quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

À Procura das Funções do Estado



1. Nas páginas onde se escreve o discurso político e até em algumas das pequenas, médias e grandes arenas, onde se travam os respectivos combates, aflora uma circunspecta preocupação quanto às funções do Estado.

É com se, de repente, umas tantas centenas de cérebros se tivessem acendido, por força de uma providência que a todos nos transcende, e tivessem assumido, em conjunto, a generosa tarefa de iluminar o espírito dos actores políticos mais ostensivos e, principalmente, dos timoneiros que conduzem o aparelho de Estado.
E se no seio dessa legião luminosa, que nos quer ajudar a descobrir os caminhos para onde deveremos empurrar o Estado, quer ele queira quer não, se distinguem muitos dos mais subtis arautos do neoliberalismo imperante, não pode deixar de se reconhecer que, também aí, se detectam muitos honestos promotores de uma crítica insistente a esse neoliberalismo.

É certo que esse grande projecto de investigação acerca do Estado continua ainda a ser um grande salto nunca dado, embora muitos continuem a tomar balanço para ele. Mesmo assim, todavia, assombra já os corredores dos templos da sabedoria, contamina a tranquilidade dos areópagos políticos e espreita nas páginas dos panfletários de serviço, embora assemelhando-se mais a uma velada ameaça não cumprida do que a uma boa intenção frustrada.

Na verdade, nos meandros dessa sombra, acabamos sempre por encontrar as pegadas de uma vulgata neoliberal, que só não o é por completo, graças à subtileza com que se insinua. De facto, no fundo no fundo, se virmos bem, ela acaba por olhar para o Estado como para o mafarrico, porfiando na empresa de o ir enfraquecendo, para mais facilmente o poder transformar numa espécie de ronronante cão de luxo dos poderosos, encarregado de miar carinhosamente contra os donos, mas disposto a morder sem piedade em quem os incomode.

É certo que, no seio dessa nebulosa de potenciais estudiosos, que ambicionam construir o catálogo sólido e definitivo das funções do Estado, alguns cultivam a esperança de que será a estabilização de um catálogo consensual das funções do Estado, o dique capaz de conter a enxurrada das mistificações neoliberais, acerca dessas funções. Não questiono as suas intenções, mas desconfio da sua eficácia.

Na verdade, se estes últimos me pedissem um atestado de honestidade intelectual e de boas intenções, descontada a ilegitimidade absoluta de, seja quem for, atestar coisas dessas, passá-lo-ia sem hesitar. Mas, se me pedissem para me juntar a eles na exaltação da utilidade da pesquisa das funções em causa, não os poderia acompanhar.
De facto, o Estado ou é um animal livre ou não serve para nada. É certo que os cidadãos revelariam a mais funda imprudência se não garantissem perante ele a sua esfera de liberdade, individual e colectiva. Mas uma coisa é a nossa indispensável afirmação de cidadãos livres perante um Estado livre, mas confinado pelos limites da democracia, outra coisa é tecer habilmente um Estado anémico engessado por interesses privados.

2. Ora, há dois passos que devem ser dados para que a discussão das funções do Estado não se reduza a um artefacto ideológico, destinado a porfiar na simples reprodução do capitalismo,ou seja, a uma verdadeira partitura neoliberal, mesmo quando na sua execução participem músicos que o não são.

O primeiro implica uma tomada de consciência de que o debate acerca das funções do Estado está longe de poder ser um percurso teórico desfasado da realidade social, que se vá traduzindo, pouco a pouco, num leque de conclusões idealmente objectivas, vocacionadas para pairarem sobre as paixões humanas e destinadas a promoverem um amplo consenso. Consenso cuja cientificidade relativa acabaria por levar à correcção dos erros dos maus governos e de incentivar o fulgor dos bons.
De facto, uma das lutas nucleares do combate político moderno é a que se trava em torno da conquista da hegemonia quanto à concepção do Estado e, portanto, quanto às suas funções. A escolha das funções do Estado que devem ser privilegiadas e das que devem ficar fora do seu âmbito é , na verdade, um dos instrumentos estratégicos essenciais no combate político actual. Pretender chegar a um consenso politicamente neutro acerca delas é, por isso, o mesmo que procurar acabar com a luta política numa sociedade desigual, injusta e estropiada nos seus fundamentos.

Por isso, a grande questão para os socialistas reformistas, que verdadeiramente sejam ambas as coisas, é a de saber quais são as funções do Estado que devem ser incrementadas para potenciarem a eficácia da sua estratégia e quais são as que podem ser partilhadas com as entidades que dividam com eles o essencial do horizonte que temos pela frente. A questão não deve ser, por isso, a de saber quais devem ser as funções do Estado, em abstracto.

O segundo passo tem conexão com o anterior, já que nenhum sujeito político, colectivamente organizado que se assuma como socialista, pode renunciar a ter um papel decisivo na pilotagem da sociedade, em que se integre, para fora do capitalismo, ou seja, na acção dirigida a abreviar e a fazer com que decorra da melhor maneira possível a emergência de um pós-capitalismo. Portanto, a estratégia dos socialistas há-de ter como aspecto nuclear o papel que desempenhem no trajecto que as sociedades que somos percorrem rumo a um pós-capitalismo historicamente provável e que, para os socialistas, deverá ter como referência dominante um horizonte socialista.

Por isso, se os socialistas reformistas não podem desinteressar-se do modo como o capitalismo deve ser gerido, para que não ocorram disfunções no seu quotidiano que se traduzam num acréscimo brusco e dramático do sofrimento de muitos, ainda menos se podem esquecer do imperativo de contribuírem para que se chegue ao pós-capitalismo com o máximo de rapidez possível e com um mínimo de perturbações na vida dos cidadãos. Aliás, verdadeiramente, o êxito desse trajecto estará na rapidez com que se combine, no dia a dia, a diminuição das desigualdades sociais, a melhoria da qualidade da democracia, o refinamento e a universalização da humanidade, numa atmosfera que permita respeitar, sem peias, a liberdade, a solidariedade e a criatividade. Ou seja, é construindo uma sociedade justa que se chega a um pós-capitalismo no qual os socialistas se possam reconhecer.

Deste modo, para os socialistas esta participação na pilotagem de um processo de transição assumido é, verdadeiramente, o aspecto determinante das funções do Estado, o factor de congregação de todas as outras, o eixo estruturante da lógica de todas elas. Também por isto, reflectir em abstracto acerca de uma hipotética determinação de umas funções do Estado que pudessem ser partilhadas pelos que defendem o capitalismo e pelos que se querem ver livres dele, será sempre um caminho ilusório.

Por isso, há um objecto que tem plena actualidade como vector importante das preocupações teóricas dos socialista: a procura das funções que devem ser assumidas pelo Estado para que ele possa desempenhar, na globalidade e em simultâneo, o seu papel de guia da gestão corrente e de piloto da desejada metamorfose das sociedades capitalistas em que actualmente vivemos, rumo a um pós-capitalismo em que nos possamos reconhecer.

Pelo contrário, é uma empresa ilusória de significado duvidoso procurar um perfil abstracto e consensual das funções do Estado que possa ser assumido, como se fosse um contexto objectivo, por todas as correntes político-ideológicas.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Para uma desratingação do mundo

O papel das agências de rating, na crise económica que o mundo atravessa, está por apurar na sua dimensão completa. Mas o que até agora é dado como adquirido, já é suficiente para lhes retirar qualquer sombra de credibilidade como aferidoras seja lá do que for, no plano económico.

Verdadeiramente, uma das primeiras medidas de combate à actual crise devia ter sido a sua pura e simples extinção, para poderem ser substituídas por um organismo novo dependente das Nações Unidas, que realmente fosse uma fonte informativa, objectiva e imparcial, sobre a realidade económica de cada país. Ou seja, uma instância realmente imparcial, fiável e movida por critérios científicos, radicados num indispensável pluralismo científico em matéria económica. Nunca uma expressão paradigmática do pensamento neoliberal dominante, de cuja eficácia na própria reprodução do capitalismo se pode duvidar. Uma ilustração da própria deriva neoliberal, um subproduto da sofreguidão lucrativista empenhada, essencialmente, na conquista de lucros cada vez mais especulativos para os seus accionistas, ou seja, a reprodução daquilo que as malfadadas “três irmãs” do rating tão eloquentemente representam.

E, no entanto, ei-las que voltam distribuindo conselhos e anátemas, passando certidões de excelência e de fracasso, como se um qualquer concílio dos deuses as tivesse ungido, dessa extrema sabedoria e dessa honesta imparcialidade, que as legitimam para condenarem países e povos a dificuldades acrescidas ou a primaveras inesperadas. Uma canhestrice dos seus sábios, uma perversidade calculada dos seus donos, um desvio atraído por qualquer recompensa, podem atirar com dificuldades ou com oxigénio, para cima de países com milhões de cidadãos que não votaram nos senhores do rating, nem os podem controlar, nem demitir, nem têm como não votar neles numa próxima vez.

E num dia, tais senhores, podem causar mais prejuízos a um país, com os seus eventuais erros, com os seus preconceitos ideológicos, com os seus anátemas teleguiados pela vulgata neoliberal, do que séculos de pirataria conseguiram pela força dos canhões e da falta de escrúpulos dos corsários. Mas os piratas, quando eram apanhados corriam o risco de ser enforcados, enquanto os "ratings" têm a possibilidade de contemplar como se fossem seus vassalos, ajoelhando-se perante eles numa submissão de preces, muitos daqueles que mergulharam na desgraça, mas que temerosamente , lhes fazem encomendas.

As agências de rating e o papel que se lhes continua a consentir na arena internacional são eventualmente a mais incontornável ilustração do modo como os poderes dominantes no mundo actual, se preparam para continuar a deixar o neoliberalismo à rédea solta, como se fosse uma fatalidade que o mundo não fosse mais do que uma oportunidade para que o poder inquestionado do dinheiro reduzisse á infelicidade as multidões de explorados.

Que os partidos da direita se acomodem com este escândalo, não estranho: fazem o seu papel de caniches do capital.

Mas que os partidos de esquerda, sejam eles partidos de governo ou partidos de oposição, pratiquem a mesma indulgência, é que me parece suicida. Nem o exacerbar das preocupações gestionárias de uns nem a sofreguidão no combate ao um governo de outros, podem absolver desta miopia política.

Não nos iludamos: os poderes incontrolados das agências de rating constituem um risco mais sério para muitos países do que uma invasão militar. Se não temos dúvidas quanto á necessidade de nos defendermos desta, porque nos desprotegemos perante aquelas ?

O caos sublime e a boa vizinhança


Entre os debates emergentes, que a pouco e pouco se vêm aproximando da centralidade nas preocupações dos cidadãos, está o que se vem travando, com grande ressonância na política autárquica, sobre as cidades, sobre o modo de as valorizar como focos geradores de uma nova qualidade de vida. As pequenas, as médias, as grandes cidades, bem como as grandes metrópoles de relevo mundial, têm seguramente problemas diferentes. Diferença também marcada pela identidade dos povos em que se radicam, pelo tipo de países a que pertencem, pelas culturas que nelas predominam. Mas muitas são as problemáticas semelhantes que as agitam e muito há a esperar da ponderação comparada entre o que, para além das suas diferenças, há de comum entre elas.

Pareceu-me por isso interessante, dar a conhecer neste blog um texto recentemente divulgado na excelente revista brasileira de grande circulação, CartaCapital. O seu autor é um arquitecto italiano de relevo mundial, Massimiliano Fuksas, (65 anos).

Nestes, como em muitos outros domínios, uma imaginação criativa do futuro é meio caminho andado para se chegar até ele. Por isso, sem que com ele concorde totalmente, mas pelo facto de admirar o seu rasgo futurante, resolvi transcrever o referido texto. Ei-lo.

O caos sublime e a boa vizinhança

"A arquitetura extrapolou definitivamente os seus restritos limites e investiga territórios e realidades que protagonizam mudanças substanciais e repentinas. Fases de crise alternam-se de forma esquizofrênica a momentos de desenvolvimento, segundo regras incompreensíveis. Às dificuldades dos analistas de compreender as causas, contrapõe-se àquilo que eu defino como “o caos sublime”. Não se trata, este caos, de uma desordem desencadeada por desastres sociais e econômicos, mas uma maneira diferente de viver à procura das relações entre seres humanos. Do estudo e da atenção dirigidos às diversas formas de realidade humana e urbana surgirá uma forma (um mundo?) livre do peso do passado, com o olhar para um presente atento às consequências de nossas ações em prol do futuro. A arquitetura e os materiais aspiram a se tornar mais que simples realidade. As megalópoles e as periferias representam também as aspirações dos moradores de abandonar a condição de meros agregados urbanos. A cidade, ou aquele diabólico “magma” que ainda teimamos em assim chamar, deseja transformar-se em outra realidade. É nossa tarefa ajudá-la, depois de ter compreendido as razões e os sentimentos envolvidos nesse processo. As pessoas escolhem sempre habitar as áreas urbanas, apesar de, nelas, viverem pior, não melhor. No entanto, a cidade é o lugar da economia, da troca, da possibilidade de enriquecer. A cidade é a contradição contínua e excitante. É gente que você encontra, o estresse que tolera, os perigos aos quais vai de encontro, os interesses e as curiosidades que satisfaz. A cidade, enfim, é o tempo que vivemos. É a contemporaneidade, é não se considerar um marginal. Não se pode mais aceitar a estrutura colossal que nos liga ao antigo sistema inglês, das artérias de ligação concêntricas, que agora somente servem para conter a invasão dos “nômades urbanos” nas zonas verdes públicas do centro, um modo de ver a cidade derrotada pelo peso do trânsito descomunal. Para trabalhar em uma cidade, é necessário aceitar de forma inevitável a sua lógica e as suas características. Precisamos operar no interior desse caos. Mas a regra vale para qualquer aglomerado urbano de grandes dimensões que a cada dia vive o assalto de novos fluxos imigratórios e deve, por isso, levar em conta a poluição e o tráfego, os engarrafamentos, a velha e a nova pobreza, muitas vezes com o desespero profundo de grupos sociais de todo marginalizados. Uma cidade que funciona bem, em um certo sentido, é Tóquio. Sem nenhum plano, sem nenhum projeto. Instintivamente se deu, ali, uma dupla estrutura. De um lado, os arranha-céus, os edifícios do trabalho ou a verticalidade frequentemente multifuncional, já que em um plano há um museu e, em outro, algumas moradias. Do outro, as tradições, as velhas casas baixas, até os casebres precários, como em uma cidade italiana do sul assolada por terremoto. Porém, Tóquio não somente escapou da explosão, depois de ter adotado instintivamente, e sem nenhuma programação vinda do alto, o modelo duplo (ou seja, a verticalização associada à horizontalização), como melhorou. Seus moradores descobriram o prazer da vida de bairro, afeiçoando-se a seus sushibars, a seus espaços, a seus teatros. Esta é a complexidade de uma metrópole resolvida sem a presunção de que tudo ganhe o toque de um “bruxo curandeiro” ali aportado, movido por um plano a inventar regras, a arrumar o que não pode ser arrumado. Le Corbusier também apoiava as vantagens da concentração da construção vertical em relação à horizontalização das cidades-jardim, a economia do espaço, do máximo aproveitamento de uma só área. A diferença fundamental entre metrópole e megalópole não é a quantidade dos habitantes, mas a aceleração do crescimento. Na Europa não existem, pelo menos até agora, megalópoles, somente metrópoles. Megalópoles são Kuala Lumpur, Daca e Calcutá. A megalópole é, enfim, a moderna representação do nomadismo. O agregado desloca-se, modifica-se continuamente, é algo dúctil. A megalópole, muitas vezes, não tem sequer um centro, não é policêntrica como a metrópole. Há duas formas de “fazer urbanística” que lembram outras tantas formas de cozinhar. O primeiro sistema é compilar uma bela lista, ir ao mercado e comprar todo ingrediente requerido, ainda que passado. O outro sistema prevê ir ao mercado e escolher as mercadorias com base em seu frescor. Sou apegado a esta segunda lógica: vou ao mercado da cidade, ou mesmo da megalópole, e procedo usando o que encontro. É necessário superar a lógica do passado, que previa uma cidade dividida em zonas e em áreas de interesse: as habitações privadas, os escritórios e o trabalho, o comércio, a diversão. É preciso promover um mix de todos esses componentes. Seria uma forma de exorcizar um problema, relativo à nossa incapacidade de controlar formas mais articuladas e fragmentadas. Misturar necessidades diferentes significa experimentar e acompanhar as mil contradições do nosso tempo. E nesse ponto é que voltamos ao “caos sublime”. Gosto de lembrar que a palavra sublime origina-se do latim sub-limus, ou seja, que sobe de forma oblíqua. Por isso pode-se prever um início partindo do que está embaixo, das necessidades espontâneas, das necessidades reais de gente que mora na cidade e gera o caos, porém se eleva para o alto, porque a aspiração a uma vida digna de ser vivida é comum a todos os seres humanos. No imediato pós-guerra, os problemas urbanísticos eram bem menos espantosos e angustiantes. Tratava-se, no fundo, de reconstruir áreas bombardeadas e destinar áreas campestres a uma urbanização mais ou menos controlada. Houve o período do dirigismo, da cega confiança nos planos reguladores e no projeto grandioso. Vale pensar, para citar um dos modelos mais famosos e imponentes, a Brasília de Niemeyer, a Daca de Louis Kahan ou a Chandigarh do mesmo Le Corbusier. Observando hoje essas cidades, seus únicos lugares onde se vive bem são aqueles espontâneos. Como os aglomerados em volta das paradas de ônibus que se tornaram mercados e locais de encontro. Esta é a escolha da gente que mora nos lugares nascidos de um plano. Não é culpa dos urbanistas, dos projetistas. Não é culpa dos habitantes, que talvez “não entendam” ou “não apreciem” os projetos. Estou convencido de que qualquer morador de Brasília ou do Corviale em Roma, caso imaginasse uma solução de moradia, pensaria em uma pequena casa com alpendre, mesmo se erguida de simples caniços. É uma perspectiva muito mais humana. O forte crescimento econômico do Brasil tem São Paulo como coração financeiro e centro de acumulação. O desenvolvimento de São Paulo produziu uma megalópole de 12 milhões de habitantes, mas, levando-se em conta as povoações limítrofes, supera-se em muito este número. A área de São Paulo tem, portanto, aproximadamente 20 milhões de habitantes. A indústria de construção presente na cidade deve ser sua principal fonte de recursos. Observando-se São Paulo do alto, de uma torre da marginal do Pinheiros, por exemplo, obtém-se um skyline voltado para o alto. Os canteiros de obras atualmente ocupam cada área livre disponível. Um rio lamacento, entre os mais poluídos (e esta questão, sempre presente na plataforma de cada político no poder, jamais é resolvida), caminha pelas construções. A insuficiência de um sistema de transporte público veloz como o Metrô e outras ligações sobre trilhos decidiu que a cidade fosse asfixiada pelo trânsito. O desenvolvimento da megalópole não concede nada à arquitetura. Sobre master plans odiosamente repetitivos aparecerão edifícios de grandes escritórios comerciais americanos, isto no melhor dos casos. A equação entre desenvolvimento, modernismo e arquitetura não parece tão evidente. As torres em construção são, em sua maioria, destinadas a residências, e podemos dizer que possuem duas “filosofias”. A primeira: são paralelepípedos verticais aos quais os arquitetos condescendentes devem dar uma fachada vendável. A segunda: as torres são revestidas com decoração e molduras que se reportam vagamente a um estilo entre as beaux arts e a art déco. Por sorte, o Brasil possui uma sólida tradição moderna, que prossegue com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha e com o centenário Oscar Niemeyer. Não podemos nos esquecer de Lina Bo Bardi, com seu museu-ponte em São Paulo, o Masp, e o centro cultural recuperado de uma antiga fábrica, o Sesc Pompeia. O prefeito decidiu iniciar seu mandato eliminando todos os paineis publicitários que invadiam a cidade. Caso fosse perguntado aos cidadãos o que lhes poderia ser mais útil, a resposta seria sempre a mesma: uma grande rede de Metrô. A cidade agredida pelo trânsito naturalmente se orienta para a vida de bairro. Aquilo que os urbanistas e os políticos não foram capazes de fazer, isto é, uma mistura de residências e escritórios, serviços e verde, os cidadãos construíram sozinhos, ao escolher viver nos bairros em que trabalham. Deste modo, este espaço foi redefinido para abrigar o tempo livre e a cultura de seus habitantes e promovido ao velho e eterno conceito de “vilarejo”. São Paulo pode assim tornar-se uma cidade onde se experimenta a possibilidade de fazer conviver o muito grande, a megalópole, com o muito pequeno, o “bairro”.
[Massimiliano Fuksas]

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Belém e o Rato- dois locais, dois destinos.


Dizem que no PS há divisões quanto ao grau de hostilidade que se deve pôr nas relações políticas com Cavaco Silva. Mas é legítimo que nos interroguemos sobre se uma tal questão tem a densidade política suficiente para ser suporte de uma diferenciação táctica.

O que me parece é que, quem dentro do PS a tomar como tal, apenas estará a revelar uma preocupante pobreza das suas opções políticas de natureza táctica. Mas quem dentro do PS , para além de valorizar esta questão, insistir em apelos à intervenção presidencial, estará ainda a cometer um significativo erro estratégico.

De facto, sendo o actual Presidente da República o ex-candidato triunfante da direita, será estulto imaginar que, em última instância e no essencial, ele fugirá do sector largamente dominante do seu eleitorado. Aliás, tem repetidamente dado sinais públicos de que ainda hoje se identifica como o continuador do primeiro-ministro do PSD que ele foi durante cerca de uma década.

Sendo assim, se o PS lhe atribuir um estatuto de alto relevo político, quando julga precisar dele para o ajudar a ultrapassar uma qualquer dificuldade conjuntural, está a credenciá-lo, a reconhecer-lhe um estatuto de imparcialidade e de legitimidade política substancial, que o PR poderá usar contra o PS, quando chegar uma qualquer hora da verdade, em termos do combate político.

Por isso, o PS deve encarar sempre o PR como o ex-candidato da direita que está sentado em Belém. É claro, que deve respeitá-lo institucionalmente, deve ter abertas para com ele as vias de diálogo que forem constitucionalmente adequadas, sempre leais e descomplexadas. Mas não deve nunca, mesmo que seja através de uma aparente acrimónia, deixar transparecer a ideia de que temos ali alguém de que podemos esperar qualquer verdadeira ajuda estratégica, alguém em quem possamos confiar politicamente. Deste modo, pedir-lhe para nos ajudar contra os nossos opositores, além de não ter qualquer efeito prático, é reconhecer-lhe uma credibilidade que um dia será usada contra nós, se for caso disso.
Neste contexto, o PS não pode permitir que um qualquer garnisé político, ainda que de porte pomposo e voz grossa, cacareje publicamente contra o PR, um qualquer rosário de frases inconsequentes, que só podem virar-se contra nós. Relativamente ao PR: inteligência e contenção. Nunca bicadas gratuitas ou irrelevantes: responder em legítima defesa , com serenidade mas sem ambiguidade.

De facto, nós não temos que estar a justificar a nossa saída da maioria presidencial, pois não fazemos nem podemos objectivamente fazer parte dela. E não devemos cair na esparrela de ver numa imaginária boa vontade presidencial um suplemento de força para nós. A força do PS está nos seus militantes, nos seus apoiantes, nos seus eleitores. O actual PR, quando puder (se alguma vez puder), será o primeiro a derrubar-nos. Enquanto isso não estiver ao seu alcance, coexistirá pacificamente connosco. Façamos o mesmo. Preparemo-nos para o substituir no momento próprio ( as próximas eleições presidenciais); e até lá coexistamos com ele, com sangue frio. Sem ilusões, mas também sem precipitações.

Mas, por favor, quanto ao PR, quando alguém falar publicamente em representação do PS, que seja um peso pesado, se possível da direcção do partido, necessariamente, repito, falando com serenidade e inteligência.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Discurso, Política e Língua


Uma das causas da dificuldade dos cidadãos comuns em se entusiasmarem com a política estará, certamente, na degradação da qualidade do discurso político. Quer os textos oficiais dos partidos, quer os textos dos comentadores jornalísticos, quer os cometimentos em prosa, alegadamente comunicacional, de muitos pequenos e médios responsáveis dos mais diversos partidos, incorrem com demasiada frequência, ou na vulgaridade mais previsível, em puros atentados à língua portuguesa, ou na simples falta de bom senso.


É claro que ninguém esperaria que o discurso político trouxesse sempre consigo um indisfarçável fulgor queirosiano. Mas, daí a aceitar-se que, tão frequentemente, descambe num amontoado de palavras que se atrapalham umas às outras, vai uma grande distância.


Mas, mesmo quando as palavras, num esforço louvável, se conseguem alinhar com um mínimo de respeito pela mais óbvia gramática, não raramente acabam por cair num entediante rosário de lugares comuns.


E, assim, dia após dia, é posta à prova a resistência dos cidadãos ao império do entaramelamento discursivo, colocando-se à língua portuguesa um verdadeiro desafio de sobrevivência. E, curiosamente, o maior perigo não espreita nas vozes rudes mas coloridas do povo, que acaba por fazer sua a história de uma língua que torna viva, mas no verbo tosco de letrados mal amanhados presos ao cinzento carregado da sua própria monotonia.


Porém, o anémico verbo dos discursos políticos oficiais não se caracteriza apenas, pelo seu ódio profundo à gramática, pela sua alergia aos cânones mais simples da língua portuguesa. É também, cada vez mais, um discurso de ganhar e de perder, de avançar e de recuar, de iludir e de fintar, estruturado pelos mesmos parâmetros seguidos pelos discursos sobre o futebol.


Aliás, há muito que avalio a densidade ideológica de um político pela medida em que o seu discurso se confunde ou se distingue dos discursos dos treinadores de futebol. E são muito poucos os que conseguem romper, em primeiro lugar, a barreira tecida pela sucessão de palavras através das quais sempre procuram dizer-nos como se deve fazer, mas que nunca conseguem mostrar o que se deve fazer; e, em segundo lugar, contornar o pântano de previsibilidade que a quase todos parece assombrar.

domingo, 20 de dezembro de 2009

O futuro como ópio em Copenhague


É certo que o grande conclave dos aparentes senhores do mundo, realizado no "Reino da Dinamarca" (onde há muito todos sabemos que "algo está podre") se revelou pífio no achamento de propostas que pudessem ser tomadas no presente. Mas, em compensação, revelou um notável rasgo, quanto a medidas a tomar daqui a quarenta anos.

Só lhe faltou um verdadeiro aprofundamento do seu milenarismo, tão criativo, que o teria levado, necessariamente, a um extraordinário êxito: Decretar, desde já, com carácter vinculativo, por unanimidade, o grau zero de poluição para o ano 3000.

O sonho impossível das oposições

É óbvio, para qualquer militante do PS que não ande distraído, mas parece escapar à corte presidencial e às lideranças das oposições, que, se derrubarem ou inviabilizarem o governo do PS, ou os derrubadores formam um governo de união das oposições ou há eleições.

O sonho de que um “deus” qualquer, chame-se ele, Cavaco, Ferreira Leite, Portas, Louçã ou Jerónimo, pode vir dizer ao PS quem o deve representar na liderança de qualquer governo da sua responsabilidade, não é mais do isso: um sonho. E mesmo que todos esses "pequenos deuses caseiros"o sonhassem em conjunto, muito aconchegadamente, continuaria a não passar disso: um sonho. Irrealizável.

Pelo que me diz respeito, a minha posição é clara. De facto, falando com o à vontade de quem, quer no mais recente Congresso do PS, quer no que levou Sócrates pela primeira vez á liderança do Partido, alinhou publicamente, por moções alternativas, eu não só nunca apoiaria um imaginado substituto de Sócrates imposto de fora do PS como o combateria firmemente. E tomem bem nota disto: aquele que por estupidez momentânea admitisse sequer ser o rosto dessa traição induzida, estaria a riscar-se a si próprio de qualquer hipótese futura de desempenhar um papel de relevo em representação do PS.

Deixem-se pois de fantasias, não derrubem aquilo que não forem capazes de substituir, não sonhem com o êxito de possíveis manipulações grosseiras do PS. Repito: se derrubarem ou inviabilizarem o actual governo do PS, suas excelências os corajosos derrubadores não terão êxito na cobardia política de quererem derrubar o PS, para depois o constrangerem a reassumir o poder com um novo rosto. Se levarem por diante essa manobra irresponsável: ou há novas eleições, ou a "coligação canguru" forma governo.

E, por favor, tenham pelo menos a coragem política de assumirem a responsabilidade pelo que vierem a fazer. Não enveredem pela manobra de ilusionismo e contrabando político de tentarem derrubar o governo, ao mesmo tempo que procuram transferir para ele a responsabilidade pelos vossos actos.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Viva o Povo Brasileiro !

Um texto proveniente da blogosfera satélite do jornal francês "Libération" chamou-me particularmente a atenção. Recordei-me de como a direita brasileira tocou as trombetas do alarme, quando Lula ameaçava ganhar as eleições em 2003. Os mais discretos dos seus arautos não se cansaram de desenhar cenários de catástrofe. Mas Lula ganhou e repetiu a vitória. Aproxima-se agora dos oito anos de mandato , durante os quais o seu partido esteve sempre longe de ter uma maioria absoluta nas Câmaras. Os níveis de aprovação poular rondam, no entanto, os 80%. Os índices de pobreza no Brasil diminuiram. Com naturalidade o Brasil deu consistência a uma proeminência política clara na América Latina. Em vez de o ter afundado numa crise e na irrelevância política internacional, como a direita brasileira então desesperadamente vaticinou, Lula, à frente de um goveno liderado pelo PT, tem vindo a contribuir decisivamente para a afirmação do Brasil como actor mundial.
Hoje, ainda é cedo para se saber se a cimeira de Copenhague foi uma comédia ou um drama. Ela oscila ainda entre a irrelevância, revestida pelos ouropeis de uma diplomacia gasta e um pequeno bruxulear de uma leve esperança. Neste quadro, julgo merecer atenção o texto que vou transcrever [ Exit USA, boa tarde Brasil ! ] escrito pela argentina Anabella Rosemberg que é membro da Confederação Sindical Internacional (CSI). Eis o texto:

"Il est vrai que, pour l’Argentine que je suis, ce qui va suivre va peut-être paraître un peu étrange. Et pourtant. Nous venons d’assister, dans le cadre de la totale dégringolade des négociations climat à Copenhague, à la démission d’une superpuissance (Etats-Unis), et à l’arrivée avec brio d’une nation (Brésil) qui patientait dans les starting blocks depuis un moment.Les discours d’Obama et Lula étaient bien plus que des discours sur les grands enjeux que nos chefs d’Etat étaient sensés résoudre à Copenhague. Leurs discours risquent bien plus, à mon avis, de marquer la longue et tortueuse histoire du déclin de l’empire américain.Le refus de négocier est le premier constat de faiblesse d’une puissance.

Aujourd’hui Obama n’a montré aucun signe de flexibilité possible dans les trois propositions qu’il a mis sur la table. Et ce après avoir soigneusement évité d’indiquer que les Etats-Unis avaient été les principaux responsables historiques de l’accumulation des gaz à effet de serre. Du côté de Lula, tout était leadership, volonté, ambition. Evidement, Lula n’est pas parfait, la question n’est pas là. Mais il a montré aux yeux du monde que son pays était près à jouer dans la cours des grands. Nous avons assisté vendredi à Copenhague, je l'ai dit, à la démission d’une superpuissance, une puissance recroquevillée sur elle-même, submergée par des institutions anachroniques, des lobbies impressionnants, des médias qui soumettent les citoyens à l’ignorance et à la peur de l’autre, en même temps que du futur.
Le temps est venu pour la puissance décomplexée et ouvertement ambitieuse du Président Lula. Lui n’a pas eu peur de prendre le gouvernail dans un bateau presque échoué."

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Tremoços e marisco


É um programa televisivo, em que os espectadores mandam palpites sobre qualquer coisa. Desta vez, está em debate o salário dos banqueiros. Descontadas algumas vozes de tapete, que acham bem pago tudo o que o for aos banqueiros, o bom povo vocifera irritado, desabando sobre os vencimentos dos senhores da banca como uma tempestade tropical. Mas quanto aos lucros dos donos dos bancos, nem uma leve brisa de censura.

Oh gente! Deixem lá os tremoços. Preocupem-se com a lagosta.

Calinadas 4 - Mediocalinos



Foi ontem. Acabara uma telenovela, ia iniciar-se outra. Uma voz segura e bem timbrada, com a desenvoltura TVI, comenta o desenrolar das histórias. Numa delas, alguém foi morto. Há vários suspeitos. Cada um procura o seu álibi.

Mas a tão segura e peremptória voz não está ali para vulgaridades. Vai mais longe, muito mais longe, e afirma: “Cada um vai agora procurar o seu “lobby”.

No desfazer das gargalhadas, veio-me à memória uma outra calinada que, já há uns anos, ficou célebre. Dessa vez, o cometimento coube a um grave locutor da RTP.

Havia algo a noticiar, sobre o romance da Maria Velho da Costa, “Missa in Albis”. O locutor não perdeu tempo. Desenvolto e afirmativo, com a segurança grave de uma erudição segura, refere, solenemente, o romance de Maria Velho da Costa : “Missa in Álibis”.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O Inexistente




Se o capitalismo já não existe, por que razão precisam de o defender ?

O avesso e o direito

Os mabecos, as hienas e os coiotes cercam, perseguem e atacam tudo o que nesta sociedade não exale o doce perfume do capitalismo.

As doces carpideiras do destino choram dilacerantemente numa lamentação sem limite, por causa do muito que nesta sociedade ilustra os malefícios do capitalismo.


Depois juntam-se, para ouvirem dos seus reconfortados donos palavras de elogio e de incentivo.

No reino da Dinamarca


Os grandes, os médios e os pequenos juntaram-se na Dinamarca. Os bravos trovejam, os pérfidos regougam, os melífluos seduzem.


Estão todos sentados em redor de um gato, pedindo-lhe que ladre.


Talvez fosse mais sensato, começarem a substituir o inconveniente gato, pelo necessário cão.


A Terra e a Humanidade agradeciam.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Perguntas à esquerda.

A via soviética de ruptura com o capitalismo revelou-se como um atalho para lado nenhum, a via revolucionária da tomada do poder pela violência armada por uma minoria decidida e organizada, para a partir dele extinguir o capitalismo, tem vindo a ser abandonada como alternativa assumida. Talvez por enfrentar o bloqueio, aparentemente intransponível, advindo da extrema vulnerabilidade de qualquer solução limitada a um único país, que não seja acolhida como legítima pela comunidade internacional.

O “blairismo”, como corolário lógico da deriva gestionária do sector dominante da Internacional Socialista, inscreveu-se já na história como apêndice estranho do guerreirismo “bushista” e ostenta no seu passivo a sua completa irrelevância como factor capaz de esconjurar as crises do capitalismo, sem ter mostrado quaisquer virtualidades no conseguimento de uma sociedade mais justa ou de democracias mais perfeitas. Mas, se a crise para onde o neoliberalismo empurrou o sistema capitalista continua a fazer vítimas, mesmo quando se sugere como estando a perder virulência, os partidos da Internacional Socialista parecem ainda não ter escapado, por completo, ao buraco negro da terceira via. É certo que eles reassumiram já, no plano do discurso, a irredutibilidade da sua diferença em face do neoliberalismo dominante, impregnaram mais profundamente a sua voz de um timbre de preocupação pelo social. No entanto, parecem continuar tolhidos pelo economicismo neoliberal, consentindo que, na arena das instâncias internacionais, os agentes, que foram os responsáveis visíveis pela crise que nos sufoca, regressem do silêncio onde tinham caído, para tentarem voltar a transformar em lei as suas ladainhas suicidas. E no quadro da Europa em geral e da União Europeia em particular, tudo isto é tanto mais grave quanto poderia ser diferente sem necessidade de qualquer ruptura dramática.

Que os arautos saudosos de um futuro já desaparecido e os que se recusam a si próprios nas complacências que cultivam se digladiem entre si, num exacerbamento do quotidiano político, como se o longo prazo fosse um campo reservado aos amanuenses da história, na sua cumplicidade estrutural com os numerólogos da política, é algo que podendo compreender-se não se pode aceitar.

Por isso, em Portugal e na União Europeia, devendo estar atentas ao resto do mundo, é tempo de as várias esquerdas assumirem com nitidez uma posição quanto ao sistema capitalista.



Aceitam-no ou recusam-no? Reconhecem-se, por completo, nas sociedades por eles geradas, ou almejam sociedades diferentes, mais livres, mais justas, mais fraternas? Se reconhecem o capitalismo como o fim da história o que é que os distingue essencialmente da direita ? Se consideram como hipótese possível , provável e desejável a emergência de um pós-capitalismo, como pensam contribuir para que ele chegue mais depressa num trajecto auspicioso ? Advogam a via revolucionária da tomada do poder pela violência armada? Em caso, afirmativo: num só país? Num só Continente? Ou optam pela via reformista, num gradual aprofundamento da democracia , numa gradual construção da liberdade, da igualdade e da fraternidade, solidariamente, com justiça? Em caso, afirmativo: apenas a partir do Estado, ou numa interacção entre a a acção política pública e as dinâmicas sociais e culturais, vividas pela sociedade civil ?

É urgente responder a estas perguntas. É urgente que todos os quadrantes da esquerda respondam a estas perguntas, que todos os partidos de esquerda respondam a estas perguntas. Não se esperem respostas rápidas, se as pretendermos reflectidas e autênticas. Mas façamos votos para que comecem rapidamente a preparar-se os processos de reflexão colectiva que possam levar a respostas a essas e a outras possíveis perguntas da mesma natureza, que se identifiquem como estruturantes.

Está na nebulosidade e nos equívocos que subsistem, quanto a estas e a outras questões de fundo, uma boa parte das causas da crispação que, em Portugal e nalguns outros países da Europa, impede as esquerdas de cooperarem entre si no plano institucional. Em Portugal, aliás, a presente conjuntura sublinha, com particular nitidez, a relevância desses factores.

Não espero que uma clarificação completa das questões sugeridas conduza , por si só, ao degelo das relações no seio da esquerda portuguesa, mas penso que o diálogo passará a ser mais fácil. De facto, é sempre mais fácil negociar e cooperar com o outro, sem receio de nos estarmos a descaracterizar, se estivermos completamente seguros da nossa identidade e se ela for também evidente para o exterior.

Mais Chile.

Para completar o texto que acabo de reproduzir, eis um outro transcrito do jornal mexicano "La Jornada", também sobre as eleições chilenas que estão hoje a decorrer. Como diz um título do texto: "Chile elegirá mañana presidente; derechista Piñera es favorito". Esclarecendo que ele "Se impondría con 44%, seguido del oficialista Eduardo Frei, 31. Sin embargo, no sería suficiente para librar la segunda vuelta."

" Chile elegirá presidente este domingo por quinta vez tras el fin de la dictadura de Augusto Pinochet, con el empresario derechista Sebastián Piñera como favorito aunque previsiblemente no con la adhesión suficiente como para amarrar un triunfo en primera vuelta.
Unos 8.3 millones de chilenos están inscritos para elegir al sucesor de la presidenta Michelle Bachelet, en unas elecciones en que también se renueva la totalidad de la Cámara de Diputados, de 120 miembros, y 20 de los 38 escaños del Senado.
Piñera, un multimillonario empresario de 60 años, se impondría con 44 por ciento, seguido del oficialista Eduardo Frei (31), el independiente de izquierda Marco Enríquez (17) y el comunista Jorge Arrate (7), según una última proyección electoral.
Su adhesión no le permitiría; sin embargo, a Piñera amarrar un triunfo en primera vuelta, forzando un balotaje que se realizaría el 17 de enero, posiblemente frente a Frei, un ex presidente (1994-2000) que representa a la coalición de centro izquierda Concertación, que gobierna Chile desde 1990 tras el fin de la dictadura de Pinochet.
En esa eventual segunda vuelta el desenlace es incierto, pues la tendencia en las últimas dos elecciones presidenciales (1999 y 2005) muestra definiciones por estrecho margen.
La última proyección del prestigioso Centro de Estudios de la Realidad Contemporánea (CERC) calcula que en una segunda vuelta Piñera tendría 49 por ciento de votos frente a 32 de Frei, aunque analistas remarcan lo difícil que es prever este escenario antes de la primera vuelta.
"Puesto que el triunfo en primera vuelta está prácticamente descartado, cualquiera que sea el escenario que enfrente Piñera será desafiante. La centro derecha nunca hasta ahora ha sabido librar una campaña competitiva en segunda vuelta", recordó este sábado el politólogo Héctor Soto.
"Ahora sea mayor o menor a 10 puntos la diferencia que lo separe de Frei, se la va a tener que jugar en serio. Será otra campaña", agregó Soto, en alusión a la diferencia de votación que muchos analistas prevén será clave para determinar las opciones de Piñera.
Desde ya Frei -si pasa- cuenta con el apoyo de Arrate, el candidato del Partido Comunista, un economista y ex ministro de Salvador Allende, que se comprometió a sellar una alianza con el oficialismo para evitar el triunfo de la derecha.
Enríquez, disidente del oficialismo, se ha negado a adherir a ese pacto, confiando aún en dar una sorpresa.
El candidato, un cineasta de 36 años hijo de un guerrillero abatido por la dictadura de Pinochet en 1974, conminó a sus rivales de izquierda a apoyarlo a él, sosteniendo que su candidatura es la única capaz de derrotar a Piñera.
"Si lo que convoca a mis contendores es derrotar a Piñera, yo los convoco a que se sumen a mi candidatura, que es lo única capaz de ganarle", señaló.
Las cifras lo respaldan: según la CERC, de los tres candidatos es el que mejor posibilidad tendría ante Piñera en una segunda vuelta.
Pero si, como prevén las encuestas, Enríquez es tercero, su caudal puede ser decisivo para inclinar la balanza hacia Frei o Piñera.
Piñera, dueño de una fortuna valuada en más de mil 200 millones de dólares llega a las elecciones señalando que "el tiempo de la Concertación ya pasó; hace mucho tiempo que la Concertación se agotó".
Frei, quien ha recibido el apoyo de la muy popular presidenta Bachelet (termina su gobierno con un apoyo entre 75 y 80 por ciento), ha realizado una campaña opaca, según la mayoría de analistas, ensombrecido por Enríquez, quien ha tomado las banderas de la renovación de centro izquierda.
"No demos pasos para atrás ni un salto al vacío", ha señalado Frei en referencia a la necesidad de continuar la obra de la presidenta Bachelet.
El domingo la jornada electoral se inicia a las 07:00 locales (10:00 GMT) y culmina nueve horas después. Los cómputos oficiales, con un alto porcentaje de las mesas escrutadas, se conocen el mismo día de noche. "

Hoje, eleições no Chile.

Hoje,há eleições presidenciais no Chile. Mais uma vez, recorro ao jornal argentino Página 12, para transcrever dele um artigo de Santiago O'Donnell que mostra com clareza e em termos sintéticos o significado destas eleições e uma previsão quanto aos resultados. Ei-lo:

"Empezó la veda electoral. Tras el último mensaje de los candidatos sobre el filo de la medianoche de anteayer, las campañas descolgaron sus carteles y se llamaron a silencio. Dos días para pensar bien el voto, de los cuales ahora queda uno. Una elección que se va decantando hacia un escenario con ballottage entre el candidato de la derecha, en este caso Sebastián Piñera, y el de centroizquierda, en este caso Eduardo Frei, como es habitual en Chile desde el retorno de la democracia en 1990. Hasta ahora, en ese escenario siempre ganó la Concertación del centroizquierda. Pero esta elección es distinta.
Cualquiera sea el resultado de las elecciones de mañana y del eventual ballottage del mes que viene, el mapa político chileno ya no será el mismo, dijo a Página/12 el reconocido sociólogo de la Universidad de Chile Manuel Antonio Garretón. Según Garretón, la novedad es que hasta ahora las fuerzas democráticas abroqueladas alrededor del “No” en el plebiscito pinochetista de 1988 hasta ahora presentaban una sola candidatura, con la excepción de los comunistas, que siempre llevaban su propio candidato. Esas fuerzas iban unidas a la primera vuelta y sumaban a los comunistas en el ballottage. Así, los votos siempre alcanzaban para derrotar a la derecha, esa derecha que expresaba el proyecto económico de Pinochet y en gran parte también su proyecto político. “Esta vez las fuerzas del ‘No’ enfrentan a un único candidato del frente opositor con tres candidatos. Quiere decir que nadie representa a las fuerzas democráticas en su conjunto”, dice el sociólogo, al teléfono recién llegado de Colombia y a punto de partir hacia Argentina. “Chile sigue siendo un país de centroizquierda. Por eso la derecha no puede ganar, pero puede perder la Concertación.”
Hoy están más menos así: Piñera (derecha) con 45 puntos de intención de voto, cerca del techo histórico de la derecha. Frei (Concertación) con 32 puntos, Enríquez-Ominami (ex Concertación) con 20 puntos y Arrate (izquierda) con seis puntos. Si Frei consigue achicar un par de puntos la diferencia y el voto del “No” se abroquela es posible que Piñera no consiga sumar en el ballottage los cinco puntos que necesita para ganar la presidencia. Pero si la diferencia empieza a acercarse a los quince puntos, entonces es posible que algunos votantes de Enríquez-Ominami decidan patear el tablero y darle sus votos a la derecha para manifestar su descontento por las mismas razones que los hicieron abandonar la Concertación.
Pase lo que pase, el espacio de la Concertación sufrirá una transformación profunda, anticipó Garretón. “Si pierde habrá una estampida. No habrá un traspaso a la derecha, sino una centrifugación, un reordenamiento en el mapa político de la oposición. Como Piñera no va a poder gobernar con la derecha dura, va a proponer un gobierno de unidad y algunos individuos o grupos seguramente aprovecharán ese espacio.”
¿Y si gana Frei? “Si gana Frei, deberá encarar un proceso de refundación del espacio político. Tendrá que ampliar la Concertación y llegar a acuerdos políticos con los sectores que representan Arrate y Enríquez-Ominami. Por eso digo que en estas elecciones estamos ante un panorama que hasta ahora no había existido.”
Garretón no es el único que percibe el cambio de escenario. En su discurso de cierre de campaña en Concepción, bajo una gigantografía de su padre asesinado, Frei ensayó una fuerte autocrítica: “Sabemos que tenemos un déficit, que faltan cosas, que hay que avanzar... Chile necesita cambios, nuestra política tiene que renovarse completamente para dar pie a nuevas generaciones”.
Consciente del peligro y sin chances de liderar la coalición, Arrate llamó al diálogo político, que Frei no dudó en aceptar. En cambio, Enríquez-Ominami usó sus últimas palabras para insistir en que un voto por él es un voto útil. Dijo que es el único candidato competitivo con Piñera y prometió un gobierno progresista y más Estado. Entre promesas a los pobres y llamado a ejercer mano dura policial, Piñera tampoco se privó de hablar de la interna del “No” en su discurso de cierre de campaña. Dijo que la autocrítica de Frei había llegado demasiado tarde y prometió gobernar “con los más calificados, no los más acomodados”.
Para Garretón, lo de Piñera es pobre. “Si uno examina la campaña de Piñera es evidente que no hay un proyecto. El dice que es el mejor candidato, que se ha preparado cuatro años, pero no dice lo que va a hacer, salvo que va a haber un cambio. Me hace acordar a Maradona cuando le preguntan por el equipo y se pone hablar de él.”
Sin embargo, ante la crisis interna de la Concertación, la derecha parece haber avanzado. “Yo creo que el pinochetismo tiene vertientes. Una vertiente autoritaria que se manifiesta a través de la UDI (socios de Renovación Nacional, el partido de Piñera, en la Alianza derechista). La otra vertiente es la oligárquica-plutocrática y nadie la expresa mejor que Piñera. Esa vertiente ha sido muy rechazada, porque sociológicamente Chile no es un país de derecha ni de centroderecha. Pero es cierto que en algunos estratos medios, con ciertos niveles de ingresos y consumo, pueden haber perdido su ideología antiplutocrática. Igual no creo que superen el 48 por ciento. Por eso digo que no pueden ganar por sí mismos, pero puede perder la Concertación.”
¿Y cómo se daría esa derrota autoinfligida? Al sociólogo no le parece demasiado feliz la decisión de Enríquez-Ominami de apostar al desmoronamiento de la Concertación para quedarse con sus restos, a riesgo de servirle en bandeja la elección a Piñera. “Creo que Enríquez-Ominami está cometiendo un error. Si dice que la prioridad es derrotar a Piñera debería ser consecuente con sus palabras”, advierte Garretón.
Pero los votantes de Enríquez Ominami no quieren saber nada con la Concertación. ¿Acaso Garretón le está pidiendo a Enríquez-Ominami que sacrifique su caudal de votos?
“La política está hecha de esa forma. No siempre hay que buscar el beneficio inmediato. La política no es sólo Maquiavelo, sino también pensar en el bien del país”, contesta el sociólogo.
En cambio, el análisis de los errores de la Concertación y su anhelada refundación deberán esperar, por lo menos hasta el próximo lunes. “Ese debate no se puede dar a dos días de las elecciones, pero será el tema clave para ir a la segunda vuelta”, apunta Garretón.
Difícil, pero no imposible. El recordado billarista argentino Juan Navarra, dos veces campeón mundial, tenía una frase que usaba en televisión para anticipar el recorrido de una carambola complicada justo antes de intentarla: “Si sale...” "

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Os cossacos do Dão


Malta, o BE é mesmo de esquerda! Ele até vai votar contra o Orçamento Rectificativo.

Sim senhor. Podem crer: eles é que são a verdadeira esquerda.

Se os deixarem, eles fazem mesmo a revolução. Se não os deixarem, não fazem. Mas hão-de continuar a mostrar, com todo o rigor, como é que ela se deveria ter feito.

Vê-se bem que continuam fieis ao velho slogan dos estalinistas alemães dos anos 30 do século passado: "Enterrar o nazismo, sob o cadáver da social-democracia."

É tempo de se proclamar :"Força, força camarada Louçã! Nós seremos a muralha vã!!"

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Sombrio Saraiva


Aconteceu qualquer coisa ao Saraiva do Sol. Apercebi-me disso, quando numa das minhas peregrinações televisivas deparei com o inefável Crespo a conversar gravemente com um juiz, sobre umas tantas perguntas que alguém teria feito ao desusado arquitecto Saraiva.

A coisa terá sido grave. Não consegui saber o que foi. Busquei no sítio do Sol , na esperança de compreender. Em vão. Ainda agora, estou para saber quem realmente lhe perguntou o quê.

Em compensação, deparei, no referido sítio, com um texto ferocíssimo do azougado arquitecto contra Sócrates. Não me espantou a veemência dos ataques, já que é natural e nada tem de espantosa, vinda de quem vem.

Mas espantou-me o seu contorcionismo intelectual, que mistura factos com insinuações, hipóteses com evidências, numa caldeirada que, verdadeiramente, não é mais do que um arremesso de lama a um político de quem o arquitecto não gosta. É um dos textos intelectualmente mais desonestos que alguma vez me foi dado ler.

Por exemplo, sublinha a implicação de Sócrates no processo “ Face Oculta”, quando a única coisa que se sabe, sobre uma qualquer conexão do Primeiro-Ministro com o processo, é o facto de ele ter sido escutado por tabela, através de um dos arguidos, tendo sido público que nas escutas não transpirara nada que tivesse, fosse o que fosse, a ver com esse processo. Portanto, a implicação de Sócrates no “Face Oculta” é uma simples invenção insultuosa. Depois, meteu Sócrates, que não foi sequer constituído arguido em qualquer processo, no mesmo saco de Isaltino, que já foi condenado num julgamento, em primeira instância.

Por fim, sugere que o conteúdo das escutas ilegais, difundido ilegal e ilegitimamente, devia levar à demissão do primeiro-ministro, pelo modo como ele se refere não sei bem a quê nem a quem.

Fazendo-se passar por tonto, o arquitecto espanta-se pelo facto de que tantos notáveis socialistas, que ele generosamente carimba de honestos, defendam Sócrates, sugerindo ainda que são essas opiniões favoráveis a única coisa que. verdadeiramente, o segura como chefe de governo.

Ou seja, o imaginativo arquitecto começa por inventar uma desqualificação insultuosa para Sócrates, para, em seguida, retirar das suas próprias invenções insultuosas a drástica consequência política de uma possível demissão do governo.

Esquerda


Se a esquerda se deixar diluir na sombra das revoluções perdidas como simples saudade, arrisca-se a rapidamente se transformar num museu de si própria.

Mas será realista continuar a conjugar futuro com esperança num país, num continente, num mundo, onde a esquerda se tenha esvaído nos seus próprios atalhos?

Se a história fosse um destino que nos esperasse, talvez pudéssemos repousar na generosidade das nossas utopias. Mas é, talvez, antes um leque de caminhos que nos desafia a descobrir qual deles nos levará mais facilmente para um horizonte verdadeiramente nosso. Um leque, ele próprio, em mutação, já que dentro dele se vai mudando a sede da vocação futurante, bem como o lugar da vertigem de abismo de alguns dos caminhos que o compõem.

Mas se é certo que a esquerda depende do oxigénio da liberdade, ela perde-se irremediavelmente se consente no adiamento da igualdade, ou se permite que a aprisionem na complacência perante o que é injusto no mundo de hoje. Por isso, a esquerda não pode estar em paz com as guerras, nem com a fome, nem com a miséria, nem com a insalubridade das condições sociais de vida, nem com a degradação do ambiente.

As velhas narrativas da esperança liam-se confiantemente como futuro. Mas o futuro que julgaram poder colher foi-lhes fugindo persistentemente. E, no entanto, talvez não estivessem enganadas. Apenas terão julgado que entre o inebriamento do efémero e o ar fresco de uma respiração livre, que entre a vertigem do auto-aniquilamento e a planície dos sonhos cumpridos, as sociedades fariam a escolha óbvia. Não fizeram. E não sei se, verdadeiramente, as inesperadas vias percorridas no último século foram uma escolha ou uma desastrosa inércia. Mas a sofreguidão dos caminhos próprios do capitalismo trouxe-nos para um mundo em que persistem as razões de rejeição dos que sonharam superá-lo, agora tragicamente acentuadas. Por isso, onde antes a esperança se perfilava como um desafio ao que era plúmbeo na circunstância de então, há hoje um perfume crescente de tragédia.

A esquerda não é já apenas protagonista das narrativas da esperança, já que se tornou na única narrativa realista da sobrevivência da humanidade. Num mundo em que as mais poderosas estruturas e as mais insidiosas mistificações segregam, dia após dia, a ocultação da realidade, guiando-nos para novos abismos com a alegação de que nos levam pelo único caminho possível, é difícil romper essas brumas, para trazer para a luz a imagem completa e real dos desafios que se colocam perante o mundo actual.

Se a esquerda consentir na dissimulação evanescente do capitalismo, deixando-o refugiar-se no conforto de uma imaginária inexistência, limitando-se a seguir agendas conjunturais , dilacerando-se numa surda guerra civil entre as suas várias componentes, não estará apenas a suicidar-se estupidamente, como se fosse burra, estará a dar um forte contributo para a inviabilidade das sociedades humanas, ou a contribuir para que no futuro sejam mais prováveis pesadelos do que paraísos.

Por isso, é indispensável que a esquerda, toda a esquerda, aprenda a rever-se na sua própria pluralidade, para que possa saber distinguir a rivalidade interna como emulação fraterna, da conflitualidade com a direita como contexto da decisão estratégica. Por isso é indispensável que a esquerda aprenda a gerir o capitalismo sem renunciar a pilotar o seu abandono, que aprenda a ser paciente e flexível no modo de caminhar, mas intransigente e firme quanto aos objectivos últimos, na partilha de um horizonte socialista.

Nas sociedades actuais, predominantemente capitalistas, a esquerda é ainda estruturalmente subalterna, mesmo que estejam ao leme dos respectivos países governos nacionais de forças políticas de esquerda. E mesmo que a esquerda também lute entre si, não deixa de continuar a ser o combate essencial, o confronto com a direita.

Por isso, nem se pode confundir a acção política transformadora com uma simples engenharia economicista que procure esculpir a sociedade como se ela não estivesse viva e em movimento, nem reduzi-la a uma agenda generosa de gestão corrente do capitalismo com umas pitadas de social, pautada pelas balizas inventadas pelos ideólogos da conservação do capitalismo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Mau sinal !

Acabo de receber uma nota informativa, indicando quem representará a direcção do PS numa série de plenários distritais realizados em vários pontos do país.

Mau sinal. Dois ou três nomes insdiscutíveis. O resto,incompreensível , para não dizer politicamente imprudente.


Se o próprio Real Madrid recheado de verdadeiros galácticos, em vez de jogar com eles nos jogos importantes, alinhar apenas com dois ou três deles , acompanhados por amigos do treinador, arrisca-se a descer de divisão.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Fora com o FMI!


Parece que umas aves do alegado FMI nos vieram dizer algumas coisas sobre Portugal, atrevendo-se mesmo ao descaramento de alguns conselhos.

Essa aves que prepararam, burramente, durante anos, o drama que atravessamos permitem-se pois voltar à carga sem vergonha. Espantoso ! Mas mais espantoso é que ainda haja quem as ouça.


E assistimos ao ridículo de haver um conjunto de pilecas, pertencentes a um organismo que já devia ter sido extinto (ou, pelo menos, desinfestado do pulguedo neoliberal), receitarem os mesmos remédios que quase nos iam matando.

Por isso, para bem de todos nós, antes que nos impinjam algo de ainda mais tóxico, enxote-se o FMI, enxotem-se as aves do FMI, enxotem-se os bonzos do FMI.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Sobre as Honduras

O correspondente em Paris do diário argentino Página 12, Eduardo Febbro, publicou hoje nesse jornal um sugestivo texto, sobre o que está a passar-se nas Honduras, tendo como pano de fundo a política externa norte-americana. Eis o texto:



La forma de blanquear el regreso del golpismo

"Nadie puede dudar de que Estados Unidos sea un irreductible promotor de la democracia en el mundo. En los últimos ocho años la impuso con bombas y una ocupación en Irak, la forzó con más bombas y otra invasión en Afganistán y acaba de recomponerla con camisa de fuerza y a su medida en Honduras mediante el inédito y payasesco blanqueo de un golpe de Estado que dejó al país con tres presidentes simultáneos: el depuesto Manuel Zelaya, el de facto Roberto Micheletti y el electo Porfirio Lobo. El imperio ha cambiado de dirigentes, pero sigue guardando en su corazón la iconografía de los santos redentores de la democracia y el bien, cuyos principios devastaron las democracias latinoamericanas a lo largo del siglo XX: no importa quién venga después, ni cuántas personas mueran, ni cuánto se degrade la institucionalidad o la dignidad, el derecho y la constitución.
Barack Obama le ha ofrecido a América latina el peor perfil de las administraciones norteamericanas: el apoyo al golpismo, el respaldo a la violación de todos los derechos. “No vine a discutir del pasado, vine a pensar en el futuro”, dijo Obama en la Cumbre de las Américas de abril en Trinidad y Tobago. Hoy podemos constatar que esa alianza es un pacto con el futuro apoyado en la reiteración obsesiva del pasado. Washington no ha cambiado. Durante los juicios a los represores latinoamericanos, en las entrevistas concedidas por los ex generales, a la pregunta “¿por qué tanto horror?” la respuesta fue invariable: “Porque eran comunistas, porque eran terroristas”. En los argumentos de los halcones de Bush la misma frase se repitió a lo largo de años. ¿Cómo una democracia como la norteamericana podía secuestrar, trasladar en secreto, encarcelar y torturar a miles de individuos en el mundo? “Porque eran terroristas islámicos.” La guerra contra el terror siguió los mismos pasos que la guerra contra el socialismo, el comunismo y los movimientos insurgentes en América latina.
El reconocimiento del proceso electoral hondureño responde a la misma abyección. La amenaza de un brazo de contornos chavistas en América Central justificó la invención de un golpe de Estado de nuevo tipo y su posterior legitimización: el golpe horizontal. Violencia presente pero gradual, asfixia paulatina de los actores políticos, desgaste de las discusiones, tenaza en cámara lenta sobre los pulmones de la sociedad. La debilidad del sistema multilateral latinoamericano contrasta con las valientes posiciones tomadas en los años ‘80 por los países que, en plena confrontación entre Estados Unidos y la Unión Soviética, osaron levantarse para frenar un conflicto armado generalizado en América Central. En enero de 1983, cuando los países de América Central estaban estrangulados por sus conflictos armados internos y se encaminaban al abismo de la guerra externa, los cancilleres de Colombia, México, Panamá y Venezuela se reunieron en la isla de Contadora con la meta de proponer una iniciativa de paz al conflicto centroamericano. Así nació el grupo de Contadora. Dos años más tarde, con la legitimidad de las urnas, Argentina, Uruguay, Brasil y Perú se unieron a Contadora para conformar el Grupo de Apoyo. Esos ocho países no sólo consiguieron evitar una guerra sino que pusieron en marcha uno de los procesos de pacificación regional más ambiciosos y complejos que hay en la historia, mientras Washington y Moscú dirimían sus diferendos y sus conquistas con la sangre derramada por inocentes de la periferia, entre ellas América Central. El actual presidente de Costa Rica, Oscar Arias, es un heredero del grupo de Contadora. Los acuerdos de Esquipulas I y Esquipulas II –por los cuales Arias recibió el Nobel de la Paz en 1987– no habrían nunca existido sin la fuerza concentrada de Contadora. Veinticinco años después no se puede sino constatar la ausencia de un multilateralismo eficaz y, más triste aún, la paradoja hiriente de ver a quienes fueron actores destacados de Contadora, a imagen y semejanza de Perú, Colombia, Panamá, Costa Rica y El Salvador, convertidos en obedientes reconocedores de las elecciones hondureñas.
Alan García era presidente de Perú cuando, con acentos de una combatividad juvenil, su país se sumó al grupo de Contadora. Oscar Arias fue el portador del montaje que salió del corazón de Contadora para pacificar América Central. El actual presidente de El Salvador, Mauricio Funes, pertenece al Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional, el FMLN, el partido que, en los años de Contadora, era una guerrilla proscrita. Washington, estos tres actores y Colombia fueron ahora los primeros en darles un sello de legitimidad a las urnas hondureñas. ¡Qué oprobio para los demócratas y los descendientes de las decenas y decenas de miles de víctimas que dejaron los conflictos armados en Centroamérica! Un pozo negro nos acecha, y no sólo porque Washington no ha cambiado. Los adversarios de Wa-shington también son prisioneros de lógicas del pasado. Cuando Hugo Chávez trata de “gladiador del antiimperialismo” al presidente iraní Mahmud Ahmadinejad, o cuando elogia en público a un dictador con las manos y la sombra llenas de sangre como el presidente de Zimbabwe, Robert Mugabe, incurre en la misma tentación. Ahmadinejad fue reelecto con un fraude tan masivo como la improbable tasa de participación de las elecciones hondureñas. Robert Mugabe, el héroe de la independencia de Zimbabwe, transformó su mandato liberador en una vertiginosa autocracia que dejó decenas de miles de muertos. Las mismas conductas prevalecen en uno y otro lado de la frontera. No todos los enemigos del imperio son amigos nuestros, ni todos los adversarios de mis enemigos son aliados en el juego tramposo de una democracia renovada al compás de botas y fusiles."

O amargo sabor do abismo



Uma parte da esquerda portuguesa combate a outra parte, ao lado da direita, alegando que essa parte da esquerda, que ela assim combate, não é verdadeiramente esquerda.

É estranho, no entanto, que a partir dessa ideia, aceite combater essa esquerda, assim acusada de ser direita, aliando-se à direita que se assume sem subterfúgios como tal; e que combate essa esquerda acusada de ser direita, não em virtude dessa acusação, mas precisamente por não a levar a sério. E das duas uma, ou é a direita que está estrategicamente enganada, já que está a combater um governo, alegadamente de direita, por julgar erradamente que ele é de esquerda, quando afinal não o é; ou é a esquerda anti-governamental que está estrategicamente enganada, já que está a combater um governo por julgar que ele é de direita, quando afinal não o é.

Pode haver argumentos que apontem para a instrumentalização da oposição de esquerda pela de direita e vice-versa, congeminados com maior ou menos argúcia por arautos de uns e de outros. Mas a oposição de esquerda tem aqui uma desvantagem objectiva importante: se o governo da "esquerda-que-está-no-governo" cair, nunca poderá ser substituído por um governo da actual oposição de esquerda. Pelo contrário, será sempre substituído por um governo da actual oposição de direita. Por isso, sejam quais forem as intenções subjectivas de uns e de outros, é objectivamente impossível que a oposição de esquerda esteja a instrumentalizar a oposição de direita, mas é objectivamente possível que a oposição de direita esteja a instrumentalizar a oposição de esquerda.

E isto só é possível porque ambas as esquerdas parecem ter grandes dificuldades em pensarem estrategicamente a política, como se os seus dirigentes mais não soubessem do que perder-se nos labirintos imediatistas da táctica.

No entanto, todos se deviam lembrar que a espinha dorsal da esquerda são os seus partidos e os sindicatos, sendo certo que estes últimos, embora importantes, ficam politicamente desamparados se os partidos de esquerda desaparecerem ou se tornarem politicamente impotentes, no plano institucional. Pelo contrário, os partidos da direita são apenas organizações menores do complexo organizacional da direita. Se desaparecessem, a direita perderia muito menos do que a esquerda em situação idêntica. Por isso, quando o populismo fascizante vocifera com ódio contra todos os partidos não está a agredir simultaneamente a esquerda e a direita: está sim a arranhar ao de leve a direita e a procurar ferir profundamente toda a esquerda. E se para cúmulo a esquerda se digladiar entre si, seja qual for a justa distribuição das culpas pelos vários partidos, a direita fica sempre a ganhar.

Por tudo isso, acho estranho que as organizações de esquerda continuem a repetir-se a si próprias sem imaginação, a enfrentar-se com ferocidade, que uma parte da esquerda se alie à direita para combater um governo da outra parte da esquerda, como se o mundo não fosse mais do que a pequena feira do complexo mediático-partidário vigente, onde apenas se jogam pequenas vitórias e ligeiras derrotas num bocejo de quase irrelevância. E estranho-o tanto mais, quanto é visível que, lentamente, uma nova direita, vinda das organizações e entidades que reflectem directamente os poderes de facto, exterior aos partidos políticos, vai usando os vastos instrumentos que tem ao dispor, para se congregar, para se afirmar, para se preparar. Para se preparar para num possível momento de mais dramática crise, que julgue propício para uma aventura, poder estar à altura de tentar com êxito o desencadear de uma profunda regressão histórica, apostada em anular por completo o 25 de Abril.

Dir-se-á: se assim fosse, isso apenas significaria que a direita era afinal mais capaz do que a esquerda, sendo por isso bom para o país que ela acrescentasse, ao poder que já tem, o poder político-institucional. Mas as coisas são menos simples: em Portugal, uma democracia, com esquerda e direita vivas, poderá continuar a manter as portas abertas à esperança; em especial á esperança dos que mais sofrem com esta sociedade injusta, e inigualitária que é a sociedade capitalista. Mas uma direita que, junte ao ser poder de facto um poder político sem democracia, apenas fará sentir como é inviável ou inútil dentro dela qualquer luta política pacífica e democrática dos que são explorados e oprimidos pelo tipo de sociedade actual. E destapada a caixa do desepero dos explorados e oprimidos, ficariam abertas as portas a novos tempos de violência e desespero, de regressão social, de auto-exclusão do mundo democrático. Seria bom que os nossos loquazes amanuenses da política, os nossos desvelados contabilistas sociais, mas principalmente os cidadãos livres, não esquecessem que a democracia pode ser descrita como um objecto precioso, mas sempre frágil, que num momento se pode destruir, mas que depois de destruído leva necessariamente, muito, muito tempo a reconstruir.

O pior pode não vir a acontecer, mas não é seguro que assim seja, se as actuais esquerdas portuguesas continuarem aprisionadas no imediato, fechadas no pequeno horizonte dos sectarismos mútuos, recusando assumirem-se como partes de um conjunto que pelo facto de ser heterogéneo não deixa de as abranger a todas. Mas façam as esquerdas o que fizerem, estejam certas que a direita já está em movimento, preparando o seu desforço, assuma ele, para já, o rosto de um economicismo perene de rigor, de um justicialismo piedosamente virtuoso ou de um angelismo moral tão comovente quanto hipócrita.

As palavras e os campos


Um descendente do Sr. D. Miguel, fautor da mais prolongada e sangrenta guerra civil por que Portugal já passou, na qual foi derrotado e na sequência da qual lhe foram formalmente retirados todos os direitos de suceder na coroa portuguesa, veio à superfície, na alegada qualidade de sucessor de tão sombria personagem.

Fruindo as liberdades públicas que, e muito bem, a República lhe concede, esse descendente, o Sr. Duarte Pio, arrasou a conjuntura republicana e ergueu com o seu fraco verbo uma estátua imaginária a uma monarquia, que como projecção da alegada aura, nunca existiu.

Teria preferido ter tido notícia de que esse Senhor erguera, alguma vez, a sua voz, quando foi preciso sob o consulado do ”monárquico “ Salazar, antes de 1974, resistir a um poder ditatorial e obscurantista. Não foi isso que aconteceu. Durante todo esse tempo, ele e o seu progenitor, ronronaram mansamente no aconchego da complacência salazarenta.

Diz o referido senhor que o rei, que ele imagina poder ser, estaria, por natureza, acima de todas as tendências políticas. Não sei se é ingenuidade se desfaçatez que, quem ostenta publica e repetidamente uma posição ideológica que o situa dentro da direita mais reaccionária, pretenda exprimir desse modo a sua “pairância” por sobre as ideologias políticas de todos os portugueses. Sei que objectivamente estamos perante uma grosseira mistificação. Seria como se a uma tendência política, fracamente presente nas preferencias dos portugueses, fosse dado o prémio anti-democrático de lhe ser concedida uma vitória repetida, num rosário de eleições que a dispensariam de enfrentar.

Mas, na página de internet do periódico que o acolheu, há pelo menos uma boa notícia a seu respeito: ele é engenheiro agrónomo. Talvez, por erro meu, isto não seja uma notícia a não ser para mim próprio. Mas a verdade é que eu fazia fé num amigo meu que foi colega do Sr. Duarte Pio na Faculdade e que sempre me garantiu que o referido senhor apenas conseguira fazer a custo uma cadeira, concedida aliás por um professor que era monárquico dos quatro costados.

Vejo agora que apenas o equívoco desse meu amigo, ou o seu hipotético sectarismo republicano, conduziram a essa minha desinformação. A não ser que esse meu amigo estivesse certo, tendo afinal nós pela a frente, um exemplo feliz do programa das novas oportunidades, à sombra do qual o descendente do Sr. D. Miguel realizou o sonho da sua vida, ser um verdadeiro engenheiro agrónomo. Ou ainda, hipótese improvável, termos pela frente uma manifestação ilustrativa da grande aceleração e simplificação dos percursos universitários tão brilhantemente conseguida pelo manhoso Processo de Bolonha.

Seja como for, ou apenas subjectivamente ou mesmo objectivamente, eis uma boa notícia. É que , seguramente, o Sr. Duarte Pio poderá ser muito mais útil ao nosso país como engenheiro agrónomo do que como ocioso pretendente a um trono que deixou de existir, quando o seu antepassado D. Miguel perdeu a guerra civil contra os liberais.

Bombeiros incendiários

Talvez os leões pretendam rugir apenas contra o governo, mas os mabecos ladram já contra o próprio regime, enquanto a múmia de si própria aproveita para miar contra a República.

É que por detrás do hálito quente dos salvadores, paira sempre a sombra negra dos pirómanos.