Entretanto, julgo fazer sentido difundir desde já uma parte da respectiva “Introdução”. Tanto mais que, por razões que me são estranhas, a versão do meu texto que foi publicada não é a mais recente, a que eu havia enviado para “Finisterra” em Novembro passado, mas sim uma versão anterior que eu enviara para a revista em Fevereiro de 2008. O facto de um texto deste tipo não ter ficado desactualizado com o eclodir da crise actual, é algo que valorizei positivamente.
Isso não impede que a versão publicada na FINISTERRA esteja menos ancorada na realidade actual e consequentemente, em certos aspectos, tenha um tom crítico mais atenuado ou menos explícito do que aquela que aqui divulgo hoje e que, por razões a que sou alheio, foi preterida em favor da versão anterior.
Estamos em plena campanha para as eleições do Parlamento Europeu. Previsões que vieram a público, no plano europeu, apontam para uma relativa estabilidade dos resultados, mantendo-se o Partido Popular Europeu como primeira força e o Partido Socialistas Europeu como segunda. Em termos europeus isso será um desaire, embora esperado, para o PSE. Ficar preso aos maus resultados da eleição anterior é um indício de estagnação e de secundarização preocupante.
No entanto, para além das sequelas do problema italiano que pode deixar o PSE sem um ramo neste país, pela diluição dos Democratas de Esquerda (DS - ex-PCI) no novo Partido Democrático, há o risco de em países como a França e a Alemanha os resultados serem para o PSE piores que o estimado.
O tema abordado pelo artigo em causa tem por isso toda a actualidade e como não é um eco de posições oficiais ou dominantes, pode contribuir para um indispensável debate. Eis a versão da "Introdução" que devia ter sido publicada:
“A Europa foi acordada da sua letargia. É agora impossível prosseguir numa via que encare o futuro como simples espelho do presente. De facto, aceitar permanecer no círculo vicioso, onde actualmente caiu, é um caminho rodeado de abismos.
É agora mais nítido que a presença e o papel da Europa no mundo não serão nunca o resultado feliz de uma inércia sem sobressaltos. Pelo contrário, ou serão o desenlace almejado de uma luta árdua por novos horizontes, ou ficar-se-ão por um simples Outono com a cor da saudade.
De facto, tudo indica que a Europa não sobreviverá como participante indispensável de uma orquestra mundial, se não abrir a si própria novos horizontes. Horizontes, cuja novidade não pode deixar de ser o mais amplo cumprimento dos ideais, há muito prometidos e sempre adiados, de uma liberdade radicada na igualdade, de uma solidariedade verdadeiramente fraterna e criativa.
E é, precisamente, por isso que este texto podia também ser intitulado: a hora dos socialistas. Na verdade, se já antes o esquecimento de si próprios, de que pareciam padecer os socialistas europeus, vinha dando à União Europeia uma tonalidade outonal, manter esse esquecimento depois da eclosão da recente crise, pode fazê-los sair da história por renúncia.
De facto, o paradigma capitalista dominante, na sua versão neoliberal, foi agora reduzido a uma embaraçada sombra de si próprio. Tornou-se num cadáver ambulante, mendigando morte condigna. Mas enquanto os povos o não enterrarem, continuará a assombrar o mundo como fantasma perdido. E é esta agonia que tem que ser pilotada, para que não arraste consigo toda a sociedade, para que não venha a fazer morrer com o sistema o próprio futuro dos cidadãos europeus.
Não tenhamos, contudo, a ilusão de que a História, qual força irresistível desde sempre programada, nos vai oferecer um futuro melhor, dispensando-nos das lutas e do risco. Não está, de facto, escrito que o mundo resista à eternização das predações, que são a própria natureza do capitalismo; tal como não está escrito que a Europa se integre no futuro da humanidade como esperança em movimento e não como museu de um tempo perdido. Não tenhamos ilusões. Para chegarmos aos portos almejados, há ainda muita viagem pela frente, muitos combates, muito esforço reflexivo, muito sofrimento, muita incerteza.
No entanto, para compreendermos bem a época que atravessamos temos que ter bem presente que o pós-capitalismo é uma inevitabilidade inscrita no horizonte, uma inevitabilidade objectiva agora mais perceptível, mais evidente do que há uns meses atrás. Uma inevitabilidade que pode desembocar nos dramáticos escombros de uma regressão civilizacional, mas que também podemos conseguir que se traduza na conjugação das sinergias de todas as utopias, de todas as esperanças colectivas, de todos os ideais emancipatórios e solidários.
A dúvida sobre se caminharemos para um pesadelo social, político e ecológico, ou se abriremos as portas a um novo tempo de emancipação e solidariedade, não se pode desfazer pela descoberta do que esteja escrito num qualquer livro do destino. Realizar a esperança e evitar o pesadelo depende daquilo que os homens concretos deste novo século forem capazes de fazer, depende do rumo que conseguirem dar à marcha da Humanidade.
São muitos os caminhos que nos podem fazer aproximar do que queremos, todos eles com escolhos, atalhos e armadilhas, num permanente desafio à nossa inteligência, à nossa coragem, à nossa determinação e à nossa generosidade. Cabe aos socialistas não desistirem de um pós-capitalismo que reflicta os sonhos milenares de emancipação e liberdade de que o socialismo aspira ser a realização e o episódio supremo. Há, por isso, todo um exigente trajecto reformista a percorrer. Mas se os partidos da Internacional Socialista na Europa não forem capazes de assumir o protagonismo hegemónico desse processo, podem torná-lo irrealizável, o que poderá fazer com que se esfume a sua própria razão de ser.
Haverá outras áreas políticas da esquerda que na Europa se lhe possam substituir, apossando-se do testemunho simbólico dessa hegemonia? Pelo que se tem visto nos últimos tempos, mesmo que o conseguissem, o que não é certo, é objectivamente impossível que isso acontecesse a curto prazo.
Ora, o tempo é aqui uma condicionante central. Esse hiato, se ocorresse, significaria uma ausência da esquerda num período decisivo, para a escolha dos caminhos a percorrer pela União Europeia. E essa ausência de outros protagonistas liderantes da esquerda, no plano institucional, que substituíssem Partido Socialista Europeu, potenciaria muito o risco de se ver a Europa, entregue sem partilha à liderança do Partido Popular Europeu. Uma liderança que, seguramente, multiplicaria crispações, podendo fazer com que a Europa fosse murchando, até se transformar numa relíquia museológica perdida na História.
Agora, porém, que o fundamentalismo neoliberal está absorvido pela urgência de lamber e esconder as suas próprias feridas, seria ainda mais trágico e absurdo que os partidos da Internacional Socialista, deixassem à direita europeia campo livre, para um golpe de ilusionismo que a absolvesse da culpa pelo desastre para onde nos conduziu. E isso pode acabar por acontecer, se esses partidos continuarem dóceis perante o paradigma neoliberal, incompreensivelmente submissos em face da vulgata economicista ideologicamente dominante.
De facto, o unilateralismo economicista reinante mostrou agora gritantemente que, deixado ao sabor da sua inércia mais pura, conduzirá inevitavelmente o mundo para o abismo. Por isso, permitir que alguns zombies de uma mitologia arcaica continuem a assombrar o mundo com receitas que se viu como podem ser fatais, é um risco insuportável.
A crise aguda que se manifestou fez, por outro lado, com que a renovação do Tratado da União Europeia, que se mantinha na agenda política, tivesse regressado, talvez conjunturalmente, a uma penumbra discreta. Mas, sendo certo que se esbateu como problema de primeira linha, está longe de se ter dissipado. Pelo contrário, ainda que hoje mediaticamente latente, tem amplas potencialidades para um regresso ao centro das atenções, a relativamente curto prazo.
No entanto, não pode, agora mais do que nunca, continuar a ser encarado como problema susceptível de ser resolvido por uma simples cosmética política, feita de habilidades jurídicas e malabarismos conceptuais. É cada vez mais arriscado agir longe das raízes mais fundas desse mal-estar europeu, tão sugestivamente ilustrado pelos resultados dos referendos na França e na Holanda, que por mais que se distanciem no tempo não devem ser esquecidos, enquanto a conjuntura não se tenha qualitativamente alterado. Aliás, o novo fracasso irlandês veio até sublinhá-los.
Por tudo isso, mais do que nunca, é necessário, para se evitarem derivas sociopolíticas mais dramáticas, chegar à raiz desse mal-estar que se tem vindo a instalar nos anos mais recentes e que a crise agora vivida ameaça agravar, potenciando os riscos dessa melancólica estagnação.
De facto, a União Europeia, no essencial, tem vindo a ser construída através de um compromisso entre Estados, o que deu centralidade ao seu protagonismo e induziu respeito pela dignidade de todos eles. É agora necessário valorizar a participação dos cidadãos, reconhecendo-lhes uma dignidade própria e atribuindo-lhes um papel efectivo nesse processo de construção.
Sem menosprezo por outras vias de afirmação desse protagonismo, ele implica, em primeiro lugar, o envolvimento directo e explícito dos partidos políticos congregados nas várias famílias políticas europeias. E esse envolvimento partidário, para ser eficaz, tem que abranger, necessariamente, as duas famílias políticas eleitoralmente predominantes. Envolvimento que, não afastando naturalmente a normal competição política, não pode deixar de implicar um compromisso entre os socialistas, os social – democratas e os trabalhistas do Partido Socialista Europeu, por um lado, e os liberais e os conservadores do Partido Popular Europeu, por outro. Um compromisso que deverá no futuro estender-se a outras famílias políticas europeias e que só será fecundo, se for leal e transparente. Isto é, se resultar de uma conjugação de posições em que cada uma delas reflicta, por completo e sem ambiguidades, a plena identidade histórica do respectivo protagonista. É neste sentido, e pensando no médio prazo, que achamos dever falar num novo compromisso histórico para a Europa.
Para se poder percorrer esse caminho, há contudo um pressuposto incontornável: é preciso reconhecer que até agora, no essencial, a União Europeia tem sido fiel ao paradigma neoliberal, o que significa que o Partido Popular Europeu se tem movido num terreno que é o seu, enquanto o Partido Socialista Europeu tem aceitado ser condicionado, em permanência, por uma ideologia que lhe devia ser estranha. É, por isso, falsa a imagem de uma Europa como fruto de uma convergência tácita, entre duas grandes famílias políticas. Na verdade, apenas uma delas tem conseguido reflectir em pleno a sua identidade no rumo europeu, enquanto a outra se tem confinado a um papel estruturalmente subalterno. No limite, esta última apenas tem impedido que a lógica dominante se exceda numa dinâmica desregrada; mas, como se está a ver, não teve influência suficiente para prevenir a deriva suicidária que nos trouxe às aflições presentes.
Esta é a raiz do equívoco político que inquina a actual fase da vida da União Europeia, pondo-a em perigo como projecto e sendo, ao mesmo tempo, uma das causas de um possível enfraquecimento eleitoral e político dos partidos que integram o Partido Socialista Europeu (PSE).
E isso é assim, porque a deriva neoliberal tem vindo a gerar uma insatisfação crescente nos cidadãos europeus mais penalizados pelo agravamento das desigualdades sociais, tendo-se revelado grosseiramente predatória com a eclosão da actual crise. Se essa insatisfação, em parte ainda latente e difusa, não for debelada, a crise da União Europeia virá a ser real, tanto mais facilmente, quanto se começam a desenhar tentativas de reduzir as dificuldades da actual conjuntura a um episódio fortuito que é preciso fazer esquecer para que tudo fique na mesma.
Mas é ilusório pensar-se que os cidadãos europeus estarão, indefinidamente, dispostos a abdicar dos seus direitos e da sua dignidade, para serem salvaguardados privilégios de grupos sociais minoritários, que mostraram, agora claramente, como é arriscado deixá-los submeter-nos à sua lógica própria, ostensivamente cega e suicida. De facto, essa salvaguarda é uma via cada vez mais estreita, apesar de nos quererem fazer crer o contrário, através da difusão compulsiva da ideia de que é de interesse público o enriquecimento ilimitado dos detentores do capital. Enriquecimento esse que a redução da economia a uma ideologia paroxística do lucro, sob a égide, mais ou menos desregulada, da especulação financeira, tem feito tudo para incentivar.
Ora, os partidos socialistas europeus têm, precisamente, a sua base social de apoio e uma grande parte do seu eleitorado, nos cidadãos mais lesados pelo actual predomínio do paradigma neoliberal na construção europeia e pelas consequências mais agudas da actual crise. No entanto, até agora, não têm sido capazes de escapar a esse paradigma, fazendo aumentar o risco de uma ruptura dramática, e mais ou menos brusca, entre os partidos europeus da Internacional Socialista e o cerne da sua base social
Por isso, embora a União Europeia, tal como existe, esteja profundamente marcada pelas posições do Partido Popular Europeu, o epicentro da sua estagnação actual está no Partido Socialista Europeu, que corre ainda o crescente risco de ver os partidos nacionais que o constituem dramaticamente enfraquecidos. De facto, há que sublinhar que se não mudarem de rumo, se encararem os desafios da actualidade, limitando-se ao jargão previsível dos habituais lugares-comuns, os partidos europeus da Internacional Socialistas arriscam-se a perder a sua base social e a serem abandonados por uma grande parte do seu eleitorado.
Ora, se isso acontecer, pelo que atrás se disse, deixará de ser suficientemente relevante, à escala europeia, a expressão político-institucional dos descontentamentos, abrindo-se a porta a que uma grande parte da respectiva energia política se disperse em pulsões dissipativas de desespero e revolta, inaproveitáveis para a política institucional. E se isto já era assim até ao desencadear da crise presente, agora todos os riscos cresceram, exponencialmente.
E se o Partido Socialista Europeu visse colapsar a sua legitimidade institucional, pela perda da força eleitoral que lhe permite ser um partido de governo, os liberais e os conservadores do Partido Popular Europeu passariam a ser os responsáveis únicos pela vertente institucional da instância política, no seio da União Europeia. Seria o bloqueamento do processo europeu, ou até o risco da sua implosão. Os conflitos sociais, provavelmente, sairiam do terreno democrático institucional, transferindo-se directamente para as ruas. O potencial reformista dessa energia conflitual ficaria, por isso, bastante reduzido. A sua energia política não seria suficiente para se abrir um rumo alternativo. E, se isto já era assim até há pouco, tudo agora evoluiu no sentido de aumentar os riscos de conflitualidade social e de potenciar a sua gravidade.
É neste contexto que devem situar-se os dois pressupostos em que assenta a ideia central do que aqui se escreve: 1) o paradigma neo-liberal tem predominado na actual fase da construção da União Europeia, o que implica a subalternidade dos cidadãos, em face dos poderes de facto economicamente dominantes; e isso é algo que, a médio prazo, será democraticamente insustentável; 2) a ausência de um contributo próprio dos partidos europeus da Internacional Socialista, para a construção europeia, coloca-os na órbita do referido paradigma; por isso, correm o risco de uma grave e duradoura ruptura com a respectiva base social, o que poderá transformar a actual estagnação europeia num bloqueamento institucional, ou mesmo numa crise, o que, conjugado com a crise económica que eclodiu, pode ter efeitos devastadores.
Por isso, para se percorrer um trajecto fecundo, há duas condições prévias a preencher. A primeira implica uma alteração estratégica profunda dos partidos socialistas, trabalhistas e social-democratas que integram a Internacional Socialista. Uma mudança que, em primeiro lugar, os conduza a assumir uma completa exterioridade, em face do paradigma neoliberal, de modo a poderem caminhar para a afirmação de um paradigma alternativo. Uma mudança que, em segundo lugar, coloque no centro das suas políticas a vontade de assumirem uma autonomia de projecto, com base na qual sustentarão a imperatividade de um compromisso histórico com os liberais e os conservadores europeus, aberto às outras correntes políticas representativas, como pilar decisivo da próxima fase da construção da União Europeia.
Preencher a segunda condição implica que os liberais e conservadores europeus, ou seja, o Partido Popular Europeu, admitam que é necessário esse compromisso. Isso exige naturalmente o reconhecimento de que, no caminho já percorrido pela construção europeia, tem predominado largamente o paradigma neoliberal, o que terá que deixar de acontecer, à luz do novo compromisso histórico.
O preenchimento destas duas condições prévias não será a chave mágica para a superação de todas as dificuldades, mas será uma boa base para uma nova fase na vida da União Europeia, que fará com que seja mais sólido e duradouro tudo o que se for conseguindo.
Deste modo, pretender superar o risco de bloqueio do processo europeu, de que os resultados dos referendos francês e holandês foram dois indícios poderosos, com malabarismos institucionais ou retóricas apologéticas, mais não é do que é um conservadorismo estéril que ignora imprudentemente as mais sérias mensagens de aviso. Por outro lado, a tomada de medidas curativas imediatas para combater a crise que grassa nas economias europeias não pode circunscrever-se a uma resposta conjuntural, dirigida afinal a deixar tudo como dantes. Pelo contrário, aquilo que era necessário até agora, tornou-se mais urgente e as resistências ideológicas às opções propugnadas viram a sua razão de ser dramaticamente enfraquecida.
A Europa tem pela frente problemas difíceis. Não deve escondê-los nem ignorá-los, nem mesmo reduzi-los a simples dificuldades conjunturais de natureza institucional ou económica que, podendo ser mais facilmente superadas, dêem a ilusão de que tudo voltará à normalidade, após algumas medidas políticas avulsas mais ou menos felizes.
De facto, a actual estagnação da União Europeia e a crise que atravessa são sinais de um impasse, mas de um impasse estrutural que, por isso mesmo, não pode ser enfrentado com êxito através de medidas que não tenham, pelo menos, a densidade política e a relevância estruturante do compromisso histórico proposto.
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