quarta-feira, 31 de março de 2010

Brasil e Portugal - política.

1. Há uns dias atrás, extraí do site do jornal brasileiro Folha de S.Paulo o seguinte excerto:

“A nove meses de deixar o governo e em campanha aberta para eleger Dilma Rousseff sua sucessora, o presidente Lula atingiu a sua melhor avaliação desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2003: 76% da população consideram seu governo ótimo ou bom. É o recorde para um presidente desde que o Datafolha iniciou o levantamento, em 1990."

Se nos lembrarmos que Lula está no fim do seu segundo mandato de quatro anos, que o seu Partido nunca teve, por si só, maioria nem no Congresso nem no Senado, que sofreu uma feroz campanha de descredibilização de carácter na parte final do seu primeiro mandato, que teve sempre contra ele uma parte largamente dominante da comunicação social brasileira, podemos fazer uma ideia do que significam estes resultados.

Aquando da primeira eleição foi lançada uma campanha internacional de alarme pelo alegado risco Lula, largamente enraizada nos círculos dos poderes fácticos brasileiros e na respectiva direita. Afinal, os governos de Lula deram uma nova projecção mundial ao Brasil e estiveram muito longe de ter feito desmoronar a economia brasileira.

E, tendo sido Lula eleito pela força imparável dos mais pobres, não os desiludiu nem frustrou. Não lhes deu o paraíso, mas aliviou muitos da miséria; não os livrou de todas as dificuldades, mas restituiu-lhes uma dignidade nova e abriu-lhes um caminho, mostrando-lhes que há no futuro uma esperança, um outro horizonte possível.

Note-se que esse percurso teve na base coligações heterogéneas e instáveis e não um sólido bloco político. Sofreu o natural combate de uma direita saudosa da ditadura militar, que engoliu com dificuldade a presença de um operário metalúrgico na Presidência da República. Viu saírem das suas fileiras fracções que combateram ( e combatem) Lula e o PT sem estados de alma. Primeiro, foi a cisão do PSOL ( uma espécie de Bloco de Esquerda dos brasileiros), ainda no decurso do primeiro mandato; mais recentemente, foi a saída da senadora Marina Silva ( ex- Ministra do governo de Lula) para se candidatar pelos Verdes à Presidência da República, contra Dilma Roussef a candidata do PT.
Mas não se julgue que ficam por aqui as hostilidades que Lula tem que enfrentar vindas de dentro da própria esquerda brasileira. Por inacreditável que pareça, o PPS ( Partido Popular Socialista), que antes de ter adoptado esta designação foi o Partido Comunista Brasileiro ( do lendário Luís Carlos Prestes), é um dos três partidos que constituem o núcleo duro da oposição a Lula e ao PT, apoiando a candidatura do actual governador de S.Paulo, José Serra. Os outros dois partidos desta santa aliança de direita contra Lula são o PSDB ( a que pertence o Presidente Fernando Henrique Cardoso que antecedeu Lula e o próprio Serra) e os Dem ( os democráticos, que até há pouco se chamava Partido da Frente Liberal, constituídos por antigos apoiantes da ditadura militar).

É claro, que o PT de Lula tem outros aliados dentro da esquerda brasileira, como é o caso do Partido Socialista Brasileiro ( ao qual pertenceu Miguel Arraes e a que agora pertence Ciro Gomes ), do Partido Democrático Trabalhista ( fundado por Leonel Brizolla), do Partido Comunista do Brasil ( que é o herdeiro da cisão pró-chinesa do Partido Comunista Brasileiro, acima referido, consumada há décadas atrás). No entanto, o que é estranho é que haja forças, alegadamente de esquerda, que se virem contra Lula e o PT, em aliança clara e ostensiva com a direita brasileira.

Apesar de tudo isto, a popularidade de Lula é a que acima se constata.

Não sou um apoiante acrítico de Lula e do PT. Não são perfeitos , não são infalíveis. Quem o é ? Aliás, não sou apoiante acrítico de ninguém. Mas não posso deixar de admirar a extraordinária capacidade política, duravelmente demonstrada por Lula, bem como a força do PT, na sua diversidade; e tudo isso com as limitações e dificuldades de quem está a abrir um caminho político novo. Um e outro, tal como não são infalíveis, não são invencíveis, mas não vai ser fácil vencê-los.

Mas, o grande mérito que têm, para mim, é o de que no essencial ( e não certamente escolhendo sempre os caminhos que eu julgaria preferíveis) foram fiéis aos seus, à sua base social, aos que dependem da realização do programa de Lula e do PT para subirem na escala da inclusão social, da felicidade, da dignidade, da cidadania. Podem ter pactuado (e pactuaram) com áreas distantes deles no espectro político, podem ter sido, algumas vezes, mais transigentes do que parecia necessário, mas, no essencial, não traíram a confiança do seus


2.Penso, procurando comparar com a situação brasileira, a actual conjuntura portuguesa. Adoptando o ponto de vista de militante do PS, que sou, procuro olhar para lá da espuma cinzenta destes dias arrastados, escapar dentro do possível à volatilidade acelerada das circunstâncias. Ignoro o fogo rasteiro das oposições, reduzido a uma deriva sectária que parece não ter fim. E, olhando para a conjuntura, colho a impressão de que o mais urgente para o PS é, hoje, a preparação do médio prazo.

Não estou com isto a menosprezar os deveres conjunturais de quem governa, nem as suas enormes dificuldades, agravadas por este cerco enraivecido de uma inesperada matilha de sombras, que a si própria se dispensa de ter uma política que não seja a de combater o governo e o PS. Mas sinto a política, ancorada no imediato, como se ela não fosse mais do que o enchimento de um cântaro furado. Podemos ser mais ou menos eficazes a enchê-lo. Não é pouco, ser eficaz a enchê-lo. Não há que absolver a ineficiência do processo de enchimento. Mas o essencial do nosso problema é que o cântaro está roto. Enquanto não o substituirmos, de pouco valerá o nosso trabalho de Sísifo de o encher dia após dia.

O PS, sem deixar de continuar a porfiar para que o cântaro se não esvazie por completo, tem que começar por admitir que o cântaro está roto. De facto, se não reconhecemos um problema como poderemos resolvê-lo ? Reconheccendo-o, o PS encontrar-se-á de imediato com o essencial da sua identidade: ou seja, este não é o seu cântaro, mas aceita a responsabilidade de o ir enchendo, enquanto não o consegue substituir.

Este é, para mim, o cerne da problemática que o PS enfrenta, a qual é, aliás, de algum modo, a sua própria razão de ser, como realidade social historicamente situada. E é por isso que me parece que o futuro do nosso país se joga no êxito ou no fracasso do PS como protagonista de uma resposta global a essa problemática. O que , naturalmente, exige, desde logo, uma renovação radical da sua maneira de se inserir na sociedade portuguesa, bem como um alargamento significativo da amplitude das suas tarefas e uma transformação completa do seu modo de funcionar.

Saber quais as etapas que nos esperam nesse caminho, é algo que devemos procurar, desde já, cientes que será no decorrer dessa jornada que se irão precisando os contornos dos percursos que nos são exigidos e dos horizontes que iremos construindo. Mas temos, à partida, que nos afirmar como elementos incontornáveis de qualquer futuro pós-capitalista, de modo a que as nossas políticas não possam ser aprisionadas pela lógica de sobrevivência de um sistema económico -- o capitalismo que é injusto, ademocrático, liberticida e conduz a humanidade para um suicídio colectivo. Não esqueçamos: o cântaro está furado.


E, seguramente, para os socialistas portugueses, para o PS, para este governo, será muito mais patriótico e futurante correrem o risco de ser vencidos num combate travado em prol dos seus valores, das suas ideias e em consonância plena com povo de esquerda (verdadeiramente, a nossa gente), do que colher pequenas e efémeras migalhas de um alegado êxito europeu, concedidas pela cínica mistura do Partido Popular Europeu com os grandes agentes da especulação financeira internacional que tem decidido os destinos da União Europeia. Uma mistura cínica e sem norte que rege baçamente uma Europa aprisionada neste arrastar injusto dos anos que a vão reduzindo a uma imensa melancolia histórica, dia a dia saudosa de um futuro que parece escapar-lhe.

E é por isso que o contributo que os socialistas europeus podem, hoje, dar à Europa, para que ela retome a sua viagem, é o de serem eles próprios, o de trazerem para a cena política europeia a sua própria identidade política, as suas ideias historicamente sedimentadas, os seus valores. E, principalmente, o de construirem com celeridade uma visão de futuro que se afaste de qualquer tipo de cópia resignada deste presente triste e abafado que parece cercar-nos.
O que não podemos é continuar a ser uma espécie de pajem obsequioso e discreto de um neoliberalismo agonizante que asfixia os europeus e lhes confisca o amanhã. Chegou um tempo de encruzilhada: ou a Europa deixa de ser a quinta privada do Partido Popular Europeu ou vai aproximar-se rapidamente de um tempo de abismos.

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