A
JUSTIÇA RESPIRA MAL
Vários comportamentos,
mediaticamente destacados, das principais instâncias do poder judicial português
têm tido ecos superficiais contraditórios e têm suscitado impressões distintas na
sociedade portuguesa. Uns entusiasmam-se, outros indignam-se. Cada vez mais
encolhem os ombros, com desilusão ou simples indiferença. Os entusiastas, os
indignados e os indiferentes arrumam-se desigualmente ao sabor do que em cada
caso está directamente em causa.
Mas, de acordo com os
estudos opinião publicados, em geral, o prestígio dos juízes e dos magistrados
do ministério público tem descido até aos últimos lugares na hierarquia da
consideração, que por eles têm os portugueses. Os tribunais, corporizados
essencialmente pelos juízes, são um órgão de soberania. Todos os outros órgãos
de soberania radicam a sua legitimidade no facto de serem escolhidos directa ou
indirectamente pelo voto popular. O Presidente da República e os deputados à
Assembleia da República são eleitos directamente; o Governo depende
principalmente da vontade e decisão dos deputados. Os juízes, embora exerçam os
seus poderes “em nome do povo”, nos termos da Constituição, não são eleitos por
ninguém.
Os magistrados do
ministério público dispõem de uma autonomia que os não exclui da tutela
genérica do Governo, regulada pela lei nos termos da Constituição.
Uns e outros,
corporativamente, têm pugnado por uma autonomia ainda maior, neste último caso,
e por uma independência ainda mais radical, no caso dos juízes. Não só em
Portugal, mas também em Portugal, sob a capa de uma luta contra a corrupção
(plenamente justificada em si própria) têm vindo a deslizar crescentemente para
uma intromissão ilegítima nas esferas de competência política do poder
executivo e até, mais raramente, do poder legislativo.
No entanto, se no caso
português a opinião pública, exprimindo em larga medida a vontade popular,
aprecia, como é público, tão negativamente os juízes, como podem continuar eles
a ser dispensados, incondicionalmente, de se submeterem a um crivo eletivo
directo ou indirecto, que certifique que o povo, em nome de quem decidem, os
mandata realmente para julgarem? E, se o mesmo desprestígio atinge os
magistrados do ministério público, o que está na ordem do dia é a necessidade
dos poderes democráticos, que resultam do nosso voto, tomarem medidas urgentes
para uma reabilitação profunda da qualidade da sua actuação, que lhes permita
recuperar o prestígio perdido.
Todos sabemos (e quem
tenha frequentado uma Faculdade de Direito, como é o meu caso, sabe-o sem margem
para dúvidas, por experiência) que como estudantes os então futuros juízes e magistrados não
eram, por natureza, mais honestos, mais inteligentes, mais sabedores, mais
equilibrados, mais trabalhadores do que os outros. E não há Faculdade de
Direito que, em si, seja capaz de ungir de uma espécie de santidade democrática
todos os que por lá passarem. Por isso, não há nenhuma justificação objetiva
para que seja quem for possa ser encarregado de uma função tão relevante como a judicial,
sem ser submetido, como os titulares de outros poderes públicos o são, a um controle
democrático claro e efetivo.
Tem vido a
manifestar-se, com crescente frequência, uma enérgica vociferação, talvez
nalguns casos sem má fé, contra os partidos políticos, contra aquilo a que
chamam classe política (pondo com essa noção, num mesmo saco, lobos e cordeiros,
raposas e galinhas, como se os cordeiros pudessem comer os lobos e as galinhas,
as raposas). Os furiosos acendem-se , em regra, por causa de atos ou omissões
cometidos por um ou por outro partido em concreto, por uma ou por outra pessoa em
concreto, mas a partir de uma primeira justa indignação quanto a cada caso
generalizam, abrangendo tudo. E ao abranger-se gente séria na vociferação, está
afinal a praticar-se uma injustiça e a estão a branquear-se os verdadeiros
prevaricadores.
Embora não seja essa a
única causa desta atmosfera insalubre que se respira em Portugal, para se poder
melhorá-la não se pode ignorar a crise vivida pelas magistraturas judiciais,
bem ilustrada, aliás, pela dramática quebra de prestígio público que enfrentam.
E como é óbvio, em
virtude da situação a que se chegou, pelo menos num primeiro tempo, não é lógico que esteja
em causa o aumento de autonomias ou de independências, mas sim uma
intensificação equilibrada do controle democrático e das garantias de compatibilidade
funcional e política dessas entidades judiciais com as escolhas
democraticamente feitas pelos portugueses.
Mas se a estratégia for
a de fingir que se muda muito à superfície para se garantir que em profundidade
tudo fica na mesma, apenas estaremos a estugar o passo rumo ao abismo. E o
abismo é, neste caso, uma maior degradação das magistraturas judiciais, rumo a
uma séria perda de qualidade da democracia em Portugal.
Sem comentários:
Enviar um comentário