domingo, 15 de agosto de 2010

Educação em debate - 1


As medidas educativas continuam a ser pretexto frequente para um ruído pouco fecundo, ao qual não tem escapado, por completo, nenhum dos intervenientes que dispõem actualmente de uma maior projecção mediática. De facto, as medidas de política educativa dos governos do PS, as críticas das oposições e do sindicalismo docente, bem como, de um modo geral, o alarido mediático que tem rodeado a educação, pela mão de diversos fazedores de opinião, têm reflectido muitas questões, têm tido méritos e deméritos, mas essencialmente têm, a meu ver, passado ao lado do essencial.

Aliás, foi isto mesmo que procurou mostrar a moção política sectorial, intitulada “EDUCAÇÃO―LIBERTAR E DESENVOLVER” que eu e outros socialistas, pertencentes ao clube político Margem Esquerda (e mais tarde, na sua maioria, integrantes da corrente de opinião interna dentro do PS, Esquerda Socialista), apresentámos no Congresso do PS de 2009.

Conforme consta do registo oficial da moção foram seus autores: Rui Namorado (militante nº19862), José Gama (militante Nº 19856), Fernanda Campos (militante nº 19859), Júlio Mota (militante Nº 17417), Margarida Antunes (militante nº 30999), tendo sido seu delegado proponente José Gama.


Realmente, essa moção começava por afirmar que :


“A educação está no centro do futuro. É um dos factores nucleares do desenvolvimento social e um dos espaços socioculturais, onde se confrontam vários projectos de sociedade e diversas visões do mundo. O PS tem, por isso, que a encarar prospectivamente, com toda a clareza, por três motivos principais:
I) a educação tem centralidade estratégica, na procura de uma sociedade nova;
II) tem havido um exacerbamento cego das pressões neoliberais, tendentes a reduzir a
educação a uma oportunidade de negócio como qualquer outra;
III) o PS tem sido, regra geral, omisso quanto ao essencial desse debate, não tendo, por isso, criado as condições necessárias para poder resistir com eficácia à deriva gerada pela ideologia neoliberal dominante.”


E de imediato continuava :

“Se o mundo actual se limitar a evoluir, repetindo-se a si próprio, dele só poderemos esperar, menos liberdade, mais desigualdade, mais incerteza, maior agressividade ambiental. Mas se o quisermos evitar, dificilmente conseguiremos romper os bloqueios que actualmente nos tolhem, sem a impregnação profunda do nosso quotidiano pelo binómio “educar-e-aprender”.
Por isso, a educação é, não só um problema de hoje, mas também um sonho de amanhã.
Devemos vivê-la como utopia, sem esquecermos o imediato. Olhar para longe, não significa descurar o que está perto, até porque, como disse Jacques Delors, a educação é “uma utopia necessária”, uma vez que “ela deve (...) aspirar à utopia para poder levar a bom termo, mesmo as suas tarefas mais prosaicas”.
No entanto, “educar-e-aprender” é, não só um binómio potenciador do desenvolvimento dos saberes e das capacidades da espécie humana, mas também um modo enriquecedor de preenchimento do nosso quotidiano. Por isso, o desenvolvimento do processo educativo, a conquista de condições de aprendizagem ao longo da vida, não são apenas instrumentos de uma melhoria da qualidade do nosso desenvolvimento e da vida em sociedade, são também antecipações de um outro quotidiano mais universalmente humanizado”.


Contextualizada assim a problemática da educação, o texto prosseguia:

“Mas, por enquanto, vivemos ainda o tempo de uma educação imperfeita. E seria razoável esperar que de uma sociedade imperfeita brotasse uma educação perfeita? Sejamos realistas. Não se pode exigir às instituições educativas aquilo que só é alcançável através de profundas mutações da sociedade.
É certo que é mais fácil tornar a escola um bode expiatório, envolvendo-a na ilusão de que tudo se lhe pode pedir, com base num pequeno conjunto de medidas e decisões administrativas, desconsiderando assim, por completo, a necessidade de uma organização social diferente. Mas o excesso de expectativas quanto às transformações das práticas educativas nunca fará com que elas dêem frutos alheios à sua natureza. Todavia, pode em contrapartida perturbar as transformações que realmente podem ser feitas na escola. É, por isso, indispensável uma visão lúcida quanto aos limites da educação.”

Partindo dos alicerces gerais assim explicitados, a moção destacava depois a imperatividade da responsabilização do Estado por uma educação pública, como elemento nuclear de uma República democrática:

“Um dos pontos fulcrais, que é imperioso reafirmar, é o princípio da responsabilidade do Estado pela educação pública, encarada como um dos bens sociais estruturantes do desenvolvimento social, como um dos espaços centrais da qualificação e da civilização dos seres humanos, como um insubstituível gerador de cidadania e de humanidade.
O Estado não pode, na verdade, deixar de inscrever a educação pública entre as suas obrigações básicas. A Constituição da República Portuguesa, aliás, aponta com clareza, no plano dos deveres do Estado quanto ao ensino público, os vectores essenciais das suas obrigações nesta matéria.” Assim, nos termos do nº1 do art. 75º: “ O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. Isto mesmo não pode ser esquecido, para se entender o que significa o n.º 2 do mesmo preceito, nos seus precisos termos: “ O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei”.
É este o contexto constitucional da liberdade de ensino, cuja garantia, evidentemente, não envolve uma obrigação do Estado a subsidiar as empresas privadas que se dediquem a esta actividade. Na verdade, o apoio financeiro do Estado ao ensino não-público resulta de uma opção política, não é um dever constitucional. O PS não pode ignorar estas directivas constitucionais, pelo que a diferença de natureza, entre os dois sistemas, é um vector estrutural da política educativa. Não se trata de menosprezar a intervenção não-pública no sistema educativo, trata-se de a situar num plano que, sendo justo, reflicta com nitidez a diferença no modo como deve ser encarada em face da educação pública ».


E depois de, premonitoriamente, sublinhar o modo como a Constituição encara a responsabilidade do Estado quanto a uma educação pública, defendia as virtualidades prospectivas desse caminho, procurando atingir o cerne da questão :

“Na verdade, só um forte protagonismo público na educação pode corresponder aos desafios suscitados pela mudança do seu papel da no desenvolvimento social.
De facto, há muito que a educação era um factor do desenvolvimento social, mas agora está a transformar-se no seu eixo. Ou seja, o conhecimento é cada vez mais central no processo produtivo, ao mesmo tempo que se vem afirmando como um incontornável factor de qualificação dos tempos livres.
A condição necessária para se chegar a uma sociedade justa é, de maneira cada vez mais nítida, uma equilibrada partilha do trabalho, do rendimento e dos tempos livres, sendo nuclear o papel da educação nesse processo evolutivo. Por isso, tem de se assegurar o papel propulsor do Estado, na permanente adequação do sistema de ensino às crescentes exigências da sociedade”.


Depois, na mesma linha de raciocínio, a moção perspectivava o contributo da educação para uma sociedade futura que seja, na verdade, um avanço relativamente ao presente:

"Em convergência com o que se acaba de dizer, devemos equacionar os problemas
levantados pela sociedade da informação, cuja evolução, se tiver êxito, contribuirá para uma sociedade democrática do conhecimento.
A sociedade do conhecimento possibilita e exige uma reformulação profunda do sistema de ensino, radicada num interesse público democraticamente definido. O que está em causa é um processo gradual e complexo, necessariamente longo, implicando persistência e uma cadeia de objectivos estratégicos devidamente conjugados e impondo, por isso, uma pilotagem democraticamente legitimada e, assim, controladamente radicada no interesse público.
Não podemos, por isso, deixá-lo perturbar por lógicas corporativas, nem por interesses de grupos minoritários, tenham eles o poder que tiverem, seja esse poder do tipo que for. Mas também não podemos ignorar a necessidade de respeitar os direitos de todos os trabalhadores da educação, com natural relevo para os direitos dos professores, evitando confundir direitos com privilégios e não caindo no erro de alienarmos o empenhamento solidário nas políticas educativas dos que, no dia a dia, serão sempre os seus principais executores.
De facto, a sociedade da informação, em que estamos a entrar, representa um enorme
contributo para uma mais rápida viabilização de uma sociedade do conhecimento. No entanto, na ausência de um forte protagonismo do sistema educativo nessa viabilização, dificilmente evitaremos uma desregulação de todo o processo, dificilmente beneficiaremos de uma maneira durável das oportunidades abertas pelas novas tecnologias da informação.
Em termos esquemáticos, podemos dizer que, se não gerarmos uma capacidade crítica de filtragem do manancial de informação que nos é oferecido, o que só um conhecimento radicado num pensamento crítico proporciona, rapidamente nos podemos ver submersos num caos informativo que nos atrofiará, em vez de potenciar as nossas capacidades. A educação, o sistema de ensino, estão no centro deste desafio".

Mostrada a dimensão e a natureza do desafio a que a educação tem que responder o texto salientava a complexidade que traz ao problema a atmosfera malsã do actual processo de globalização neoliberal:


"Tudo isto se complica ainda mais, pelo facto de um dos aspectos predatórios da globalização capitalista actual ser a tentativa de tornar o ensino numa prestação de serviços mercantis como quaisquer outros. Uma prestação de serviços que querem reduzir a mais uma oportunidade de negócio, a mais uma área social a ser invadida pela lógica lucrativista, a mais uma instância de subordinação absoluta a uma lógica de mercado.
No entanto, sendo a educação um processo de humanização radicado na aquisição de
conhecimentos, na integração social das novas gerações, na afirmação da identidade cultural dos povos, instância decisiva na construção do nosso futuro colectivo, não pode deixar de ser uma responsabilidade que cabe, em primeira linha, ao Estado, ao poder democrático, enquanto expressão política do bem público.
Se um Estado nacional renunciasse a essa obrigação estruturante da sua razão de ser, sofreria um imenso golpe na sua legitimidade. Se um Estado nacional, que, por qualquer razão, corra especiais riscos de subalternidade, seguisse por esse caminho, estaria a pôr em perigo a identidade cultural do respectivo povo, a sua própria sobrevivência nacional. Hoje, mais do que nunca, é preciso compreender a educação num contexto de internacionalização dos conhecimentos e das experiências que a envolvem, sem renunciar a enraizá-la na cultura de cada povo, nomeadamente, valorizando a língua como elemento nuclear da sua identidade."


Esta série de excertos da moção política sectorial, intitulada “EDUCAÇÃO ― LIBERTAR E DESENVOLVER”, pretende mostrar como há difíceis questões para enfrentar no campo da educação, que estão muito para além dos temas que ocupam o palco do debate político neste campo. Perante essas questões quer o actual Governo quer os seus críticos, regra geral, têm privilegiado o empolamento de pequenos detalhes que, não sendo irrelevantes, estão longe de ser estruturantes.

Talvez a complexidade reflectida nos excertos transcritos não atinja ainda o patamar desejável para uma abordagem futurante e fecunda da problemática em causa, mas ficar aquém dela será sintoma de um simplismo seguramente insusceptível de gerar frutos relevantes.

1 comentário:

JGama disse...

Penso que, por se aproximar o início do ano lectivo, o Rui trouxe à memória esta moção. Fez bem. São pertinentes os comentários intercalares. No entanto, acrescento o seguinte: os temas discutidos recentemente podem ser detalhes mas é, também, através deles, que se deve chegar aos assuntos estruturantes. O pensamento crítico não poderá esquecer os sinais que se vão revelando todos os anos lectivos. A discussão sobre as retenções é um dos sinais. As nossas escolas confrontam-se com acentuados níveis de insucesso. Onde está a principal origem desse insucesso? O que se pede à escola para resolver este problema não se traduz numa impossibilidade para ela mesma? Por que é que há em Portugal tantas crianças e adolescentes que não querem a escola como local de aprendizagem?