A vida política, do ponto de vista dos seus protagonistas individuais, não é apenas um jogo algo semelhante ao xadrez, com o seu recurso aos peões para as jogadas mais sujas, com a bênção de alguns bispos, com ousados saltos de cavalo, com o refúgio prudente em algumas torres, com o assédio a algumas rainhas e mesmo, nos ápices decisivos, com tentativas de pôr os reis em cheque; mas não deixa, em parte, de o ser.
Por isso, o episódio do pré-convite feito a Joana Amaral Dias por Paulo Campos, tanto pode ser encarado como uma anedota política com ecos dramáticos, como pode ser lido como uma combinação de manobras que muito se aproximam de movimentos subtis num imaginário tabuleiro de frustrações e ambições. Levemos a sério as narrativas dos interessados e esqueçamos uma possível camada ainda mais funda do episódio que, não deixando de ter interesse, por enquanto, pode ficar adormecida.
Os factos: um dos muitos secretários de estado do actual governo, vendo naufragar uma ambição pacientemente sustentada, ao longo de meses, por uma rede de iniciativas viárias e de subtis sugestões, resolveu tirar um vistoso coelho ( ou, neste caso, com algum humor e o devido respeito, uma coelha) da cartola, talvez com a secreta esperança de se mostrar imprescindível, quiçá, recuperando a hipótese de um primeiro lugar na lista de Coimbra que vira escapar-se-lhe por ente os dedos quando o julgava seguro.
E se bem o pensou, melhor o fez. Foi-se ao telefone e zás: sondou Joana Amaral Dias para ser segunda na lista do PS, por Coimbra. Assarapantada pelo inesperado da sondagem a pré-deputada converteu a inesperada sondagem num convite e, podendo ter corrido à pedrada verbal o insólito sondador, educadamente disse que ia pensar.
O nosso contingente mediático daria bom dinheiro por tais pensamentos, mas adiante. Ouvidos alguns oráculos, consultadas as estrelas, metida a mão na consciência, a sondada declinou o convite e comunicou ao guia espiritual do BE a sua firme e inabalável recusa a tão insólita tentação. Justamente indignado pela demoníaca mensagem do PS o guia supremo explodiu em público, demolindo a subtileza da sondagem e blindando para sempre a firmeza da recusa.
Irremediavelmente longe do primeiro lugar da lista, sem a energia e o peso políticos necessários para lhe abrirem a porta do segundo lugar, tendo lhe escapado a coelha saída da cartola, o jovem secretário de estado achou-se, apesar de tudo, demasiado grande para um terceiro lugar. Recusou ser terceiro. Se foi longe de mais nesta recusa, só o tempo o dirá. Mas quando se aprestava a digerir a nova conjuntura, ocorreu a já referida tempestade mediática tecida pelos enérgicos relâmpagos do guia do BE.
Aí o jovem governante entaramelou-se. Aludiu a contactos pessoais, que nalguns jornais chegaram a íntimos, confessou que tudo não passara de telefonemas entre amigos, para depois modestamente se ficar pelo reconhecimento de que, em comum entre convidante e convidada, havia a apreciável distância de apenas disporem de círculos de amigos comuns. E, olímpico, chegou a imaginar publicamente que lhe assistia a legitimidade para, tendo renunciado majestosamente a ir na lista, conceder a graça de uma substituta que assim generosamente dispensava a uma Federação de Coimbra, deslumbrada e agradecida.
É certo que no fragor da agitação mediática deixara cair a sua falta de mandato para convidar JAD, como banalidade que podia esvair-se nas fraquezas da memória, sem espanto nem estranheza.
De facto, se tudo for como pareceu fazer crer a direcção do PS, o que se registou foi um desvario de um militante do PS que pegou num telefone e convidou uma senhora para ser deputada, candidata a deputada. A senhora foi pensar, sem ter pensado que o convidante era apenas um delirante sem mandato. Pensou, pensou, pensou. E, ao fim de muito pensar e depois de recorrer aos mais reputados oráculos da nossa política, descobriu que a aparente sondagem convidante era muito mais do isso, era um verdadeiro assédio político. Contidamente indignada, avisou o Grande Pregador, embora não tivesse deixado de o fazer sentir subliminarmente que enquanto a sua própria confraria a excluíra das primeiras filas, outras a disputavam sofregamente. Ferido pela grandeza do pecado e temeroso pelo agravar da concorrência, o Grande Pregador trovejou maldições sobre o PS. Excomungou inocentes e pecadores, como um arcanjo vingador desregulado.
É certo que do seio da sua virtuosa organização partira um convite simétrico dirigido às hostes do PS, mas o Grande Pregador nunca perde de vista o essencial: só aos ungidos pela virtude é consentido o pecado.
Ou seja, ao surrealismo político da sondagem, que nem era convite nem estava autorizada, somou-se o angelismo comovente de um repúdio diferido do que tendo começado por ser ouvido como um promissor convite se converteu num reprovável assédio.