quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Os procuradores perdidos


Será um importante contributo cívico, para o desenvolvimento da democracia em Portugal , o completo esclarecimento do modo como foram urdidas várias teias mediático-judiciais, dirigidas a enxovalhar algumas das mais altas lideranças do PS, e muito especialmente o seu actual Secretário-Geral, actualmente na chefia do Governo. Não está em causa qualquer imperativo de encontrar destinatários de novos processos judiciais, nem uma tentativa de compensar eleitoralmente o PS por eventuais prejuízos eleitorais que o possam ter atingido, através de um estímulo especial aos eleitores concebido para esse fim. Nada tenho contra quem se mova pela força de qualquer dessas duas legítimas lógicas, mas considero que o essencial é desenvolver uma pedagogia cívica que torne muito mais difícil no futuro que alguém, seja contra quem for, siga por caminhos idênticos.

Ou seja, é muito importante deslegitimar ainda mais , quer cívica, quer eticamente, as tentativas de enxovalhar mediaticamente os adversários políticos que não se conseguem vencer em pugnas eleitorais decentes.

Dentro deste espírito, podemos concentrarmo-nos, por enquanto, no chamado processo Freeport. Se conseguirmos reflectir sobre aquilo que é público acerca dele, ao arrepio da sua imagem artificial, até agora mediaticamente projectada, chegaremos com relativa facilidade a constatações, que nos podem ajudar a confirmar a ideia de que estamos realmente perante uma campanha orquestrada contra um dirigente político que lidera um governo democraticamente designado, que, em última instância, visou uma viciação da vontade do eleitorado, por intermédio de uma utilização abusiva da máquina judicial e do complexo mediático-informativo.


Para robustecermos essa ideia, suponhamos que as entidades públicas envolvidas nas várias faces do processo tinham conseguido a modesta proeza de, cumprindo os seus deveres básicos, terem assegurado o respeito pelo segredo de justiça. Concedamos que se tivessem limitado a dar conta publicamente de quem fosse sendo constituído arguido (mesmo sabendo-se que essa qualidade pode basear-se mais no interesse do visado do que na intensidade dos eventuais indícios que o envolvam). Imaginemos até que se tivessem limitado a dar notícia dos nomes dos cidadãos ouvidos. Pois bem, em qualquer dessas hipóteses o nome do Primeiro-Ministro, José Sócrates, nunca teria sido atirado para a praça pública como tendo algo a ver com o processo: ele nem foi acusado, nunca foi constituído arguido, nem sequer foi ouvido. No entanto, todos sabemos que não foi isso o que aconteceu. E é isso mesmo que é uma anomalia grave no funcionamento da justiça portuguesa.

Nesta medida, o que resultou até agora objectivamente deste processo, decorridos tantos anos, torna ainda mais verosímil a ideia de que estamos perante um aproveitamento politico-mediático de um processo judicial, para se atacar um Primeiro-ministro democraticamente designado. Na verdade, dificilmente, se poderia compreender tudo o que se passou se estivéssemos apenas perante uma resposta normal da máquina judicial, desencadeada com naturalidade por indícios de comportamentos duvidosos de um qualquer cidadão.
Aliás, o surrealista episódio da menção, feita pelos procuradores encarregados do processo, de um rol de perguntas que quereriam ter dirigido a José Sócrates, mas não dirigiram, é tão insólito que parece muito menos um erro fruto de grosseira incompetência, do que um gesto falhado de auto-defesa perante aquilo que acabo de dizer. De facto, o rol das perguntas virtuais parece ter como único efeito útil directo, evitar que se diga que durante anos se alimentou a ficção de um envolvimento de um cidadão num processo, o qual nem sequer foi ouvido. Assim, é como se tivessem recorrido à invocação de uma espécie de estado de necessidade, para justificarem o estranho envolvimento num processo, pelos seus detractores, de alguém que afinal nem sequer nele foi ouvido. Tanto mais que não podem deixar de estar cientes do peso desqualificante do seu trabalho que pode ter essa incongruência. Mas um estado de necessidade, que apenas exista na subjectividade do agente que o invoque, pode abrir a porta ao risco de novas incongruências, sem deixar de poder ser um acontecimento, por si próprio revelador, da natureza e qualidade desse agente.

De facto, para os procuradores apenas parece ter contado a sua própria posição processual, sem que, por um momento, tivessem valorizado a protecção dos direitos do cidadão José Sócrates e o respeito pelos milhões de portugueses, cujos votos o colocaram na chefia do Governo. É que em si próprias as perguntas virtuais dos procuradores de serviço ao Caso Freeport contêm uma mensagem subliminar que eles não podiam ignorar que daí resultaria, se é que não a queriam enviar. E a mensagem é simples: José Sócrates tem algo a ver com o Caso Freeport.


Ou seja, os acusadores públicos não reuniram provas ou indícios que permitissem acusá-lo ou sequer constituí-lo arguido no processo, nem sequer o tendo ouvido no seu âmbito, mas acharam legítimo enxovalhá-lo em praça pública. E não esqueçamos ele não foi acusado, nem arguido, nem ouvido. Se tivesse sido ouvido para responder às perguntas dos procuradores podia ter dissolvido num ápice quaisquer nuvens com que quisessem envolvê-lo. Assim, os procuradores parecem querer sugerir que ele não foi ouvido porque não quis. Porque não quis ou porque alguém que o defendeu não deixou. Isto é, os implacáveis que perante uma conversa de almoço, arrasaram um colega que lhes murmurou umas opiniões e fizeram suspendê-lo de funções que ocupava, comportaram-se agora como pacíficos gatinhos de estimação, quando alguém os impediu de ouvir o primeiro-ministro, contra a sua vontade. Não é verosímil. Aquilo que mais facilmente se pode deduzir dos factos, objectivamente, é que os procuradores, não tendo ouvido Sócrates porque não quiseram, entenderam que, sem a estocada final das perguntas virtuais, a sua posição como agentes do processo podia ficar fragilizada, no plano político.


A corroborá-lo está o teor das perguntas que oscila entre o ridículo e a evidência de que quaisquer respostas, entre as que provavelmente ocorreriam, nada trariam de novo ao caso. De facto, perguntas destas se tivessem sido feitas para realmente suscitarem respostas seriam na verdade muito canhestras.

Sem prejuízo de voltar ao tema quando achar oportuno, não posso deixar de me espantar com a mistificação da chamada carta anónima que desencadeou a aparência de envolvimento de Sócrates no processo. Está hoje judicialmente determinado quem foram os seus autores: gente ligada a instituições públicas envolvidas na investigação, em conluio com membros de partidos de direita. Não há por isso carta anónima nenhuma, uma vez que sabemos quem são os seus autores, sobre os quais sabemos serem daqueles que gostam de atirar pedras, desde que possam esconder a mão. Há sim um conluio entre gente que não teve a coragem de assumir o que escreveu, mas que foi descoberta. Tudo gente de grande verticalidade! Foi esta a origem dos acontecimentos mencionados, o pretexto para um enorme alarido de exploração politico-mediática de um processo judicial, cujos frutos aliás têm sido uma desilusão crescente para os seus promotores.
O caso tem outras vertentes, mas o que aqui se disse não pode ser esquecido, ignorado ou menosprezado.

1 comentário:

andrepereira disse...

Boa análise. De um caso triste que deixa mais uma mácula, uma nódoa tão pesada sobre aquela instituição já tão desprestigiada. Se calahr tem razão o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça quando defende que deveríamos voltar ao sistema francês/ espanhol/ italiano de ser um Juiz a liderar a investigação criminal... O que se criou nestas últimas décadas é mau demais para continuar a merecer o benefício da dúvida. Ou então, avancemos decididamente para um sistema anglo-americano de legitimação popular do Ministério Público. Aí sim, faz-se o sangue todo, sem vergonhas e sem silêncios, mas com a legitimidade do voto. Como está, está mal. Por mim, voltava a colocar um juiz de instrução à frente do processo. Mas enfim, são apenas desabafos para reflectir... sem posição definitiva sobre o sistema.