quinta-feira, 30 de abril de 2015

NÓVOA e o PS - labirinto fatal?



Nóvoa mergulhou formalmente na sua aventura presidencial. Falta saber se chegará á outra margem. Parece suficientemente robusto e apoiado, para não soçobrar na difícil terra de ninguém das primeiras braçadas. Se o xadrez de candidatos da primeira volta for o previsível e não emergir um candidato surpresa que, em maior ou menor grau, perturbe o esperado, Nóvoa tem boas hipóteses de ir à segunda volta. Mas quanto a ser eleito Presidente já as perspetivas são bem diferentes. Aqui a sua candidatura está marcada por um grande ponto de interrogação.

É que Nóvoa tem que esperar que a direita não consiga gerar um candidato unificador, para ela consensual, que seja envolvente e que resulte de um processo de escolha que satisfaça os padrões médios atuais da decência. Pelo contrário, basta que isso aconteça para que as suas dificuldades aumentem muito.

Mas Nóvoa tem também que concitar o apoio de todas as esquerdas. O apoio e quiçá o entusiasmo mobilizador. Tem que desse modo receber o apoio dos partidos com uma maior base eleitoral, PS, PCP e BE. Mas tem que receber esse apoio de modo a que ele se possa converter, natural e eficazmente, no apoio dos respetivos eleitorados.

No caso do PCP, sabe-se que costuma ser forte a capacidade para as instâncias dirigentes do partido projetarem as suas escolhas no respetivo eleitorado. No caso do BE, essa capacidade, sendo aparentemente menor, é ainda relevante. Mas quanto ao PS as coisas são bem diferentes. A obediência do eleitorado às indicações do partido está longe de ser incondicional e resulta de diversos fatores: o prestígio do candidato no seio do partido, o grau de afetividade do povo socialista para com ele, a intensidade com que seja apoiado pelas estruturas partidárias, o nível de democraticidade do processo de escolha e a existência ou não de outros candidatos que sejam pelos eleitores socialistas sentidos como próximos e relevantes. Nos últimos anos, tem ganho terreno a defesa de eleições primárias para escolha de todos os candidatos do PS às diversas eleições. Recordem-se as primárias para escolha do candidato a primeiro-ministro. Cresce a convicção de que, se nas duas últimas eleições presidenciais o candidato apoiado pelo PS tivesse sido escolhido em primárias, Cavaco não teria ganho.  

Perfilam-se assim algumas nuvens de incerteza quanto à medida em que o eleitorado socialistas seguirá a orientação do partido se a escolha recair em Nóvoa.  O problema é que esta parcela do eleitorado é mais do que o dobro do conjunto das parcelas correspondentes às outras esquerdas. 

Mas somam-se indícios de que a candidatura em causa se está deixar envolver em algumas ambiguidades estruturais. Por exemplo, afirma-se como impulso regenerador da vida politica e sente-se confortável com o apoio do PS, mesmo que ele não seja resultado de primárias; afixa uma imagem de independência, mas coloca-se na fila dos ex-presidentes que são militantes do PS como se fizesse parte dela; tenta sugerir-se como fator de congregação das esquerdas, mas revela-se cético quanto à perenidade da clivagem esquerda direita; omite no seu discurso qualquer tonalidade crítica do sistema capitalista, mas assume objetivos que entram em colisão com a perenidade desse sistema; afixa uma independência altaneira em face dos partidos, mas esforça-se por sugerir o apoio tácito do PS. Enfim, parece prisioneiro de uma incongruência, mais ou menos visível, entre alguns objetivos gerais populares , especialmente á esquerda,  e a imagem estrutural que a sua candidatura projeta.

De momento, o PS parece apostar na tática de deixar que pensem que vê Nóvoa com bons olhos, sem contudo se comprometer formalmente com ele. Corre vários riscos. Se a candidatura ganhar asas, pode aparecer como pouco relevante para esse começo de êxito, sendo-lhe no entanto muito difícil deixar de a apoiar. Se a candidatura se atolar na irrelevância, terá muita dificuldade em patrocinar um candidato sucedâneo. Podendo parecer subtil, o PS parece ter-se deixado apanhar numa ratoeira. Deixa que pareça ter tido que engolir um candidato que veio de fora e não pode assumir o ónus de suscitar outro.

Por outro lado, é natural que se procure aumentar a energia eleitoral das candidaturas do PS nas legislativas, através da sinergia com um candidato presidencial suficientemente forte para ser capaz de ter esse efeito político. Ora, se o PS realmente vier a apostar em Nóvoa, parece claro que estamos muito longe de poder esperar desse apoio um qualquer impulso favorável ao PS nas legislativas.

Tudo isto faz recear que uma opção pelo candidato Nóvoa , tomada por uma decisão formal do PS, daqui a algum tempo, não seja seguida por uma parte do seu eleitorado, incomodada pelo método autocrático da escolha e pouco identificada afetivamente com ela. Se isso acontecer, perde Nóvoa como candidato, perde o PS e ganha a direita. Se isso acontecer, fica à mostra o erro político cometido. Melhor, seria evitá-lo.

sábado, 25 de abril de 2015

Melancolia em Abril ?



Melancolia em abril?

As flores de abril
já são conchas de pedra
debruçadas no tempo,

violinos cansados
pelos dedos antigos

ou alarmes caindo
pelas escarpas do medo.

Mas os olhos em riste
que desejam futuro
continuam escavando
sem os braços caídos.

Não deixemos que abril
seja folha caída
que o cortejo dos meses
vai deixando para trás.

Não deixemos que abril
seja o tempo que passa,
de si próprio perdido
por não querer regressar.

Não deixemos que esqueça
sua própria guitarra
nem que fuja das ruas,
nem que seja saudade.

         [ Rui Namorado – 25 de abril de 2015]

 

 

quinta-feira, 23 de abril de 2015

EM COIMBRA, nesta sexta-feira.


Tertúlia integrada nas comemorações                                         do 25 de Abril


"Liberdade Sobre a Mesa de um Café"

 Café Santa Cruz.

Sexta- feira dia, 24 de abril pelas 18h30

Intervenientes :
 António Arnaut, José Dias e Rui Namorado,


Moderador :
Diogo Teixeira Dias, professor da Aposenior.


O tema em debate  é o 25 de Abril, à  luz daquilo que o precedeu e do que aconteceu depois. O que deixámos para trás ? O que nos espera? O que foi alcançado? O que continua longe?

V ariações em Nóvoa


Anuncia-se intensamente o anúncio da candidatura de Sampaio da  Nóvoa.

Tudo indica que será uma candidatura robusta. Mas uma abordagem realista mostrará que,  tal como se desenha o cenário dos candidatos, dificilmente será o vencedor. Apresenta-se, no cenário atual, como possível contendor na 2ª volta, mas mostra-se como um provável perdedor dessa segunda contenda. Há problemas no seu caminho que poderá ainda  resolver a seu tempo.

 No entanto, há um que parece tender a complicar-se e que lhe pode ser fatal: o modo como se tem vindo  a relacionar com o eleitorado do PS.É uma dificuldade, aliás, suscitada quer  pelo modo como se tem vindo a impor como candidato, quer pelo modo como a direção do PS tem lidado com essa ( pelo menos) aparente imposição. De facto, nas atuais circunstâncias, depois de terem sido alvitrados nomes que se autoapagaram e nomes que obtiveram um eco demasiado discreto, traduzindo sensibilidades distintas dentro do PS e do seu eleitorado,  o nome de Nóvoa, ou o de qualquer outro potencial candidato, só logrará um apoio sólido da parte ( do eleitorado) do PS se resultar de uma decisão tomada em eleições primárias realmente abertas ( modelo francês). Ignorar isto, é brincar com o fogo, pois mesmo que as instâncias dirigentes do PS alcancem uma aparência unanimista em torno de um candidato, seja ele qual for entre os possíveis, sempre se correrá o risco de o eleitorado se rebelar , farto de ser posto perante factos consumado.

Mas se o candidato apoiado vier a ser um independente que, como Nóvoa, tenha afirmado publicamente que o seu "herói" de referência é Eanes, enquanto Presidente da República, as dificuldades podem crescer ainda mais. O eleitorado que vota habitualmente no PS pode legitimamente interrogar-se sobre essa admiração tão estruturante. É um sinal de que Nóvoa se fosse eleito faria o que fez Eanes? Ou seja, procurar destruir o PS, criando um novo partido político que tente  substituir o PS, disputando-lhe a mesma área, a partir do  cargo de Presidente da República.

Por mim, enquanto eleitor preciso de ver por completo apagada a dúvida, criada por Nóvoa, quanto ao seu próprio desígnio. Não faria sentido que votasse num candidato que tem como desígnio, mais ou menos claro, a destruição do partido a que pertenço; ou que, pelo menos, escolhe como referência alguém que o tentou no passado , sem êxito mas com um elevado preço político que todos os portugueses pagaram , em especial  o povo de esquerda.

Mas se, contra toda a razoabilidade política, a direção do PS vier a optar pela via estreita que se receia, isso tem um outro efeito colateral negativo: dificulta uma outra candidatura verdadeiramente a sério apoiada pelo PS, amarrando-o assim   à sorte incerta do candidato Nóvoa. E isso, repito, pode ser fatal. É que , não sendo suficiente o apoio da generalidade do eleitorado do PS, sem esse apoio a vitória nas presidenciais de um candidato de esquerda é uma miragem. E esse apoio de muitas centenas de milhar de eleitores nunca é o resultado automático de um ordem de serviço burocrático-política, mas sim a consequência amadurecida de um envolvimento profundo desse eleitorado no processo de escolha e de afirmação de um candidato, que é possível estimular, mas que não se estimula de qualquer maneira.

 Receio que os vários protagonistas ( diretos e indiretos) do referido processo de candidatura se tenham deixado  reduzir a quase-autómatos políticos que seguem um roteiro que sabem intuitivamente que os vai conduzir à derrota, mas do qual não sabem como fugir. O PS está a deixar-se envolver nesse automatismo fatal. É ainda tempo de lhe escapar, parecendo claro que para isso  não chegará a repetição até à  exaustão da subalternidade das eleições presidenciais em face das legislativas.

Se tudo acabar realmente por correr mal, será fácil que os vários protagonistas se culpem mutuamente. E, nessa hipótese, até talvez, todos eles tenham alguma razão. Só que, nesse caso, não poderão esquecer-se de assumir também as culpas próprias. Não lhes pode faltar a lucidez de assumirem as eventuais culpas próprias. Por mim , preferia que os acontecimentos tornassem tudo isso desnecessário, mas tenho algum receio que assim não seja.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Regresso a 17 de Abril


 
Regresso a 17 de Abril

 
Há um regresso aqui, que nunca dói,
como se fosse futuro     no passado.


Há sonhos que regressam neste dia,
como se fossem livres e cantassem.


O tempo adormeceu dentro de nós
e o sonho é a memória desse dia.


Coimbra ganha o som de uma guitarra,
que os dedos da revolta repetiram.


Voltamos ao começo do que somos
e é esse o  nosso pão de cada dia.


Saudade é a colheita que não queremos,
no coração que chore a nossa ausência.


Olhamos a tristeza, sem rancor,
esquecemos o ódio ressequido.


Lembramo-nos da  pele da alegria,
da madrugada  súbita da esperança.


Na mão que nos acolhe transportamos
os meses que inventaram o destino.

                                   [Rui  Namorado- 17/ 04/ 2015]

sábado, 11 de abril de 2015

UM LIVRO, UM POEMA - 8


Vamos, hoje, recorrer à 33ª edição da “Morte e Vida Severina e outros poemas em voz alta” do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto (José Olympio – Editora, Rio de Janeiro, 1993).
“Morte e Vida Severina” é um “auto de natal pernambucano”, escrito entre 1954 e 1955 e publicado em 1955. Radica-se na saga dos trabalhadores pobres do nordeste ("retirantes") que emigravam para a parte mais rica do Brasil, em longas caminhadas, em busca da sobrevivência. Editado pela primeira vez nos anos cinquenta, fala por si o número de edições publicadas. Como sugere o título da coletânea, está escrito num registo de oralidade. O “auto de natal” foi teatralizado, declamado, cantado. Através dele, sentimos respirar o sofrimento ancestral do povo brasileiro, a sua profunda dignidade e a marca dorida de uma esperança improvável, mas irremovível.

A poesia de João Cabral de Melo Neto é tecida por versos secos, por sílabas medidas , sem enfeites; como se a aridez, por vezes dramática, do real, apenas precisasse de palavras exatas para ser dita. Escreve com “facas”, com “pedras”, com “arestas”, atravessando paisagens de uma aridez cortante. É um dos grandes poetas de língua portuguesa do século XX.

João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife (9 de janeiro de 1920) e morreu no  Rio de Janeiro (9 de outubro de 1999). Foi diplomata.

Hoje, vamos publicar  três extratos da “Morte e Vida Severina”: o início, o fim e uma parte intermédia, especialmente conhecida.
 
 

Morte e Vida Severina  (extratos)
                          João Cabral de Melo Neto

1. O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.  


2. ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO

—   Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
á a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.


3. O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA

— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender,
só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.


E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

UM LIVRO, UM POEMA - 7


 
Hoje, vamos recorrer a um livro publicado depois da morte do seu autor, Reinaldo Ferreira. “Poemas” é o seu título. Foi editado pela Portugália , na  coleção “POETAS DE HOJE"( 3ª edição- 1970), com um prefácio de José Régio. Reinaldo Ferreira nasceu em Barcelona em 1922 e morreu em Moçambique, em 1959, onde vivia desde 1941. Tinha o mesmo nome que seu pai Reinaldo Ferreira (1897-1935), o célebre  Repórter X, reputado como um dos melhores jornalistas do seu tempo.

Vamos editar hoje dois poemas emblemáticos, como altas expressões de   uma resistência futurante, que de algum modo se podem olhar como  duas faces de uma mesma moeda. De um lado, a tristeza dos heróis empalhados pelas instituições patrioteiras, do outro lado, o heroísmo sem margens de um povo em armas, para resistir ao fascismo.

Enfim, leiam-se, já que falam realmente por si.





POEMAS  -  Reinaldo Ferreira

 





Receita para fazer um herói

 

Tome-se um homem

Feito de nada como nós,

E em tamanho natural.

Embeba-se-lhe a carne,

Lentamente,

Duma certeza aguda, irracional,

Intensa como o ódio ou como a fome.

Depois, perto do fim,

Agite-se um pendão

E toque-se um clarim.


Serve-se morto.



A que morreu às portas de Madrid

 

A que morreu às portas de Madrid,

Com uma praga na boca

E a espingarda na mão,

Teve a sorte que quis

Teve o fim que escolheu.

Nunca passiva e aterrada, ela rezou.

E antes de flor, foi, como tantas, pomo.

Ninguém a virgindade lhe roubou

Depois de um saque ─ antes a deu

A quem lha desejou,

Na lama de um reduto,

Sem náusea mas sem cio,

Sob a manta comum,

A pretexto do frio.

Não quis na retaguarda aligeirar,

Entre «champagne», aos generais senis,

As horas de lazer.

Não quis, ativa e boa tricotar

Agasalhos pueris,

No sossego de um lar.

Não sonhou minorar,

Num heroísmo branco,

De bicho de hospital,

A aflição dos aflitos.

Uma noite, às portas de Madrid,

Com uma praga na boca

E a espingarda na mão,

À hora tal, atacou e morreu.

 
Teve a sorte que quis,

Teve o fim que escolheu.

 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

UM LIVRO, UM POEMA - 6


“Poemas” de Bertolt Brecht é o livro que hoje me vai servir de apoio. Vou transgredir de novo a regra de um livro- um poema. Vou recordar vários poemas. É uma transgressão compreensível, quando temos pela frente um livro de 667 páginas, com tantos poemas que vivamente ainda hoje nos interpelam. A edição em causa é organizada e prefaciada por António Sousa Ribeiro, correspondendo à versão portuguesa dos poemas da autoria de Paulo Quintela. Foi publicada em 2007, pelas edições ASA.

Bertolt Brecht nasceu na Alemanha em 1898 e faleceu na República Democrática Alemã em 1956, depois de em 1950 se ter naturalizado austríaco. Exilou-se em 1933, por causa do nazismo, tendo vivido em vários países. Regressou à Alemanha (RDA – Berlim Leste), em 1949. Comunista, resistente ao nazismo, não deixaria de assumir alguma distância crítica em face do regime pró-soviético da RDA, como se pode depreender do primeiro poema transcrito. Foi um dos maiores dramaturgos do século XX e foi também um grande poeta.

 


Poemas de Bertolt Brecht

 
A (DIS) SOLUÇÃO

 
Depois da revolta de 17 de junho
Mandou o secretário da Associação de Escritores
Distribuir panfletos na Stalinallee
Nos quais se podia ler que o Povo
Perdera levianamente a confiança do Governo
E só a poderia reconquistar
Trabalhando a dobrar. Pois não seria
Então mais fácil que o Governo
Dissolvesse o Povo e
Elegesse outro?


MAS QUANDO CAMINHAVA PARA O CEPO


Mas quando caminhava para o cepo onde o iam matar
Caminhava para um cepo que fora feito pelos seus iguais
E também o machado que agora o esperava
Fora feito pelos seus iguais. Apenas eles tinham partido
Ou tinham sido expulsos, mas estavam sempre ali
E presentes na obra das suas mãos. Nem mesmo a luz
Nos corredores por onde passava para a morte
Haveria sem eles. Nem a casa
Donde era levado, nem qualquer outra casa.
Porque é que
Tem ele de estar sozinho, ele que falou por tantos?
Por isto:
Os opressores juntam-se
Mas os oprimidos andam desunidos.



QUEM É O TEU INIMIGO


Ao faminto, que te tirou
O último pão, olha-lo como inimigo.
Mas ao ladrão que nunca passou fome
Não lhe saltas às goelas.


LOUVOR DO REVOLUCIONÁRIO


Quando a opressão aumenta
Muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.


Ele organiza a luta
Pelo tostão do salário, pela água do chá
E pelo poder no Estado.


Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?


Onde quer que todos se calem
Ali falará ele
E onde reina a opressão e se fala do Destino
Ele nomeará os nomes.


Onde se senta à mesa
Senta-se a insatisfação à mesa
A comida estraga-se
E reconhece-se que o quarto é acanhado.


Pra onde quer que o expulsem, para lá
Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.

 

terça-feira, 7 de abril de 2015

UM LIVRO, UM POEMA - 5


Hoje, escolhi para vos recordar um poema de Egito Gonçalves (1920/2001), “Notícias do Bloqueio”. Foi publicado pela primeira vez em livro em 1958, em “Viagem com o teu rosto”, mas, segundo o autor, data de 1952. Logo depois, em 1953, integraria o 4º número da revista de poesia Árvore fundada no outono de 1951, extinta pele máquina repressiva do  fascismo na primavera de 1953, com o número acima referido. Todos os números da “Árvore – folhas de poesia” viriam mais tarde (2003) a ser publicados pelo Campo das Letras em edição fac-similada. Em 1980, Egito Gonçalves fez publicar no Círculo de Poesia da Moraes Editora uma seleção dos seus “Poemas Políticos”(1952-1979) que abre precisamente com as “Notícias do Bloqueio”.

Amado pela resistência e pela poesia, o poema foi ganhando raízes numa e noutra, instituindo-se como uma das mais intensas poesias inscritas na resistência cultural ao fascismo. Uma poesia que nos interpelava e interpela pela sua generosa ternura e pela indómita energia de uma resistência que não se cansa.

De algum modo, há ainda um bloqueio que cerca a ilha imaginária da esperança e faltam ainda víveres na cidade.

 


NOTÍCIAS DO   BLOQUEIO

                        -Egito Gonçalves –


Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para  enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

 
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos…
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos  ─ contrabando ─ aos teus cabelos.

 
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta 
─ único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas

 

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…

 
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silencio duro e violento.

 
Vai pois e notícia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

 
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

 
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

 
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam,
aumenta a raiva
                           e a esperança reproduz-se.

 

sábado, 4 de abril de 2015

UM LIVRO, UM POEMA - 4


Publico hoje o último poema  do Livro das Ignorãças,  do qual é autor Manoel de Barros, poeta brasileiro nascido em 1916 e falecido em 2014.  Advogado, fazendeiro e poeta, é um dos expoentes da poesia brasileira do século XX, mas a sua criatividade ousada transbordou  para o século atual e prepara-se para ocupar um lugar de relevo no futuro da poesia e da língua portuguesa.

 

AUTO-RETRATO  FALADO

                                   -Manoel de Barros

 Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
  Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da

            Marinha, onde nasci.
  Me criei no Pantanal de Corumbá, ente bichos do

            chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de

 estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.

Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
           sinto como que desonrado e fujo para o

            Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei --- pelo

            que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.

Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
              gado. Os bois me recriam.

Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só

            faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

 

sexta-feira, 3 de abril de 2015

UM LIVRO, UM POEMA - 3




Carlos Oliveira  nasceu no Brasil, em Belém do Pará, em1921 e faleceu em Lisboa, em 1981. Regressa a Portugal com a família, nos primeiros anos de vida. Fixa-se em Febres, onde o pai exerceu medicina. Em 1941 ingressa na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Em 1947 licencia-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Pouco depois, vai viver para Lisboa.

Através do seu livro, “Turismo” (1942), participa na colecção “Novo Cancioneiro, um dos marcos fundadores do neo-realismo no campo da poesia.  Em 1976, reúne toda a sua poesia em dois volumes, sob o título de "Trabalho Poético”. Hoje publicamos um poema saído no primeiro.

Em 2011, escrevi neste mesmo blog, a seguinte frase, a propósito do mesmo poema que aqui vou recordar hoje: Quando os filhos das Parcas encharcam de um medo cinzento e abafado os caminhos do futuro, os poetas podem ajudar-nos a varrer com a luz da esperança este tempo de abutres. Convoquemos hoje um grande poeta da língua portuguesa, do século XX, de Coimbra. Deixemos que Carlos de Oliveira nos ofereça o seu "Soneto".

Soneto

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.