É com se, de repente, umas tantas centenas de cérebros se tivessem acendido, por força de uma providência que a todos nos transcende, e tivessem assumido, em conjunto, a generosa tarefa de iluminar o espírito dos actores políticos mais ostensivos e, principalmente, dos timoneiros que conduzem o aparelho de Estado.
É certo que esse grande projecto de investigação acerca do Estado continua ainda a ser um grande salto nunca dado, embora muitos continuem a tomar balanço para ele. Mesmo assim, todavia, assombra já os corredores dos templos da sabedoria, contamina a tranquilidade dos areópagos políticos e espreita nas páginas dos panfletários de serviço, embora assemelhando-se mais a uma velada ameaça não cumprida do que a uma boa intenção frustrada.
Na verdade, nos meandros dessa sombra, acabamos sempre por encontrar as pegadas de uma vulgata neoliberal, que só não o é por completo, graças à subtileza com que se insinua. De facto, no fundo no fundo, se virmos bem, ela acaba por olhar para o Estado como para o mafarrico, porfiando na empresa de o ir enfraquecendo, para mais facilmente o poder transformar numa espécie de ronronante cão de luxo dos poderosos, encarregado de miar carinhosamente contra os donos, mas disposto a morder sem piedade em quem os incomode.
É certo que, no seio dessa nebulosa de potenciais estudiosos, que ambicionam construir o catálogo sólido e definitivo das funções do Estado, alguns cultivam a esperança de que será a estabilização de um catálogo consensual das funções do Estado, o dique capaz de conter a enxurrada das mistificações neoliberais, acerca dessas funções. Não questiono as suas intenções, mas desconfio da sua eficácia.
Na verdade, se estes últimos me pedissem um atestado de honestidade intelectual e de boas intenções, descontada a ilegitimidade absoluta de, seja quem for, atestar coisas dessas, passá-lo-ia sem hesitar. Mas, se me pedissem para me juntar a eles na exaltação da utilidade da pesquisa das funções em causa, não os poderia acompanhar.
De facto, o Estado ou é um animal livre ou não serve para nada. É certo que os cidadãos revelariam a mais funda imprudência se não garantissem perante ele a sua esfera de liberdade, individual e colectiva. Mas uma coisa é a nossa indispensável afirmação de cidadãos livres perante um Estado livre, mas confinado pelos limites da democracia, outra coisa é tecer habilmente um Estado anémico engessado por interesses privados.
2. Ora, há dois passos que devem ser dados para que a discussão das funções do Estado não se reduza a um artefacto ideológico, destinado a porfiar na simples reprodução do capitalismo,ou seja, a uma verdadeira partitura neoliberal, mesmo quando na sua execução participem músicos que o não são.
O primeiro implica uma tomada de consciência de que o debate acerca das funções do Estado está longe de poder ser um percurso teórico desfasado da realidade social, que se vá traduzindo, pouco a pouco, num leque de conclusões idealmente objectivas, vocacionadas para pairarem sobre as paixões humanas e destinadas a promoverem um amplo consenso. Consenso cuja cientificidade relativa acabaria por levar à correcção dos erros dos maus governos e de incentivar o fulgor dos bons.
Por isso, a grande questão para os socialistas reformistas, que verdadeiramente sejam ambas as coisas, é a de saber quais são as funções do Estado que devem ser incrementadas para potenciarem a eficácia da sua estratégia e quais são as que podem ser partilhadas com as entidades que dividam com eles o essencial do horizonte que temos pela frente. A questão não deve ser, por isso, a de saber quais devem ser as funções do Estado, em abstracto.
O segundo passo tem conexão com o anterior, já que nenhum sujeito político, colectivamente organizado que se assuma como socialista, pode renunciar a ter um papel decisivo na pilotagem da sociedade, em que se integre, para fora do capitalismo, ou seja, na acção dirigida a abreviar e a fazer com que decorra da melhor maneira possível a emergência de um pós-capitalismo. Portanto, a estratégia dos socialistas há-de ter como aspecto nuclear o papel que desempenhem no trajecto que as sociedades que somos percorrem rumo a um pós-capitalismo historicamente provável e que, para os socialistas, deverá ter como referência dominante um horizonte socialista.
Por isso, se os socialistas reformistas não podem desinteressar-se do modo como o capitalismo deve ser gerido, para que não ocorram disfunções no seu quotidiano que se traduzam num acréscimo brusco e dramático do sofrimento de muitos, ainda menos se podem esquecer do imperativo de contribuírem para que se chegue ao pós-capitalismo com o máximo de rapidez possível e com um mínimo de perturbações na vida dos cidadãos. Aliás, verdadeiramente, o êxito desse trajecto estará na rapidez com que se combine, no dia a dia, a diminuição das desigualdades sociais, a melhoria da qualidade da democracia, o refinamento e a universalização da humanidade, numa atmosfera que permita respeitar, sem peias, a liberdade, a solidariedade e a criatividade. Ou seja, é construindo uma sociedade justa que se chega a um pós-capitalismo no qual os socialistas se possam reconhecer.
Deste modo, para os socialistas esta participação na pilotagem de um processo de transição assumido é, verdadeiramente, o aspecto determinante das funções do Estado, o factor de congregação de todas as outras, o eixo estruturante da lógica de todas elas. Também por isto, reflectir em abstracto acerca de uma hipotética determinação de umas funções do Estado que pudessem ser partilhadas pelos que defendem o capitalismo e pelos que se querem ver livres dele, será sempre um caminho ilusório.
Por isso, há um objecto que tem plena actualidade como vector importante das preocupações teóricas dos socialista: a procura das funções que devem ser assumidas pelo Estado para que ele possa desempenhar, na globalidade e em simultâneo, o seu papel de guia da gestão corrente e de piloto da desejada metamorfose das sociedades capitalistas em que actualmente vivemos, rumo a um pós-capitalismo em que nos possamos reconhecer.
Pelo contrário, é uma empresa ilusória de significado duvidoso procurar um perfil abstracto e consensual das funções do Estado que possa ser assumido, como se fosse um contexto objectivo, por todas as correntes político-ideológicas.