Macron contra Hamon ; e o
primeiro foi obrigado agora a vir a público pugnar do alto da sua Presidência
pela vitória de quem tão rasteiramente o traíra.
Defender que o arejamento
político das propostas de Hamon e uma
alegada conotação com a ala esquerda do seu partido são as causas principais
pela esqualidez do resultado que obteve como candidato do PSF, ronda a
desonestidade intelectual ou é pura simplesmente um sinal de cretinismo
político. Hollande governou em sentido oposto ao que prometeu como candidato e
acabou por se dotar de um primeiro-ministro que dispunha de uma escassa base de
apoio no eleitorado do PSF, quiçá mais disposto a destruí-lo do que a
liderá-lo. O quinquénio hollandista enxovalhou pelas suas opções uma larga parte
do povo de esquerda que o havia eleito. Teve já uma primeira resposta. Vejamos
o que virá a seguir.
3.
Para já, é ainda cedo para se falar no desmoronamento de um sistema político.
Por enquanto, o que ocorreu foi um forte safanão no principal partido da
esquerda francesa, havendo ainda o risco de esse safanão o poder atingir mais
profundamente nas próximas eleições legislativas.
Se Macron, como parece
muito provável, for o vencedor das eleições presidenciais, será transferida
para as legislativas a decisão do combate político em curso. Macron vai
procurar dotar-se de uma maioria presidencial que lhe permita governar segundo
o seu programa. É muito duvidoso que o consiga.
Falta saber se
conseguirá sequer suscitar uma coligação entre os deputados do seu partido e um
ou mais parceiros. Que parceiros ? Os socialistas do PSF ? Os gaullistas dos
LR? Qual a força de atração que exercerá sobre outras forças de esquerda menos
relevantes como é o caso dos Verdes e dos
Radicais de esquerda ? Ou sobre outras forças de direita, como é o caso dos
centristas que eram aliados históricos dos LR? O novo partido de Macron ( “En Marche”)
absorverá por completo os centristas tradicionais apoiantes de François Bayrou ? Enfim, muitas dúvidas,
muitas incertezas.
Incertezas que , aliás,
se complicam pela escassez de tempo que vai decorrer entre a segunda volta das Presidenciais
e a primeira das Legislativas. Complicação acrescida por uma combinação
explosiva entre o sistema eleitoral francês e a relação de forças política que
a primeira volta sugere.
De facto, o sistema
uninominal a duas voltas vigente em França garante que disputarão a segunda
volta os dois candidatos mais votados na primeira volta em cada círculo eleitoral, mas permite que
outros candidatos, além deles, também o
possam fazer, desde que tenham obtido na primeira volta pelo menos 12.5% de
votos em relação aos eleitores inscritos. Na relação de forças habitual, entre
577 círculos eleitorais, as disputas tripartidas na segunda volta, em regra,
atingiam as escassas dezenas, não havendo disputas quadripartidas. Ora, cálculos
ainda grosseiros, a partir da relação de forças atual, apontam para a
possibilidade de mais de 250 disputas tripartidas e de alguma dezenas de
quadripartidas. A hipótese de a Frente Nacional,
exceder muito o seu deputado atual, aumenta exponencialmente; e a incerteza
quanto aos resultados finais aumenta ainda mais.
A importância de acordos entre as várias forças políticas
cresce muito. Quer desde logo na possível renúncia cruzada a ter candidatos em
certos círculos na primeira volta, mas também depois nas desistências na
segunda volta de candidatos de certos partidos em favor de candidatos de outros.
Conseguirá a direita
continuar sem fazer acordos com a FN? Se continuar a ser essa a ser a decisão
oficial dos partidos de direita, serão obedecidos em todos os casos? Haverá algum acordo entre os LR e o partido
de Macron para desistências mútuas? E entre estes e os socialistas? E estes últimos
continuarão a ter acordos com os Verdes e os radicais de esquerda? E haverá
acordos de apoio cruzado e desistências entre os socialistas e os insubmissos
de Mélenchon ? No quadro destes últimos, os comunistas do PCF agirão com
autonomia? Múltiplas perguntam, enormes dúvidas.
Dúvidas acrescidas pelo
facto de não ser certo que os resultados da recente primeira volta se repitam ,
mesmo aproximadamente, nas legislativas. O que se projeta quer na possível
força do PSF, quer na do partido de Macron, quer nos insubmissos de Mélenchon. Ora,
a dúvida sobre a força real de cada um deles é um fator suplementar de
incerteza em quaisquer negociações.
O PSF, tal como o LR,
ao relacionar-se com o partido de Macron não pode menosprezar o facto dele
assentar a sua expetativa de afirmação e crescimento na destruição desses dois
partidos, em especial do PSF. Este aliás, além de correr o risco de se partir
antes das eleições, or causa das candidaturas, corre ainda o risco de uma divisão grave entre os que prefiram
depois aliar-se a Macron e os que
prefiram aliar-se a Mélenchon. Entram ou não na nova maioria presidencial ? Se
sim, deixam a outros o protagonismo da oposição a uma política de cariz
neoliberal; se não, deixam à direita o exclusivo de uma aliança com Macron ? Uma
ou outra opção podem ter consequências eleitorais logo na segunda volta; e mais
tarde podem suscitar clivagens dramáticas. Clivagens entre fações do partido ou,
mais grave, clivagens entre o partido e os seus eleitores que podem vir a abandoná-lo,
como já aconteceu na Grécia, na Polónia, na Hungria e , mais recentemente, na
Holanda. Mas que um partido de esquerda perca apoio por agir como se fosse de
direita ( aconteceu assim nos casos citados atrás) é estruturalmente mais perigoso
do que perder por ser fiel à sua identidade.
4.
Para concluir, é legítimo afirmar-se que os dois processos eleitorais, que se iniciaram
em França e terminarão nos próximos meses, configuram um verdadeiro labirinto
político, cuja principal raiz está na incapacidade da esquerda francesa no seu
todo responder aos desafios predatórios do neoliberalismo. Um neoliberalismo
que se apossou já das instâncias europeias, confiscando-as em benefício da sua
lógica destrutiva.
Mas há um labirinto que se se sobrepõe a esse.
É o labirinto de pequenas e grandes explicações e pseudoexplicações que, no essencial,
visam mais iludir-nos sobre o que se está a passar do que ajudar-nos a
compreender.