sábado, 27 de agosto de 2011

MIGALHAS GENEROSAS OU ASSUSTADAS ?

Se um de nós, carecido de cuidados médicos, deparasse com a completa falta de resultados positivos da prestação desses cuidados, continuaria a procurá-los na mesma instituição? Se essa instituição produzisse sistematicamente resultados negativos, continuaria a merecer credibilidade? Os seus métodos continuariam a merecer a confiança dos recém-chegados ao exercício da Medicina? Parece evidente que não.

Seguindo um raciocínio analógico, é, por isso, muito estranho que o receituário económico neo-liberal tenha mergulhado o mundo numa enorme crise, que além do mais penaliza particularmente os pobres e poupa no essencial os ricos, que submete os interesses de milhões à sofreguidão objectiva de uns poucos milhares; e, apesar disso, continue a ser invocado como ciência e a ser seguido como terapêutica.

De facto, a ideologia neo-liberal, desesperadamente sequiosa de um estatuto científico, que disfarce a sua relatividade instrumental, é no essencial uma coloração artificial e ilusória que esconde a realidade, em vez de de nos ajudar a compreendê-la. São seus arautos, voluntários ou involuntários, todos os "troikos", e principalmente todos os papagaios conservadores que alardeiam o neo-liberalismo, todos os capatazes, mais ou menos claramente, pagos para cobrirem com o verniz da sua alegada ciência os interesses dos verdadeiros senhores do dinheiro.

A sociedade no seu todo está, por isso, a ser vítima do que lhe é aplicado como se fosse uma terapêutica salvadora , mas se tem revelado como um envenamneto lento, invisível e insidioso. Com a particularidade de, neste caso, aquilo que ocupa o lugar de doente, a sociedade, ser quem sofre o castigo pela via errada seguida por aqueles que ocupam, quanto a ela, o lugar dos prestadores de cuidados médicos, ou seja, os políticos neo-liberais e os seus capatazes alegadamente científicos da esfera económica.

Ora, a evolução objectiva da vida social está a fazer com que as ocultações vão perdendo mais e mais o seu potencial mistificador. E os mais informados ou mais ladinos entre os que ocupam o cerne do poder, o poder que sateliza os outros poderes, começam a compreender o plano inclinado por onde descem os seus privilégios, receando que os cidadãos, vendo cada vez mais as coisas como de facto são, se revelem indisponíveis para gastarem as suas vidas no altar dos privilégios do capital. Por isso, se sentem tentados a inventar novas cortinas de fumo, que, escondendo o essencial, os enfeitem do máximo de generosidade possível. Tão efectiva quanto for necessário, tão inócua quanto for possível.Por isso, neste novo jogo de sombras, tudo o que tem poder tende a procurar esconder-se, para que se possível pareça nem existir.

Todos os lobos procuram afanosamente as peles de cordeiro em que possam esconder-se. Atravessamos, por isso, um tempo em que é especialmente importante mantermos os olhos bem abertos.

Tenhamos pois a noção de que pouco interessa que os chamados ricos ofereçam algumas migalhas do muito que sugam, por força dos automatismos da lógica capitalista, para mais tranquilamente poderem continuar a beneficiar desses automatismos, enriquecendo-se à custa da exploração do trabalho alheio ou da transferência forçada de rendimentos dos empresários mais fracos, para os empresários mais fortes. Por isso, não nos interessa que os ricos se ofereçam no altar do que para eles são sacrifícios pequenos. Interessa-nos que os ricos deixem de poder continuar a fabricar pobres. Interessa-nos que a riqueza dos ricos não seja a fábrica da pobreza dos pobres.

Por isso, não nos batemos por um por cento a menos na fortuna dos ricos: o que não queremos é uma sociedade injusta. Uma sociedade cuja lógica de funcionamento leva à produção de um pequeno número de ricos, à custa da reprodução de um grande número pobres, dando até margem aos primeiros para que humilhem os segundos, com a falsa caridade de quem restitui às vítimas uma pequena parte daquilo que antes as fez perder.

Queremos uma sociedade justa, queremos começar-nos já a aproximar da justiça, começando pelo essencial: inverter a tendência crescente da última década para que aumente a parte do rendimento social absorvida pelo capital e diminua aquela que tem vindo a caber ao trabalho. O capital, como trabalho morto, tem que ser um instrumento rigorosamente manejado ao serviço da frutificação do trabalho vivo, e não o elemento dominante de uma lógica de degradação de tudo o que é humano. As coisas ao serviço das pessoas e não as pessoas ao serviço das coisas.

Por isso, toda esta palhaçada dos ricos quererem pagar mais impostos é apenas uma cortina de fumo lançada por quem tem a noção de que uma sociedade impregnada por uma lógica de exploração, como aquela que hoje é dominante á escala planetária, não tem futuro no quadro da democracia ou pura e simplesmente não tem futuro.

Outro galo cantaria, se nos viessem falar do fim de todos os paraísos fiscais, do forte desencorajamento de quaisquer estratégias especulativas nos movimentos de capitais, de uma subordinação politicamente controlada do capital à necessidade de produção de bens e serviços socialmente úteis, de um combate efectivo à intromissão na vida económico do dinheiro oriundo da criminalidade organizada, de uma fortíssima tributação de todos lucros não reinvestidos em empresas socialmente úteis. Mas isto seria outro galo, e não este garnisé hipócrita que se dispõe a oferecer migalhas para que o deixem continuar pachorrentemente a comer o bolo.

O mais incrível é verificar que, apesar de tudo isso, alguns dos capatazes políticos e ideológicos do neo-liberalismo ainda acham que mesmo essas pobres migalhas não devem ser tiradas aos seus senhores.

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