Começo esta insólita história, pelo fim. A meu lado, no
carro onde vinha a ouvir a RDP, de uma leve nuvem quase imaterial soltou-se i
inesperadamente uma voz forte e indignada.
“Porra, Aníbal ! Cidadões!?!? Essa é demais. Nem o Relvas
com as suas equivalências- relâmpago, está autorizado a uma tal calinada”.
Travei bruscamente, mas o esfumar ligeiramente turbulento da
nuvem que acabara de falar ainda me deixou adivinhar o perfil irritado do Luís Vaz. Sim. Esse mesmo em quem
estão a pensar: o de Camões.
Mas o que teria sido espanto,
não chegou afinal a sê-lo. Logo percebi tudo. De facto, momentos antes, do alto
da sua pose presidencial, cada vez mais acaciana e mais atraída pelo mimetismo
em face de um finado almirante, o
Presidente Cavaco Silva espraiava a sua trôpega retórica em terras de Melgaço.
E quando se
aprestava a subir com energia o tom,
numa sonoridade próxima da épica, o grande Aníbal viu-se enredado numa modesta
subtileza da língua portuguesa: o plural da palavra “cidadão”. E, quando os
respeitosos ouvidos da assistência esperavam indolentemente ouvir falar nos vulgares
“cidadãos”, Aníbal (o que raramente se engana), trovejou inesperadamente uma
enorme dentada na língua portuguesa: ao referir-se uma e outra vez, com grande e
calorosa energia, aos “cidadões”.
Tenho que reconhecer que o nosso poeta teve toda a razão.
Andou ele a moldar com os seus versos os alicerces da modernidade de uma
língua, para alguns séculos depois, um pequeno chefe de Estado, confessadamente
tradicionalista e conservador, vir solenemente estropiar em público essa Pátria simbólica..
Por isso, concordo plenamente com o Camões. “Porra
Aníbal! Ainda se fosse o Relvas…”
1 comentário:
Supunha com a m/ já provecta idade que tinha ouvido mal, mas não!
Afinal sempre era verdade, não sabe quantos cantos tem " Os Lusíadas " nem sabe o plural dos nosso léxico.
Como dizes, e bem :
“Porra Aníbal! Ainda se fosse o Relvas…”
Enviar um comentário