sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Outono dos Carpideiros


Esperava-se uma luminosidade cintilante no firmamento do pensamento económico. Uma parada de estrelas em torno de Passos Coelho. A comunicação social acendera todas as velas, para que não esquecêssemos, para que nada nos escapasse do transcendente evento.

Um odor a massa cinzenta haveria de espraiar-se pelos interstícios do espaço mediático, para que, atentos e veneradores, sorvêssemos a sabedoria de tão conspícuos oráculos.

O ambiente condizia: um hotel de luxo. Via-se, assim, como esses distintos faziam o generoso sacrifício de, em tempos de vacas magras, ousarem o altruísmo de uma serena fruição das coisas boas da vida.

Imprudentemente, porém,consentiram algumas imagens. E, onde a cuidadosa encenação esperara que descobríssemos o brilho da ciência exacta e serena, lampejando através do fulgor inteligente de tão distinta assembleia, vimos afinal um simples bafio de ideias velhas, um rumor vagamente ultra-romântico de quem se junta em redor de ideias mortas em melancolia raivosa. Afinal, era apenas um grupo de sorumbáticos banqueiros já um pouco encarquilhados, de académicos versados no discurso conveniente, de ex-governantes vergados pelo peso das suas próprias proezas tristes, de uma sombra saída de um governo de antes do 25 de Abril e até um conhecido urubu de serviço nas arenas da diatribe. Reuniram-se com Passos Coelho, para que fosse bem nítido que à sua volta borbulhava a nata do pensamento económico, conquanto doméstico.

Mas, afina,l foi um velório antecipado o que ali ocorreu. E, ao fim de algumas horas de reflexão aturada, um porta-voz grave deixou que se ouvissem algumas palavras profundas, discretamente entremeadas de silêncios graves, como nas grandes ocasiões.
E, num retoque de colorido, no circunspecto evento, um sujeito careca já entradote, com o ar azedo dos biliosos, trovejou implacável perante uma atenta comunicação social: ”O governo …. renhaunhau..béubéu... ladrão…auau.. criminosos…au..auau …novas gerações… béubéubéu…”
Os jornalistas tomaram notas. Respeitosos.

O país, finalmente, respirou fundo: uma jovem estagiária de jornalismo surpreendeu como balanço feliz da exigente reflexão um sinal encorajador --- um dos crâneos presentes tinha sorrido. E a conclusão foi clara: se um dos abutres reunidos para escarafuncharem na nossa desgraça sorriu, é porque ainda há esperança.

E assim o nosso Coelho de serviço pôde regressar sem angústia para dentro da cartola, as múmias voltaram pausadamente para o cemitério das sua próprias ideias e o povo desconfiado mudou de canal.

O paradoxo das eleições britânicas



No actual parlamento britânico há uma maioria trabalhista : 349 deputados contra 210 Conservadores e 62 Liberais.

Nas eleições da próxima semana, fazendo fé em todas as sondagens, os Trabalhistas sofrerão perdas severas. Simplesmente, uma certa derrapagem dos Conservadores nos últimos meses, atenuou o seu favoritismo. O inesperado crescimento dos Liberais, impulsionados pela popularidade do seu líder, reduziu-o ainda mais.

O sistema eleitoral britânico, uninominal a uma só volta, no quadro da a actual distribuição regional dos eleitores, é amplamente favorável aos Trabalhistas e dramaticamente prejudicial para os
Liberais.

Desse modo, como nos mostram os números de oito sondagens, mencionadas no site do jornal inglês Guardian, difundidas entre os dias 26 e 29 de Abril passados, há hoje uma real incerteza, quanto a saber-se qual o Partido que terá maior número de deputados depois das próximas eleições. Parece, no entanto, seguro que os Conservadores serão os mais votados, indicando algumas sondagens os Liberais como segundo partido e outras, como terceiro. E apesar disso, nenhuma das sondagens consideradas imputa aos Liberais mais do que 88 deputados e nenhuma indica que os Trabalhistas tenham menos de 244.




terça-feira, 27 de abril de 2010

Beato Gay ?

Tenho transcrito neste blog vários textos extraídos da revista brasileira de grande circulação CartaCapital, que infelizmente não é difundida em Portugal pelos canais de distribuição usados por outras revistas brasileiras. Hoje, vou transcrever um texto da responsabilidade da Redacção da referida revista, publicado no respectivo site no passado dia 16 de Abril. "Enfim, um beato homossexual ", eis como ele é intitulado.
Enfim, leiam-no. Ele fala por si:


"Como saber se um prelado é hétero ou homo desde que fez voto de castidade? Há qualquer coisa de muito intrigante na declaração do secretário de Estado do Vaticano, cardeal Tarcisio Bertone: “Numerosos psiquiatras e psicólogos demonstraram que não existe ligação entre celibato e pedofilia, mas muitos outros demonstraram que existe entre homossexualidade e pedofilia”. Pronunciada no começo da semana, atiçou um vespeiro global. Das organizações e associações gays, de boa parte da mídia, até da chancelaria francesa erguem-se protestos, a ponto de provocar na quarta um comunicado em que o Vaticano pretende esclarecer: Bertone apenas se referia aos homossexuais de batina. Com a seguinte revelação: dos 3 mil casos de pedofilia registrados pelas autoridades eclesiásticas (e rigorosamente mantidos sob sigilo) nos últimos 50 anos, 10% são de pedofilia stricto sensu enquanto 90% são, a bem da santíssima verdade, de efebofilia, ou seja, envolvem adolescentes. Reminiscências gregas. Destes, 60% correspondem a práticas homossexuais e 30%, hétero. O que não fica esclarecido é como a Igreja consegue catalogar com tamanha precisão as atividades sexuais dos seus padres, dos quais os fiéis esperam outros gêneros de comportamento. Mas não haverá de ser por acaso que o próprio Bento XVI viaja para a Inglaterra em setembro próximo para a beatificação do cardeal teólogo John Henry Newman, o qual pediu para ser enterrado ao lado do amigão reverendo Ambrose St.-John. Quanto este morreu, o cardeal confessou que sua dor era igual à de um marido, ou de uma esposa. Vale assinalar ainda o surgimento na Áustria de uma associação filantrópica destinada a proteger e educar os filhos abandonados por padres heterossexuais. Uns e outros seriam bastante numerosos.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sacrifício estranho e inútil


Os polacos da Internacional Socialista (IS) e do Partido Socialista Europeu (PSE) foram aplicadores dóceis da partitura económica neoliberal, na desafinada orquestra dirigida pelo Partido Popular Europeu (PPE) e foram seguidores disciplinados da terceira via na aventura iraquiana de Blair.

Os húngaros da IS e do PSE participaram com denodo na mesma orquestra na execução da mesma partitura.

Os resultados económicos de uns e outros não foram os mesmos, mas com a diferença de alguns anos, primeiro os polacos e agora os húngaros foram varridos pelos eleitores de qualquer verdadeira relevância política do mapa de ambos os países. Num e noutro caso, com exclusivo benefício eleitoral das direitas, mais ou menos radicais.

Se nos recordarmos do que tem vindo a acontecer, em sucessivas eleições, na Dinamarca e na Holanda e se olharmos para a actual paisagem política alemã, bem como para o terrível cinzentismo da esquerda italiana, talvez nos devamos interrogar sobre a razão pela qual, um após outro, os partidos europeus da IS se encaminham mansamente para o altar sacrificial do neo-liberalismo, para sofrerem por deuses que não são seus.

O PS e Portugal passam por tempos difíceis, em boa parte por força da pilhagem financeira perpetrada pelos artefactos mais perversos do capitalismo internacional, mas, mesmo que seja certo tomar como único caminho no curto prazo o que está a ser seguido, não compreendo como se pode ter gerado no seio do PS um silêncio tão pesado sobre tudo o que transcenda o imediato.

Queremos nós ser mais um cordeiro dócil, sacrificado inutilmente no estéril altar do neoliberalismo do PPE , para desgraça dos portugueses e desconsideração da própria ideia de Europa ?

domingo, 25 de abril de 2010

25 de Abril de 1974 - homenagem



o coração do vento despertou
no dia desde sempre convocado
pela revolta pura pelo sonho
pelos cardos abertos da desgraça

a multidão abriu-se pelas ruas
num grande clamor de liberdade
despertas as palavras eram ditas
de novo desvendadas e exactas

tatuados nos rostos desregrados
iam anos antigos confiscados
uma acre vergonha acumulada
a cólera mais fria solta e dura

invocaram-se os ritos mais audazes
as esperanças mais ardentes
o aço decidido dos punhais
os poemas mais fundos e fatais

saído da tristeza e de si próprio
um povo renascia e inventava
um roteiro para todos os caminhos
um novo infinito uma viagem

de súbito em Abril desvendou-se
o mistério de todos os segredos
e à terra portuguesa regressou
o ousado amor das tempestades

os gestos de novo foram simples
e só braços fraternos deslizaram
pelos rios da nossa desventura

a pele do tempo foi suave
e a vida incendiou-se numa festa

[Rui Namorado]

Contracapa da Vértice - 28


Vértice nº 295 - Abril de 1968


"Quando o oiro fala a eloquência perde a força."


Erasmo

quinta-feira, 22 de abril de 2010

À Esquerda - uma procura incessante


Para os leitores do semanário francês Nouvel Observateur, o nome de Jacques Julliard, que actualmente é director delegado da referida revista, está muito longe de ser desconhecido.
No seu mais recente número, foi publicado um texto desse autor no qual ele nos fala de: “ Ce qui est vivant et ce qui est mort dans la nouvelle gauche”.
É um texto aberto a múltiplos problemas, discutível e incisivo. É um contributo relevante para enriquecer o debate politico-ideológico, ao qual é cada vez menos legítimo que os socialistas se furtem. Um debate que ajude a encontrar vias de superação da crise de identidade que eles têm vindo a atravessar na Europa e no mundo.


Eis o texto:

“ Ce qui est vivant et ce qui est mort dans la nouvelle gauche”.

“ Beaucoup de mes amis et compagnons du passé ont sursauté quand j’ai proclamé, d’abord dans le Nouvel Obs (27 août 2009), puis dans Libé (18 janvier 2010) la mort de la deuxième gauche. Il y avait dans les articles de François Chérèque et Edmond Maire (11 mars 2010), et puis de Michel Rocard (1er avril 2010) parus ici-même des traces de cette surprise. Je veux les rassurer d’emblée : je ne renie rien de nos idées et de ce passé commun : au contraire. C’est au nom de ces idées et de ce passé que j’ai écrit les deux articles en question. Raison supplémentaire d’intervenir : la deuxième gauche appartient à l’histoire du Nouvel Observateur depuis les origines.
C’est que, chers camarades, en raison même de ces engagements, nous avons des devoirs particuliers à l’égard de la vérité. Le "parler vrai" n’a jamais été pour nous un supplément d’âme à ajouter à notre pensée. Il était notre pensée elle-même. Nous avons cru, nous croyons toujours qu’il y a une vérité de la politique ; nous croyons non moins fermement qu’il y a une politique de la vérité et que cette politique vaut politiquement mieux que l’autre. Cette formule de Bernanos, que je rhabille à ma manière, serait à mes yeux, s’il en fallait une, la meilleure définition possible de ce que, après Hamon et Rotman , on a appelé dans le domaine syndical et politique, la deuxième gauche.
Je suis à cent lieues de vouloir polémiquer. Ma seule malice, mais elle s’applique à nous tous, sera de me féliciter que mes deux papiers vous aient amenés à reparler d’autogestion, ce qui, on en conviendra, n’était pas arrivé depuis longtemps. Comme si, à l’égard de ce moment fondateur, nous avions tous désormais quelque gêne à y repenser, tels des amants qui ont cessé de s’aimer.
Non, ce manque de lucidité dont je nous accuse, en quoi consiste-t-il ? Cette vérité qui nous fuit ou que nous fuyons, quelle est-elle ? La voici : le primat de la société civile qui a été durant des années notre marque de fabrique et notre mot de ralliement, ne sert plus depuis longtemps à faire avancer nos idées. Il ne sert plus la démocratie ouvrière. Il ne sert plus les idées libertaires et autogestionnaires qui sont les nôtres. C’est un fait que l’on peut regretter : il sert le capitalisme financier pour faire ses affaires ; pour s’exempter de toute responsabilité ; pour échapper à toute contrainte éthique ; à tout impératif d’intérêt général ; à toute mobilisation populaire ; à toute avancée sociale. Voilà à quoi a servi, pour l’essentiel, l’autonomisation de l’économique et du social par rapport au politique. Les socialistes libéraux ont fait, à leurs corps défendant, la courte échelle aux libéraux sociaux. Pendant que nous suivions, le nez en l’air, l’envol majestueux de nos idées, on nous faisait les poches, tout simplement.
J’exagère ? Mais, bon Dieu, regardons un peu autour de nous. Qui donc défend le plus aujourd’hui le primat de notre société civile ? Le mouvement social ? Que non pas ! Le patronat bobo, bien sûr. Depuis Reagan et Thatcher ; depuis le libéralisme à l’américaine, nous aurions dû nous méfier. La privatisation, la déréglementation aurait pu nous servir. Mais nous n’étions pas de force. Elle a servi au patronat. Ensuite, c’est ce capitalisme hors sol qu’est le pouvoir bancaire qui a pris la relève et qui a retourné comme un gant nos idées saint-simoniennes. Plus d’Etat ! Très peu de politique ! Ah, ils l’ont comprise la leçon ; ils l’appliquent à tour de bras ! Sauf lorsque leurs spéculations fantastiques – il y a une part d’imaginaire et de poésie pure dans le bankstérisme moderne – les conduisent au bord du gouffre : là, tout à coup, ils redécouvrent les vertus de l’Etat.
Voulez-vous que je vous dise ? Nous avons péché par orgueil. Nous avons mal mesuré le rapport des forces. En prétendant nous passer au maximum de l’Etat, nous avons présumé des nôtres. Pourquoi donc le mouvement ouvrier et socialiste a-t-il au contraire, majoritairement, compté sur l’Etat et sur la politique depuis le XIXe siècle ? Parce qu’il ne se sentait pas assez fort pour faire ses affaires tout seul. La science politique américaine n’en finit pas de se gausser de cet étatisme de la gauche française, dans lequel elle voit un trait de caractère. Mais non, imbéciles, ce n’est pas un trait de caractère, c’est un état des lieux ! Du fait de la lenteur et de la modestie du développement industriel français, le mouvement social y a toujours opéré en milieu hostile, en tout cas, majoritairement défavorable. La République politique a presque toujours disposé, sous la Troisième, de la majorité ; la République sociale, non. Et l’Etat, qui dans la vulgate marxiste, est l’auxiliaire des forces économiques dominantes, a au contraire servi à compenser le handicap des forces dominées. C’est comme ça. La journée de huit heures, les lois sur les accidents du travail, les retraites ouvrières, les congés payés, la sécurité sociale, rien de tout cela n’aurait été obtenu sans le recours à la loi, c’est-à-dire le coup de pouce du politique. J’entends bien que nous n’avons jamais dit le contraire et que notre critique de l’Etat porte sur sa fonction productrice, non sur sa fonction régulatrice. Mais le capitalisme s’est servi de cette critique de la première pour invalider la seconde. Je le répète ici : après la victoire intellectuelle de nos idées en 1968, nous nous sommes reposés sur nos lauriers et n’avons pas vu venir la contre-attaque : celle du néo-libéralisme, qui s’est installé comme un coucou dans le nid que nous lui avions bâti. La défaite des forces du progrès, à l’échelle internationale depuis une trentaine d’années, fut d’abord une défaite intellectuelle. Sinon, comment comprendre, comment expliquer que l’idée du libéralisme pur, celui d’une société automatique fonctionnant au mieux des intérêts de tous selon la seule règle du marché, cette idée dont on avait cru longtemps qu’elle ne passerait pas le cap des années 1900, se soit retrouvée seule et triomphante sur le champ de bataille à la fin du XXe siècle ? Nous avons négligé de mener sans relâche la critique sociale ; je veux dire l’examen des conséquences sociales de ce retour triomphal des idées libérales du XXe siècle.
Du reste, Michel Rocard tombe d’accord avec moi quand il dénonce à son tour les déréglementations et le retour à une plus grande brutalité sociale du capitalisme ; quand il reconnaît comme une évidence que « la social-démocratie internationale et sa composante française, la deuxième gauche, se sont "largement enlisées" dans la tâche de modernisation économique, dans le cadre, il est vrai, d’un capitalisme beaucoup moins féroce que celui d’aujourd’hui.
Ne chipotons pas trop. Il me semble pourtant que c’est singulièrement appauvrir l’héritage historique et l’ambition intellectuelle de la deuxième gauche que de la réduire à une composante française de la social-démocratie. Cette dernière est aujourd’hui tellement compromise avec l’ordre libéral que sans le retour à une critique sociale radicale et une rupture avec cet ordre, je ne donnerais pas cher de son avenir. De même en ce qui concerne les lois du marché : Rocard n’aime pas la formule : "refus de la soumission aux lois du marché". Je les ai toujours respectées, ces lois, même quand tu dirigeais le PSU, mon cher Michel. Pour autant, je ne voudrais pas que la deuxième gauche, si elle doit revivre, se définisse comme le parti de la soumission aux lois du marché. Il faut les respecter, sans doute, mais pour en corriger les tendances profondes à l’inégalité et à la barbarie sociale que l’on voit triompher aujourd’hui. C’est ainsi que je respecte les lois de la gravitation : pour éviter de me casser la gueule.
En revanche, je suis d’accord avec Rocard pour considérer que la deuxième gauche s’inscrit dans un vaste courant d’opposition à l’économie administrée. Le courant a pris naissance au XIXe siècle, en réaction aux tendances centralisatrices du mouvement socialiste international, représenté notamment par Karl Marx. Il aura toujours quelque chose à voir avec Proudhon, le syndicalisme révolutionnaire, et même Louis Blanc, avant que sa pensée ne soit travestie dans la caricature des Ateliers nationaux de 1848. C’est, d’un bout à l’autre, la volonté de donner aux ouvriers la "science de leur malheur" (Pelloutier) et la maîtrise de leur travail. C’est le contraire du socialisme soviétique, évidemment, mais aussi celui de cette vaste entreprise d’asservissement de l’homme à son gagne-pain, de l’ouvrier à son emploi, du consommateur à son pouvoir d’achat, que l’on appelle, par humour noir, le libéralisme. Chaque fois que j’entends dire que nous vivons dans la meilleure société possible, en tout cas la moins mauvaise que celles que l’humanité a connues, je pense aux caissières de supermarchés : c’est peut-être vrai, mais je n’ai jamais entendu une telle réflexion dans leur bouche : le meilleur des mondes n’est pas le même pour tous ses habitants.
Si je n’ai pas parlé ici de la première gauche, c’est qu’à mes yeux ce mélange de maximalisme théorique et d’opportunisme pratique, cette imposture clientéliste et notabiliaire était morte depuis longtemps.
La deuxième gauche, c’est autre chose. Son grand mérité historique est d’avoir su reconnaître l’adversaire. Hier, le colonialisme ; ce fut là le plus beau et le plus honorable de ses combats. Ou encore la centralisation administrative qui faisait de la France une nation gouvernée en pays conquis. Si j’ai dit que la deuxième gauche était morte, ce n’était donc pas de ses idées et de ses valeurs que je constatais le décès. Mais de cette phase historique révolue où elle a fait, au nom de l’intérêt général, un bout de chemin avec un capitalisme civilisé, lui-même révolu.
Comme Rocard et moi sommes d’accord sur ce point ; qu’il analyse dans les mêmes termes que moi le passage du capitalisme managérial au capitalisme d’actionnaires ; que Jean Daniel de son côté se prononce avec force pour un "réformisme radical", où est le problème ? Il n’y a pas de problème, il n’y a que des questions.
Pour ma part, j’en vois deux. La première porte de nouveau sur l’identification de l’adversaire ; la seconde sur les conséquences pratiques à en tirer. Désormais, presque plus personne n’en doute à gauche : le capitalisme financier est devenu l’énorme Léviathan du monde moderne, qui défie les Etats et les peuples. Déchaîné par l’effondrement du pseudo-système socialiste ; renforcé par la mondialisation, qui lui permet d’enjamber les frontières, il est en train de transformer le monde moderne, qui avait cru naguère accéder à la prospérité et à la sérénité, en un système de concurrence effréné, où la "destruction créatrice" se développe à une telle vitesse qu’elle ébranle toutes les sociétés. Il développe un darwinisme social impitoyable qui multiplie les laissés pour compte, fait exploser les solidarités traditionnelles : entre les in et les out, entre les vainqueurs et les vaincus du système, il n’y a bientôt plus rien de commun. Voilà pourquoi la société est en train d’exploser en une multiplicité de tronçons indépendants les uns des autres. Il y eut une courte période, entre l’effondrement du système communiste et l’affirmation à l’échelle mondiale du capitalisme financier où l’on put croire que la lutte des classes était périmée et l’histoire proche de sa fin… Brève illusion : nous sommes devant un nouveau défi, international ; voilà pourquoi il nous faut nous remettre en question et repartir du nouvel état du monde : celui que les gens ordinaires ont été les premiers à identifier, parce qu’ils ont été les premiers à en être les victimes.
La seconde question porte sur les instruments de lutte. Ce n’est pas parce que cette lutte prend désormais une dimension internationale qu’il faut déserter le terrain national. Pour une raison bien simple. Le retard du mouvement social sur le capitalisme est tel qu’il ne dispose pour le moment d’aucun instrument à l’échelle internationale. J’entends bien qu’il existe des institutions internationales, l’Onu, le FMI, l’OMC, le G20, à l’intérieur desquelles il faut mener la lutte et sur lesquelles il faut faire pression.
Mais ne soyons pas naïfs. Ne tombons pas, de grâce, dans le bigotisme institutionnel qui prétend faire faire à la gauche l’économie d’une mobilisation de masse. Voyez d’ailleurs ce qui s’est passé quand les puissants de la planète ont prétendu, avec une ardeur variable, imposer une réglementation à la finance internationale. Echec presque total ! Dans ce domaine, Barack Obama est moins puissant que Goldman Sachs. Voilà pourquoi les forces démocratiques de gauche n’apportent qu’une plus-value, mais elle est de taille, à la contestation du désordre établi dans lequel nous vivons : le poids de l’opinion internationale et de la mobilisation populaire ; voilà pourquoi aussi elles doivent aller à la bataille unies. A chaque élection, les citoyens le martèlent, car ils l’ont compris. L’anticapitalisme radical, mais homéopathique, à la Besancenot, n’est pas un outil de lutte mais une entrave. Ce n’est pas de prototypes que nous avons besoin, c’est d’instruments puissants.
Alors, première ou deuxième gauche, ce n’est plus aujourd’hui le problème. Réformisme ou révolution, c’est aussi une problématique d’un autre temps. Comme chaque fois qu’une nouvelle période s’ouvre, nos valeurs nous servent, mais nos préjugés nous desservent. Il arrive même que notre expérience nous paralyse. Une fois de plus, c’est l’événement qui sera notre maître intérieur".
[Jacques Julliard]

terça-feira, 20 de abril de 2010

Brasil - à esquerda, um novo candidato


1. Com a relatividade que tem uma identificação política com protagonistas de outros países, encarando eu na sua globalidade como muito positiva a Presidência de Lula no Brasil, sinto-me próximo dos que apoiam a candidata presidencial do PT (Partido dos Trabalhadores) Dilma Roussef, considerada como a sucessora por ele desejada.

No âmbito de uma sumária contextualização da entrevista que abaixo transcrevo, recordo que a direita brasileira tem como candidato principal à Presidência da República, José Serra, actual governador de S. Paulo, em representação do PSDB (Partido da Social-Democracia Brasleira). Além deste partido, integram o núcleo duro desta candidatura o Partido Democrático (nova designação do Partido da Frente Liberal, oriundo do apoio à ditadura) e o PPS ( Partido Popular Socialista, novo nome assumido, já há alguns anos, pelo antigo Partido Comunista Brasileiro de Luís Carlos Prestes ).
Uma antiga Senadora do PT e ex-Ministra num governo de Lula, dissidente desse partido, Marina Silva, concorre sob a égide do PV (Verdes) seu novo partido, também ele com representação no actual Governo. Não é ainda certo que Ciro Gomes, ex-ministro de Lula e seu apoiante, não seja também candidato pelo PSB ( Partido Socialista Brasileiro ).

Ainda durante o primeiro mandato de Lula, uma das tendências mais à esquerda do PT cindiu-se dando origem ao PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). A ex-Senadora Heloísa Helena , candidatando-se com o apoio do novo partido nas últimas presidenciais, chegou aos 11% na 1ªvolta. Há poucos dias, o PSOL escolheu para seu candidato às próximas presidenciais Plínio de Arruda Sampaio, recusando assim a via proposta por Heloísa Helena que defendia o apoio do PSOL a Marina Silva.

2. Plínio Soares de Arruda Sampaio nasceu em São Paulo, em 1930.É licenciado em Direito pela Universidade de São Paulo , tendo militado na Juventude Universitária Católica, da qual foi presidente. Em 1962, foi eleito deputado federal pelo Partido Democrata Cristão . Após o golpe de 1964, foi um dos 100 primeiros brasileiros a terem seus direitos políticos cassados por dez anos. Viveu exilado no Chile e nos Estados-Unidos. Regressado ao Brasil, militou no PMDB, pelo qual foi eleito como suplente para o Senado federal em 1978. Viria a sair desse partido para participar na fundação do PT em 1980. Em 1986, foi eleito deputado federal constituinte. Foi ainda vice-líder da bancada do PT em 1987, e substituiu Luís Inácio Lula da Silva na liderança do partido, em 1988. Após ter saído do PT, do qual foi um dos fundadores e histórico dirigente, ingressou no Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A sua candidatura presidencial recebeu já um expressivo apoio de um vasto leque de personalidades, permitindo-me eu destacar entre muitos: Fábio Konder Comparato, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Chico de Oliveira, Chico Alencar; bem como relevantes figuras internacionais, como é o caso de István Mészáros e de François Chesnais.


Recorde-se que Plínio de Arruda Sampaio é um respeitado expoente intelectual da esquerda católica e um decidido defensor da
Teologia da Libertação. Tem também apoiado com firmeza a reforma agrária, tendo um grande prestígio no seio dos movimentos sociais de trabalhadores sem-terra.

Se eu pudesse votar nessas eleições , provavelmente votaria em Dilma Roussef, mas isso não me impede de considerar do maior interesse a entrevista com Plínio de Arruda Sampaio, da responsabilidade de Sérgio Lírio e difundida pela revista brasileira de grande circulação CartaCapital.


2. Eis o texto da entrevista:

"Após fortes embates internos, Plínio de Arruda Sampaio venceu a disputa com o grupo da ex-senadora Heloísa Helena e foi escolhido candidato à Presidência pelo PSOL. Dissidência do PT, o partido alcançou expressiva votação em 2006 ao apostar em um discurso moralista. Há mais de 60 anos na vida política, Sampaio garante que o tom de sua campanha será outro. “Quero discutir as coisas que importam.”

CartaCapital: Em 2006, Heloísa Helena chegou a 11% de intenção de voto baseada em um discurso udenista.[ Para ajudar a compreender a alusão, julgo que ela se reporta à UDN(União Democrática Nacional) um grande partido de direita que liderou a oposição ao Getúlio Vargas democraticamente regressado ao poder, muito baseada no combate à corrupção; e que tinha como máximo expoente mediático e político Carlos Lacerda, que viria a ser um dos mentores e incentivadores da posterior ditadura militar iniciada em 1964]] Qual vai ser o tom da campanha do PSOL neste ano?

Plínio de Arruda Sampaio: Esse foi um ponto de discussão nas prévias do partido, pois não tenho esse tipo de discurso. E tenho medo de que esse tipo de discurso distorça o problema real do País. Há, sem dúvida, um problema de corrupção e essa corrupção precisa ser denunciada e combatida, mas, na verdade, esse combate não pode obscurecer o confronto principal, a contradição desse regime capitalista selvagem. Peguemos o caso da tragédia no Rio de Janeiro. Se houve corrupção ali, é necessário denunciar, mas o importante é debater a especulação imobiliária, o peso que ela tem no desenvolvimento das cidades. Por que aquela população está lá, mal alojada em favelas, morros? Por falta de uma reforma agrária. Por que há 80 mil imóveis estocados em áreas melhores do Rio de Janeiro para serem alugados durante as Olimpíadas? O objetivo da minha campanha é fazer um diagnóstico real dos problemas do Brasil.

CC: Por que não avançaram as conversas com o PV de Marina Silva?

PAS: O PV é uma proposta ecológica muito limitada. A ideologia dele é “salvar a natureza” e isso escamoteia o verdadeiro debate. O verdadeiro debate é que o capitalismo, enquanto tal, não tem condições de preservar a natureza, pois a solução para o problema teria como consequência limitar o lucro. Tanto é verdade que, apesar de todo o discurso, o ataque à natureza só cresce, não reduz. Para se preservar a natureza é preciso outro tipo de economia, uma economia que não se baseie no lucro infinito, sem limites. Sem uma perspectiva claramente socialista, é impossível preservar.
CC: Como é possível, nas próximas eleições, escapar da polarização PT-PSDB?
PAS: O PT e o PSDB são dois partidos da ordem. A divergência entre eles é menor porque o modelo de desenvolvimento é o mesmo. Vamos fazer outra proposta. Defendemos uma economia muito mais voltada para as necessidades da população, capaz de resolver, por exemplo, o problema da habitação, da educação, da terra. Forçar mesmo a mão na reforma agrária. Nem o (José) Serra nem a Dilma (Rousseff)- farão um discurso real sobre o problema agrário. Ambos vão louvar o agronegócio, a monocultura. E a monocultura e o agronegócio atingem a natureza.

CC: Que avaliação o senhor faz dos oito anos de Lula?

PAS: Há uma realidade que, na superfície, parece tranquila. De certa maneira existe uma melhora em relação ao governo Fernando Henrique, que foi um terror. Mas isso escamoteia a verdade. A educação brasileira está em um nível inacreditavelmente ruim. Outro dia mencionei Getúlio Vargas em uma palestra. Notei que a plateia, cerca de 40 jovens entre 20 e 30 anos, não entendeu bem. Perguntei quem já tinha ouvido falar do Getúlio Vargas. Só quatro levantaram a mão. A saúde vai pelo mesmo caminho. A desnacionalização da nossa indústria é um fato patente. Estamos regredindo ao estágio de uma economia primária, exportadora de quatro produtos: soja, cana-de-açúcar para fazer etanol, carne bovina para não ter colesterol e celulose para fazer papel higiênico. É um absurdo.

CC: O senhor foi um dos autores de um plano engavetado pelo governo Lula de assentar 1 milhão de famílias. É esse o tamanho da reforma agrária necessária?
PAS: A pobreza no campo é um problema do poder. A concentração da terra concede poder a uma capa que domina o camponês. Por isso ele é pobre, miserável. É preciso quebrar esse poder e ele só pode ser quebrado se for criado outro poder para o camponês. Uma reforma agrária precisa ter certo impacto para provocar desequilíbrios em cadeia que permitam à massa camponesa alcançar um mínimo de conforto. A reforma agrária é uma proposta capitalista. Caso me pergunte qual a minha visão do campo, direi que não é essa. Tenta-se reformar o capitalismo porque falta força para erguer outra organização da agricultura. No início, acreditei que o governo Lula tinha força para fazer. Estava equivocado. Era colocar 1 milhão de pessoas na terra em quatro anos. Isso criaria um entusiasmo na população rural. Era o que se pretendia, sobretudo, se fosse realizada de uma maneira estratégica, não jogando pontualmente um assentamento aqui, outro ali. Era preciso se concentrar em pontos focais do território, como aconteceu no noroeste do Paraná. Como lá foi implantado um número grande de assentamentos, os trabalhadores ganharam o poder de eleger prefeitos, vereadores etc.

CC: O presidente Lula não sofreu do mesmo mal da conciliação em excesso?

PAS: Florestan Fernandes dizia que o militante socialista tem três deveres: não se deixar cooptar, não se deixar liquidar e obter vitórias para o povo. Lula deixou-se cooptar. O poder burguês, da ordem, o fascinou. Fui um dos cinco coordenadores da primeira campanha presidencial de Lula, em 1989. Tínhamos um projeto de reforma radical do capitalismo. Em 2002, não. Ele aderiu à ordem. Por que o fez? Não sei. O PT inteiro o fez.

CC: Mesmo assim essa elite não o aceita?

PAS: Ah, bom, pois ele é inconfiável. Para o mundo capitalista, confiável é quem detém capital. E Lula não tem capital. De transfusão de sangue que passou a ser aceito mesmo só conheço o caso de Fernando Henrique Cardoso. Mas esse era filho de general, originário da elite. FHC passou a ser encarado como alguém que teve seus devaneios na juventude, depois criou juízo e seguiu as regras. Lula não. Ele é perigoso por ser um líder popular. Mas, sejamos claros, nem essa burguesia o combate mais com tanta ferocidade. Você é jovem e não viu o que fizeram com João Goulart. Eles estrangularam Jango. Quando eles atacam, Nossa Senhora, é terrível! Eu vivi isso. Atrás, não dá muita colher de chá para ele, mas não ataca. Quando ataca, meu filho, Nossa Senhora, é terrível. Eu vivi isso.

CC: O senhor tinha mais esperanças nos anos 60 ou agora?

PAS: Se não acreditasse no Brasil não seria candidato à Presidência. Tenho enorme convicção das nossas condições de superar as adversidades, de construir uma nação mais justa. Mas acho que o caminho hoje é mais pedregoso. Celso Furtado publicou, em 1992, um livro pequeno de uma lucidez espantosa. Chama-se Brasil, a Construção Interrompida. Naquele tempo, ela estava mesmo interrompida. Veio a empresa de demolição de Fernando Henrique e demoliu o que havia. E Lula terminou o trabalho do antecessor. A construção interrompida virou uma construção destruída.

domingo, 18 de abril de 2010

Negócios são negócios - por uma monarquia lucrativa.


1. O pretendente ao inexistente trono de Portugal, aliás, oriundo do que houve de mais retrógrado na monarquia portuguesa, o miguelismo, dispõe de uma imagem simpática, quando se apresenta como pessoa comum nas revistas que povoam as salas de espera dos cabeleireiros.

Se o homem se limitasse a ficar aconchegado dentro daquele seu esgar habitual que ele julga ser sorriso, talvez até viesse a conseguir um lugar na galeria dos reis simpáticos, ao lado do rei dos frangos e do príncipe da chanfana, num clima de bonomia em que o nosso povo é perito e que lhe facultaria, certamente, uma confortável simpatia entre as leitoras das revistas cor de rosa e entre os coleccionadores de selos com efígies régias. Mas o homem fala. Estimulado pela rede endinheirada dos alegados condes, duques e marqueses, o homem chega, de quando em vez, a cometer uma entrevista sem rede. Daquelas em que se mostra despido perante os seus espectadores, sem a caridade de uma correcção, sem a diligência amiga de um retoque.

Se o mencionado cidadão possuísse umas pálidas luzes, vindas dos mais elementares guias da política, talvez pudesse ter um pouco de cautela. Cautela, de modo a não desmentir, com a ostensibilidade da profunda reaccionarice do que afirma, a ficção, que cansativamente repete. A ficção de que, alegando-se subido a alteza real, paira apoliticamente sobre todos os portugueses, como impossível e generosa ave, sejam eles de direita, esquerda, centro, ou apenas distraídos. Mas nenhuma dessas luzes ameaça sequer a sua mente.

Por isso, Duarte Pio, quando fala sobre algo de mais complexo do que a chuva e o bom tempo, raramente deixa de mostrar, com indesmentível claridade, o seu profundo conservadorismo ideológico, bem como um reaccionarismo político dinossáurico, que decerto lhe dita, em noites de insónia, o espectro esbatido do seu antepassado Dom Miguel.

Mas desta vez, talvez estimulado pela forte dose de maresia da praia da claridade, sob o olhar, creio eu, de algum espanto da própria Fátima Campos Ferreira, Duarte Pio levou até ao máximo, na escala dos dislates, o que nos disse sob a nossa actual democracia e sobre a nossa Constituição. O seu tom, pela força das coisas, não deixou de ser real, mas o seu nível roçou tangencialmente o puro analfabetismo político.


2. Mas numa coisa, tenho que reconhecer, se revelou um arguto tradutor do ar dos tempos: foi quando, num argumento supremo, ofereceu aos portugueses, em preço de saldo, um reinado seu em vez da Presidência da República.

Aceito como boas as suas contas, pensando até, que, se for caso disso, o pretendente miguelista talvez faça um desconto. Estou mesmo a imaginar um debate interessante entre os portugueses duros que exigem um desconto de 50% e os mais moderados que aceitam o preço oferecido.

Mas a crise que atravessamos e a vertigem modernizadora, que assola tantos espíritos luminosos, levam-me a não excluir a hipótese de que, entre os portugueses mais somíticos, alguns se lembrem de propor: "Já que a monarquia vale sobretudo pelo seu baixo preço, por que não transformá-la num negócio, passando-se a levar a leilão o lugar de rei. Em vez de despesa, a chefia do estado passaria a dar lucro".


E, já que estamos em maré de propostas, atrevo-me eu nessa lógica a ir um pouco mais longe. Assim, eu proporia que se leiloasse, não um lugar vitalício de rei, mas, melhor do que isso, por fatias temporárias : uma ano, quatro meses, quize dias, uma semana.

Poder-se-ia então ouvir a Dª Miquelina dizer afogueada de emoção para a vizinha do lado. “ Estou muito emocionada. Juntei dinheiro vinte anos , mas consegui comprar um lugar de rainha para o próximo fim de semana”. E às crianças, ouviríamos dizer, com impaciência: “Papá, quando for grande também quero ser rei”. E aos paizinhos, decerto: “Se te portares bem, prometo-te uma semana de rei, quando fizeres dezoito anos”.

Se os nossos circunspectos pastores de ideias admitissem esse caminho, tudo se poderia reconciliar. A monarquia talvez ficasse mais popular do que a república, mas, mais do que isso, seria seguramente mais barata; ou até mais rentável. O Banco Central Europeu babar-se-ia de gozo.

Aliás, indo ainda mais longe, com uma verdadeira modernização da nossa Constituição, poder-se-ia mesmo retomar a outorga pelo Estado dos títulos nobiliárquicos. E assim talvez, sob a égide de uma empresa concessionada, a qual ficaria autorizada a alugar títulos, podia conceder-se um título de duque durante um fim de semana, ou durante a uma viagem ao Brasil; ou ser-se marquês durante uma peregrinação a Roma; ou conde, enquanto durasse o Mundial de futebol; ou ser-se baronesa, durante um desfile de moda em Sintra. Tudo isso seriam alegrias, necessariamente bem pagas, é certo, mas alegrias. Alegrias que, além do mais, dariam um forte impulso à saída da crise.

Não me admiraria, aliás, que o Sr. Duarte Pio viesse a soprar àquele seu escudeiro e partidário, que diz querer ser Presidente da República, o Dr. Nobre, para ele enriquecer o seu programa presidencial com essa proposta revolucionária: substituir a nossa dispendiosa república democrática por um monarquia lucrativa, na qual quem quisesse ser rei pagaria bem caro o sonho, embora num esforço democratizador e com um preço mais modesto se admitisse também a monarquia precária. Rei por um mês, uma semana, um dia, a preços convidativos, já se vê.

sábado, 17 de abril de 2010

17 de Abril de 1969 – homenagem aos grevistas


hoje sabemos que naquele dia
a cada um de nós chegou um rio

e fomos em Coimbra quem abriu
um imenso jardim de liberdade

subimos o destino de mãos nuas
o medo dominado o passo firme

viajámos no tempo e somos sempre

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O Oráculo Torcido

Espanto!

O Prof. Louçã, no seu tom exuberante e sacro, estrondeou na RTP, em recente entrevista de grande porte, que uma das “malfeitorias”, atribuível ao PS, ao governo ou a ambos, era um poderoso indício de fim de regime. Ou seja, o Prof. Louça já não se deixa fechar na modéstia de uma simples oposição feroz ao governo, nem sequer na banalidade de uma cruzada contra o PS. O Prof. Louçã quer mais, quer a pele do regime. Grande ambição - dirão alguns . Talvez, mas, temo dizer, que algo estranha para uma garganta que quer gritar à esquerda.

Na verdade, eu já ouvi, muitas vezes, expoentes intelectuais da nossa mais ressequida direita, ou papagaios mediáticos de uso corrente, cantarem a ladainha do fim de regime. Sempre tomei essa surda ameaça de uma pós-democracia musculada de recorte indefinido, mais como farronca novecentista do que como ideia. E até tenho, por vezes, procurado entender a raiva histórica da direita portuguesa mais trauliteira, contra o vento de Abril que soprou para bem longe as cinzas cansadas de um salazarismo decrépito. Compreendo até a pobreza de espírito de alguns tontos, politicamente desvitalizados, que se penduram na ideia de fim de regime como um macaco em árvore que sonha de bananas.

Mas faltava-me ver um luzido vestígio da revolução permanente empoleirar-se na peregrina ideia de um fim de regime, como se estivesse a prever o resultado de um “derby” futebolístico. Ou será que tão enérgico pregador está convencido que, uma vez derrotado o regime que constitucionalizou Abril, como sonha a direita, o Prof. Louçã e o seu BE serão olimpicamente convidados, por ela, para enfeites de uma hipotética nova ordem pós-abrilista?

Não sei. Mas julgo que, ou o Prof. Louçã foi atropelado pelas suas próprias palavras, ou de tanto se enfurecer na sua cruzada contra o PS e o governo, se deixou afunilar nessa sua obsessão, esquecendo tudo o que possa existir para além disso.

É certo também que a aparente escorregadela, deste novo Robespierre de baixa intensidade, se vem somar a outras inconsistências ideológicas oriundas da mesma área, fazendo-nos por vezes duvidar, não que o Bloco o seja de facto, mas que consistentemente seja de Esquerda.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Homenagens de Brecht


Na eterna viagem pelas palavras dos poetas que mais escutamos, cruzamo-nos com poemas que nesse preciso momento nos agarram especialmente. Muitas vezes, sem sabermos bem porquê. Hoje, quero partilhar com os viajantes que passarem por este blog alguns poemas de Bertolt Brecht, na preciosa versão portuguesa de Paulo Quintela.

São homenagens a revolucionários, envolvidas por uma penumbra sépia ligeiramente melancólica, mas que não abdica, no entanto, de deixar que se ouça o marulhar profundo das grandes esperanças.



Epitáfio para Rosa Luxemburg

Aqui jaz sepultada
Rosa Luxemburg
Uma judia da Polónia
Propugnadora de operários alemães
Morta por incumbência
De opressores alemães. Oprimidos
Sepultai a vossa discórdia!

Inscrição Tumular 1919

A Rosa vermelha lá se foi também
Onde ela jaz não no sabe ninguém.
Por ter dito aos pobres a verdade
Os ricos a expulsaram do mundo e da Humanidade.


Epitáfio para Karl Liebknechet

Aqui jaz
Karl Liebknechet
Que lutou contra a guerra.
Quando o mataram
Inda estava em pé a nossa cidade.



Quando Lenine partiu

Quando Lenine partiu, foi
Como se a árvore dissesse às folhas:
Vou-me.


Inscrição tumular para Gorki

Aqui jaz
O embaixador dos bairros de miséria
O descritor dos verdugos do povo
E dos que o combateram
Que se formou na Universidade das estradas
O que nasceu baixo
Que ajudou a abolir o sistema de alto e baixo
O mestre do povo
Que aprendeu do povo.


A Walter Benjamin, que se suicidou ao fugir do Hitler

Táctica do cansaço foi o que te agradou
Sentado à mesa do xadrez à sombra da pereira.
Ao inimigo que dos teus livros te expulsou,
Não lhe damos xeque-mate na jogada derradeira.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

As eleições primárias não são uma miragem


Retirei hoje do site do jornal francês Libération, o texto que abaixo transcrevo. Versa sobre as eleições primárias para escolha do candidato que o PSF apoiará nas eleições presidenciais, que ocorrerão em França em 2012. Não será essa a primeira vez que o PSF fará primárias , mas tudo está a ser tentado pelos nossos camaradas franceses para que o processo de escolha seja aperfeiçoado. Nomeadamente, como se diz no próprio texto, procurando assegurar que a competição que se pretende entre os pré-candidatos seja conjugada com uma cooperação que se deseja, de modo a alcançar-se um tipo de primárias que seja "coopetitivo".


Em Portugal, há muito que há militantes socialistas defendendo dentro do PS que a escolha dos nossos candidatos seja feita através de eleições primárias. Quando, em Outubro de 2004, José Sócrates, Manuel Alegre e João Soares disputaram a liderança do PS, a todos eles foi enviado um documento político elaborado pelo clube político Margem Esquerda, que entre outras propostas de renovação do PS incluía as eleições primárias. Em 2009, no XVI Congresso Nacional do PS, a moção Mudar para Mudar, alternativa à de José Sócrates, cuja iniciativa pertenceu ao referido clube político, teve como um dos seus aspectos nucleares, a defesa de eleições primárias, as quais são um dos elementos identificadores da corrente de opinião interna do PS, saída dessa moção, Esquerda Socialista. Não é exagero dizer-se que, nestes últimos anos, em muitas instâncias e eleições internas do PS se multiplicaram as tomadas de posição favoráveis a eleições primárias. Não sei se elas virão a ser adoptadas entre nós, sob o infeliz impulso de algum hipotético desastre político, ou se, finalmente, a actual maioria que governa o partido decidirá integrar as primárias numa urgente e desejável reforma do modo de funcionar do PS. Sei que, de um modo ou de outro, um dia teremos primárias no PS português.

Vejam então que tipo de questões se colocam na preparação das eleições primárias que o PSF está a pôr em prática.


Primaires en vue de 2012: ébauche de mode d’emploi
Ce sera, avec
la limitation du cumul des mandats, l’autre gros morceau de la rénovation du PS. Moins indigeste pour ce parti d’élus, mais tout de même pimenté ! Les primaires sont au menu du rapport d’Arnaud Montebourg, secrétaire national à la rénovation (avec le non-cumul, le nouveau parti socialiste, l’autorité éthique et le renforcement du renouvellement, de la diversité et de la parité), qui sera discuté par la direction le 1er juin. La dernière réunion de la commission qui planche sur cette question a lieu ce mardi. Si ce dispositif pour désigner le candidat à la présidentielle fait désormais l’objet d’un consensus, il reste à en déterminer les modalités. Quel agenda? Qui votera? Comment? Qui pourra se présenter? Un ensemble de critères très stratégiques, chaque courant voulant s’assurer que le futur mode d’emploi des primaires ne désavantagera pas son candidat. Explications sur la règle du jeu et ses enjeux.
Le calendrier
C'est l’un des points cruciaux pour les candidats. Certains veulent un rendez-vous rapide pour laisser au gagnant la possibilité de rassembler son camp et d’endosser le costume, d’autres aimeraient repousser, ayant à jongler avec leur agenda personnel — tel
Dominique Strauss-Kahn qui sera toujours patron du FMI. Mais, à en croire Montebourg, «tout le monde est tombé d’accord pour que ça se passe à l’été 2011». Une formulation un peu floue qui contente, pour l’instant, les pressés, tenants d’un premier tour avant l'été, et ceux qui veulent temporiser.
Dans l’entourage de François Hollande, prétendant aux primaires, certains voudraient carrément boucler le processus dès la mi-juillet 2011 pour laisser au champion socialiste le temps de se roder. Celui-ci devrait être désigné plutôt à la mi-octobre 2011, pour le secrétaire national du PS à la rénovation.
Les modalités
Le nombre de tours dépendrait du nombre de candidats. A partir de quatre ou de cinq prétendants, un troisième tour, sorte de «présélection» pourrait se tenir avant l’été 2011. Cet éventuel «premier tour éliminatoire» permettrait d’«égrener le nombre de candidats», la suite pour les qualifiés, se jouant en deux tours, a précisé Benoît Hamon, porte-parole du PS. Si la compétition est plus restreinte, «on va directement au premier et deuxième tours». D’aucuns sont toutefois réservés sur le côté «marathon» de cette formule.
La conclusion de ce processus électoral est aussi un point important: il s’agit de réconcilier les camps qui se sont affrontés pour permettre in fine le rassemblement autour du gagnant. «Tous les candidats qui entreront dans les primaires savent qu’ils devront travailler avec le vainqueur, prévenait Montebourg,
ce mardi sur France Inter. Ce n’est pas seulement un processus compétitif mais aussi coopératif, c’est "coopétitif" en quelque sorte!»
Le corps électoral
C’est l’une des grandes nouveautés de cette primaire «ouverte et populaire». Les sympathisants, et non plus seulement les militants socialistes, pourront participer à la désignation du candidat. Mais sous certaines conditions: «Il faudra être inscrit sur les listes électorales, participer par une cotisation volontaire», a priori symbolique, et «signer une déclaration de valeurs», certifiant que l’on se classe comme sympathisant.
L’idée est d’atteindre un collège électoral vraiment significatif pour asseoir la légitimité du vainqueur, lui donner une dynamique. Montebourg et Olivier Ferrand, du think-tank Terra Nova, qui ont écrit un rapport sur la primaire, tablent sur 3,5 à 4 millions de participants. Du coup, dans le souci de ne pas se cantonner au seul PS, le vote n’aurait pas lieu dans les sections du parti.
Les candidats
La question était posée aux militants PS, lors de la consultation du 1er octobre. Lesquels ont accepté d’ouvrir le mode de désignation aux autres partis de gauche. Et ces derniers, qu’en disent-ils? Pour l’heure, pas grand chose. Le PRG (Parti radical de gauche) est partant. Le MRC (Mouvement républicain et citoyen) l’était mais a décidé de se retirer, se disant floué par le PS dans les accords d’entre-deux tours aux régionales. Le parti de Jean-Pierre Chevènement pourrait quand-même réintégrer le processus. Si Daniel Cohn-Bendit avait paru intéressé, la direction des Verts semble traîner des pieds. Côté Front de gauche, PCF et Parti de gauche sont encore plus réticents.
Au sein du PS, Montebourg veut mettre en place «un parrainage» pour les prétendants afin d'«éviter les candidatures excessivement farfelues» mais le système serait moins sélectif que lors de la primaire de 2006.

domingo, 11 de abril de 2010

Nós, os infalíveis.


Há muitos cidadãos convictamente de esquerda neste nosso país. Muitos deles batem-se, e estão dispostos a continuar a bater-se, por aquilo em que acreditam. Mas entre eles é demasiado grande o número daqueles que, aceitando bater-se por aquilo em que acreditam, são incapazes de juntar as suas forças àqueles outros que, pensando quase como eles, têm contudo algumas diferenças. E quando as iniciativas falham ou as lutas se perdem, por falta de apoios ou de massa crítica, ainda menos são aqueles que assumem uma parte da culpa ou uma parte do erro. A maioria tende a continuar firme na sua verdade e implacável contra o que separa os outros dessa verdade.


Esta atitude não é a fonte de todos os males, mas é seguramente, uma atmosfera malsã que agrava as crispações inter-partidárias e intra-partidárias, inter-regionais e intra-regionais, inter-geracionais e intra-geracionais, fazendo com que pareça uma miragem distante a hipótese de um dia o povo de esquerda, os seus partidos, os seus activistas, os seus expoentes intelectuais, se possam encontrar numa luta concreta por uma causa comum que leve verdadeiramente o país para um outro tempo.


É como se cada um de nós visse o correr da vida, principalmente, não como o palco de afirmação de uma esperança colectiva , mas como a oportunidade para que cada um de nós consiga demonstrar como os outros caminhantes da mesma jornada estão errados; como nós e só nós, temos toda a a razão.
Se a evolução das organizações que conformam a esquerda e as vontades convergentes dos cidadãos que se identificam como fazendo parte do seu povo, não forem capazes de abrir as portas a uma outra atitude , todas as tempestades futuras são de recear. E nem sequer podemos descartar a hipótese de vermos a nossa direita conseguir vingar, sem estrondo mas com muita ronha, o 25 de Abril de 1974, que ainda hoje verdadeiramente não digeriu por completo.

sábado, 10 de abril de 2010

Saída da cartola: uma corporação de notáveis


Passos é um especialista em tirar coelhos da cartola. Convencido de que inventou a roda, deixou cair, como uma bênção no regaço dos atónitos congressistas, o discreto charme de uma proposta alegadamente luminosa.

Um Conselho Superior da República iria fiscalizar actos dos governos. Antigos presidentes disto e daquilo, muitos dos quais nunca antes eleitos por sufrágio universal dos cidadãos eleitores para coisa nenhuma, iriam fiscalizar actos de um órgão político, cujo poder resulta dos deputados eleitos pelo povo.

Uma espécie de antiga câmara corporativa de antes do 25 de Abril a substituir-se aos deputados eleitos. Verdadeiramente paradigmático, para nos mostrar que o referido Coelho, por detrás da sua fachada radicalmente neo-liberal, abriga afinal, como estrutura profunda do seu pensamento, o velho corporativismo que deus haja.

O novo chefe, que nem a actual crise demoveu de uma agenda perigosamente conservadora, no seu fundamentalismo neo-liberal, limou matreiramente as arestas mais assustadoras do seu discurso, num esforço de atenuação do seu potencial para espantar os eleitores menos distraídos. Mas não soube, no fundo de si próprio, distinguir as suas crenças mais apresentáveis das que exprimem cruamente um reaccionarismo político-ideológico claro. Ou então, ter-se-á deixado guiar por algum dos radicais de direita, que já se anunciam como integrando o Olimpo do novo poder laranja.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Bebendo do seu próprio cálice


Há poucos anos atrás, em conversa com um colega brasileiro, dirigente do PT, verificámos que nas análises que cada um de nós fazia sobre o que se passava em cada um dos nossos países, a Igreja Católica surgia em ambos como factor relevante, mas o sentido da sua intervenção em Portugal e no Brasil era praticamente o oposto um do outro.

Nos dois casos, com relativa subtileza, pode dizer-se que enquanto no Brasil ela pressionava tendencialmente o governo PT mais pela sua esquerda social, em Portugal pressionava tendencialmente o governo PS mais pela sua direita ideológica.E, no entanto, se passarmos em revista as posições assumidas pelas duas igrejas católicas, as diferenças explícitas de posição, se as houver, são afinal escassas e pouco intensas.

Como explicar essa aparente contradição? Na minha opinião, a Igreja Brasileira, pese embora a sua retirada institucional do terreno da teologia da libertação, nunca chegou a regressar aos bons velhos tempos da cumplicidade estrutural com a direita conservadora, mantendo uma solidariedade prática apreciável em face do sofrimento e das aspirações sociais e políticas do povo cristão explorado e oprimido. Embora inevitavelmente presente, o Vaticano está, apesar de tudo, algo distante do grande espaço latino-americano.

Pelo contrário, a Igreja Portuguesa (com a prudência necessária, para que a esquerda não se veja obrigada a lembrar-lhe a sua longa cumplicidade para com o salazarismo) adopta genericamente a linha geral da cúria romana, alinhando no mesmo tipo de posicionamento, com as igrejas do sul da Europa, em especial, a italiana e a espanhola.

É claro, que não estamos a falar de uma coincidência absoluta de estilos e de tácticas, estamos a falar da partilha do mesmo tipo de política. Assim, ela favorece os partidos de direita, tanto quanto lho permita uma neutralidade formal no campo partidário, que publicamente afixa e proclama. E o modo que encontrou para tornar o mais eficaz possível esse apoio, sem desmentir grosseiramente a sua declarada neutralidade, foi a outorga de uma centralidade pastoral a questões ético-culturais, tais como o aborto, a contracepção, o casamento gay, a eutanásia ou o divórcio. Para, depois, a partir de uma coincidência quase total com esse tipo de opções da direita política, procurar favorecer indirectamente os partidos de direita, procurando, nessa medida, afastar os católicos dos partidos de esquerda.

E não se diga que não estamos perante um expediente estratégico, mas apenas perante um reflexo autêntico de uma convicção profunda. Se assim fosse, a Igreja Católica não reagiria perante os massacres da guerra com a mansidão discreta com que o faz, nem seria tão contida perante o escândalo da miséria e da fome que matam todos os dias milhares de crianças pelo mundo fora. Realmente, a Igreja oficial, o topo da sua hierarquia romana, perante sequelas tão ostensivas do capitalismo dominante, é tão parca em indignação que fica claro que há aqui uma sensibilidade selectiva, uma selectividade na indignação, que não pode deixar de ter um significado político e ideológico, bem marcados. A Igreja de Roma não se indigna consequentemente com a correspondente intensidade com tudo o que põe em causa a vida e a dignidade humanas. Limita-se a adoptar uma agenda conservadora clássica que privilegia os tópicos fracturantes que acima citei, mas que esquece outros que a nenhuma luz se podem considerar menos graves.

Acontece que por um daqueles malabarismos do destino em que a História é fértil, a Igreja Católica viu transformar-se a sua florentina habilidade numa inesperada armadilha. De facto, subitamente, começaram a emergir, em catadupa crescente, acusações de pedofilia, que como mancha indelével foram subindo degrau a degrau pela hierarquia da Igreja Católica. A mancha tem-se espalhado pouco a pouco, de país para país, avançando como fatalidade sobre Roma.

E mesmo a milenar sabedoria institucional da Igreja, não evitou que algumas declarações agravassem os estragos, grandes, que uma, outra e mais outra acusação de antigas vítimas vinham fazendo. Afinal, os mesmos que publicamente trovejavam, como anjos de uma virtude branquíssima, maldições e diatribes, contra os mortais indignos, que se deixavam possuir pelos demoníacos desvios conducentes ao aborto , à eutanásia, ao divórcio, à contracepção, ronronaram mansamente como gatos de pecado, escondendo no aconchego das sacristias, ano após ano, num e noutro país, os abusos sexuais contra crianças. Contra as crianças, que neles confiavam como homens de Deus, mas que para com elas se comportavam como enviados do diabo.

E a Igreja Católica sofre tanto mais com isso, quanto, pelo menos no Vaticano e na maior parte dos países do primeiro mundo, elegeu as virtudes privadas como a primeira pedra de toque da santidade e a esfera mais sulfurosa das tentações demoníacas. Bebe agora do seu próprio cálice, pois o tipo de questões que por cálculo político elegera como as que verdadeiramente separam as águas, distinguindo os bons dos maus, os infiéis dos pios, inscrevem-na agora na lista dos ímpios e prevaricadores.

Chegou pois à Igreja Católica um tempo de encruzilhada: ou se arrasta numa via sacra de desculpas e tímidos anátemas defensivos, de atrapalhados perdões e subtis esquecimentos, numa girândola terrível de deslegitimação ética, ou regressa de uma vez por todas ao Vaticano II, assumindo finalmente o imperativo da sua própria mudança.

Pode então cooperar, natural e lealmente, com a justiça dos homens, quando for caso disso, quando ela tiver razões para actuar, em casos de pedofilia ou noutros, mas no quadro de uma mudança do seu eixo estratégico, de uma mudança profunda da sua posição na humanidade. Abandonará assim finalmente a sua cumplicidade histórica em face dos poderes instituídos, a sua conivência de última instância com os senhores do dinheiro, o seu conformismo em face do sistema universal de reprodução da pobreza, preço inevitável da abastança de alguns.

Talvez então ela possa vir a ser a casa de uma nova teologia da libertação, apontada para o futuro, conquistando-se como Igreja do século XXI. De facto, só rompendo com a ganga conservadora que há séculos a tem tolhido, para se colocar, como já tem acontecido, num ou noutro país, numa ou noutra circunstância histórica, dentro dos explorados e oprimidos, poderá ser uma esperança limpa para a humanidade aflita dos nossos dias. Só assim estes tristes episódios da pedofilia poderão reduzir-se a simples casos de polícia, para como tais serem resolvidos.

Mas se, pelo contrário, continuar a distanciar-se do Concílio do Vaticano II, para tender a ser cada vez mais a casa comum da ideologia das direitas do primeiro mundo, melifluamente deitando para debaixo do tapete as suas vergonhas como se nada tivesse acontecido, insistindo em reproduzir-se no futuro como simples sombra de um passado recorrente, é natural que se empobreça no mundo dos ricos e se desvaneça no mundo dos pobres, que se separe dos justos e entre na fila das grandes casas vazias de um ocidente dissipado.

O banquete e as sombras


Uma neblina suave parece roubar a clareza das coisas. Nada, verdadeiramente, é aquilo que parece. Os que protestam sentem a justiça do que dizem em sofrimentos e frustrações reais, mas atacam, por vezes, apenas sombras, deixando ronronantes de uma tranquilidade felina os objectos que projectam essas sombras, contra as quais inutilmente se abate a sua justa ira.

Os que julgam que detêm o leme navegam afinal entre os perigosos baixios das realidades virtuais num empastelamento de contornos que confisca o horizonte e os obriga a navegar sem rumo, embora convencidos de que seguem a rota segura que a ciência lhes indica objectiva e neutra. Mas não. Realmente, surpreendem apenas por entre a neblina o cinzento etéreo de vagos contornos, esbatidos pelas ilusões, dia a dia tecidas, pelos seus fabricantes profissionais.

Os cães de guarda das casas do dinheiro rosnam numa fúria de quem quer sempre mais. A nossa vida vai sendo convertida lentamente em moedas, que se acumulam no remanso paradisíaco de uns poucos, que depois nos afrontam com uma generosidade hipócrita, restituindo-nos uma ligeira parte do que nos extorquíram, com a bonomia de quem nos salva por piedosa caridade.

Uma parte da matilha mediática, alguns dos vagos cachorros que uivam no deserto das opiniões, o coro aflito dos que se sentem sem futuro e o marulhar tenso do povo mais profundo, ameaçam a tranquilidade dos sultões empresariais, para cujos estratosféricos rendimentos apontam os focos de uma indignação crescente.

Dizem: se os que se sentam à mesa do banquete, que nos anunciam como se fosse a História, deixam escorrer para nós apenas a esquálida sombra de umas escassas migalhas, como é possível que atulhem os seus mastins de saborosas sobras e de vistosos restos de iguarias ?

Dizem ainda: tragam os mastins para dentro das nossas migalhas, não os deixemos banquetearem-se com o que nos falta!

Mas eu digo: sentemo-nos todos à mesa da História! Acabemos com o banquete de que nos dão pobres restos. Façamos um piquenique nos jardins do tempo para todos nós.Realmente, para todos.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Público - o imenso adeus


No site do Público de hoje, li um relato detalhado sobre projectos de engenharia assinados por José Sócrates, entre 1987 e 1991. Incluem alguns pormenores desqualificantes para o visado, com embrulhadas referências a censuras que lhe terão sido feitas por uma autarquia dirigida pelo PS. [ O jornal reconhece pelo menos que os "malandros" dos socialistas não trocam apenas entre si palmadinhas nas costas ]

Se o Público fosse um escarafunchador sistemático de toda a vida profissional de todos os políticos que tivessem desempenhado funções importantes neste país, talvez não tivesse leitores, mas revelaria um a atitude imparcial que nunca se poderia confundir como uma fixação persecutória.

Ora, sendo eu leitor do Público desde o seu primeiro número, sei que não é isso que acontece. Ele tem um reduzido leque de alvos. De facto, esse ex-jornal de referência, que tem vindo a conhecer uma deriva continuada rumo a uma tabloidização selectiva, tem porfiado num ataque sistemático ao actual ao primeiro-ministro, ao seu governo e ao PS.

Mas José Sócrates já tinha sido enlameado por vários lados, nomeadamente, pelo que hoje foi retomado, quando ganhou as eleições. O Público pode não ter gostado, pode achar até que se devia substituir o povo que somos por aquele que o jornal do Senhor Engenheiro gostaria que fossemos, mas tem que ter paciência. Para a próxima talvez ganhe um candidato mais ao seu gosto. Faça o seu trabalho, mas não se confunda a si próprio com um rafeiro tomba-governos, até para não engrossar o pelotão de tontos que querem derrubar o Governo, mas não sabem quem podem pôr no lugar dele.

É certo que até há neste episódio um elogio involuntário a José Sócrates. Realmente, o circunspecto periódico não encontrou nada de mais actual para combatê-lo do que um folhetim de umas obras assinadas por si há mais de vinte anos, quando ele estava ainda muito longe de vir a ser governo, e destinado a penar nas bancadas da oposição, durante mais uma legislatura completa.

Tenho vindo a resistir nos últimos tempos a recorrentes impulsos de deixar de comprar um jornal que tenho comprado todos os dias desde a sua fundação. Mas o episódio de hoje, que até talvez nem seja muito significativo, foi aquela pequena gota que fez transbordar o copo cansado da minha paciência.

A partir de hoje, o jornal português Público não será mais comprado por mim, juntando-se ao lote de periódicos que nunca compro. Pelo menos, enquanto não me cansar do meu cansaço, se me cansar...


Resta apenas a fraca consolação simbólica de haver um jornal espanhol com o mesmo título bem mais legível do que o seu predecessor português.