domingo, 28 de agosto de 2011

OS ADORADORES DO MERCADO

Os adoradores do mercado não são adoradores do mercado. Quando se ajoelham perante os seus alegados automatismos, não é a esses automatismos que veneram.

Senão vejamos: sem prejuízo da ponderação de outros factores, ninguém comprará um automóvel, quando, tendo comprado antes um outro igual, não o conseguiu fazer andar mais do que mil quilómetros; ninguém comprará na mesma padaria um segundo pão, que seja igual a um outro comprado anteriormente e que não conseguiu comer; ninguém contratará, uma segunda vez, um advogado que, num caso anterior, tenha sido grosseiramente desastroso para os interesses desse cliente; ninguém irá uma segunda vez a um alfaiate que, numa primeira vez, tenha feito para esse cliente um fato insusceptível de ser usado. Não haverá o mais ligeiro adorador do mercado que não diga: é essa a lógica do mercado, a sua pedagogia automática, o seu impulso rumo à qualidade.

Ora, os organismos reguladores [do que os seus adoradores dizem ser a economia de mercado, mas é de facto o capitalismo], os oráculos do economicismo dominante, nem souberam prever o furacão da crise, nem dão qualquer sinal consistente de serem capazes de nos tirar duravelmente dela. Pelo contrário, parece que apenas estão vocacionados para nos ir mergulhando mais profundamente no lamaçal para onde nos conduziram, resmungando vagamente a insinuação de que as vítimas é que têm a culpa e comportando-se como se isso fosse verdade.

Sendo assim, se os alegados adoradores do mercado adorassem realmente o mercado, deixando-se conduzir pela sua lógica como um virtuoso e dócil rebanho, teriam já substituído os organismos reguladores por outros, com outros cultores de outras receitas, e teriam deixado às moscas os oráculos de serviço, entregando-os à sua comprovada inutilidade prática de meteorologistas que não sabem prever ciclones e de terapeutas que rebentam com qualquer paciente que lhes passe pelas mãos.

Mas não foi isso que aconteceu. Os alegados adoradores do mercado, afinal, não são fiéis à sua lógica de ferro, quando se trata de fazê-la funcionar quanto aos organismos de regulação económica, quanto aos economistas do seu Olimpo, quanto a ideias que têm vindo a estrangular a sociedade. Quanto a tudo isso, comportam-se com a insanidade que revelaria, o comprador que aceita comprar um automóvel que não anda, o cliente que aceita comprar um pão incomestível, o litigante que volta a contratar um advogado que sabe ir levá-lo a novo desastre. Ou seja, os adoradores do mercado não são afinal fiéis seguidores da sua lógica.

Não são. Quando prostrados, parecem submissos a essa estranha mistura de evidências e de crendices, mas esvaziam a sua possível utilidade prática, na medida em que a transformam em dogma irremovível. Parecem submissos, mas, afinal, apenas mimam o ritual de uma fé que não têm. De facto, percebemos agora que eles apenas interpretam a velha partitura da sofreguidão pelo vil metal, sob uma óptica de total subordinação aos seus interesses egoísticos. Se a religião do mercado lhes convém, seguem-na como fiéis impolutos; se os perturba ligeiramente, pecam com sobriedade; se lhes lesa claramente os interesses próprios, esquecem-na por completo.

Os adoradores do mercado afinal adoram apenas os seus interesses mais egoístas, adoram a manutenção dos privilégios e da desigualdade que eles necessariamente reflectem, adoram que esta sociedade no essencial continue como está.
Para isso, dispõem-se até a fingir um carrocel de reformas, certos de que, como acontece com todos os carrocéis, mais depressa ou mais devagar, nunca sairemos do mesmo sítio.


Os adoradores do mercado não adoram o mercado, adoram a desigualdade que lhes permite serem o pequeno cume de uma pirâmide social que vive do sofrimento da sua base. Os alegados adoradores do mercado não o adoram; usam-no quando lhes convém.

1 comentário:

JGama disse...

Muito bem, Rui. Gostei. Não sei porquê, este teu texto recorda-me aqueles senhores importantes, ricos, que já usaram bem fundo a fazenda do Estado para seu proveito e que frequentemente vêm dizer ao povo que está a viver acima das suas possibilidades. Verdadeiramente e de forma bem descarada, eles não defendem o princípio universal da poupança e dos sacrifícios, mas defendem a validade dos sacrifícios apenas para os outros. Como se nós todos tivessemos que nos limitar a contemplá-los no seu estatuto de bem-aventurados.