Vamos editar hoje dois poemas emblemáticos, como altas expressões de uma resistência futurante, que de algum modo se podem olhar como duas faces de uma mesma moeda. De um lado, a tristeza dos heróis empalhados pelas instituições patrioteiras, do outro lado, o heroísmo sem margens de um povo em armas, para resistir ao fascismo.
Enfim, leiam-se, já que falam realmente por si.
POEMAS - Reinaldo Ferreira
Receita para fazer um herói
Tome-se um homem
Feito de nada como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
A que morreu às portas de Madrid
A que morreu às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
Teve a sorte que quis
Teve o fim que escolheu.
Nunca passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
Depois de um saque ─ antes a deu
A quem lha desejou,
Na lama de um reduto,
Sem náusea mas sem cio,
Sob a manta comum,
A pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar,
Entre «champagne», aos generais senis,
As horas de lazer.
Não quis, ativa e boa tricotar
Agasalhos pueris,
No sossego de um lar.
Não sonhou minorar,
Num heroísmo branco,
De bicho de hospital,
A aflição dos aflitos.
Uma noite, às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
À hora tal, atacou e morreu.
Teve a sorte que quis,
Teve o fim que escolheu.
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