segunda-feira, 6 de maio de 2013

OS ARISTOCRATAS DA IGUALDADE



No coração dos arautos da plena igualdade, entre os trabalhadores da função pública e os outros, mostra-se uma balança sensível, concebida para emocionar.

Seria bom, no entanto, para que a balança, verdadeiramente, pudesse pesar fosse o que fosse, que se fizesse um inventário completo das diferenças  existentes, para se ficar a saber se são reais e quais são.

Seria também aconselhável que se olhasse para o conjunto dos trabalhadores da função pública, ponderando as diferenças entre eles que são como se sabe muitas.

Seria também acertado verificar se perante trabalhadores de habilitações com o mesmo nível as diferenças existem e se são realmente significativas.

Também se justificaria procurar-se saber se essas hipotéticas diferenças têm alguma razão de ser objectiva e justa.

No caso de, após um estudo objectivo, rigoroso e crível, se constatar uma efectiva diferença de estatuto favorável aos trabalhadores da função pública, ter-se-ia que apurar se os outros trabalhadores estavam a ser recompensados pelo seu trabalho de uma maneira justa ou se estavam a ser sobre explorados. Só se estes estivessem a ser justamente recompensados, teria sentido pôr a questão de uma possível necessidade de degradar a posição dos trabalhadores da função pública para os colocar num patamar idêntico aos dos outros. Se não, o que faria sentido era melhorar o estatuto dos outros trabalhadores. Doutro modo, em vez de se desfazer uma desigualdade injusta, apenas se estaria a duplicar uma injustiça.

Nunca se poderá também esquecer que as condições de trabalho da função pública resultaram, em última instância, de uma decisão do Estado e as contrapartidas por isso recebidas pelos trabalhadores não corresponderam a uma decisão que lhes possa ser imputada.

Por outro lado, devem ser muito bem distinguidas a hipótese de uma degradação do estatuto da função pública com efeitos apenas futuros, de qualquer degradação retroactiva dos seus direitos. A primeira está muito longe de se revestir de uma aceitabilidade evidente; a segunda é redondamente ilegítima. De facto, essa retroactividade, quando não expressamente prevista previamente pelo direito como possibilidade, é uma violência que roça o nível da barbárie. Aliás, introduziria no tratamento comparado dos dois tipos  de trabalhadores em causa uma diferença estrutural de sinal contrário ao daquelas que se diz querer evitar. Na verdade, nas relações entre os patrões privados e os trabalhadores, aqueles não têm ao seu alcance a possibilidade de decretarem a retroactividade seja do que for. Mas o patrão-Estado, valendo-se do seu poder legislativo, vicia a contratualidade implícita das suas relações com os trabalhadores da função pública, legislando no seu interesse como respectivo patrão, sem o acordo daqueles, podendo levar esse abuso até ao ponto de enveredar pela retroactividade de medidas gravosas do interesse dos trabalhadores da função pública. Será difícil que as medidas retroactivas sejam constitucionais. Mas, mesmo que o fossem, nunca seriam morais nem legítimas. O Estado comporta-se assim como um sujeito bárbaro e não confiável. Mesmo que se revista de uma natureza democrática, quando assim se comporta, resvala para o comportamento típico das ditaduras  e das autocracias oligárquicas. Portanto, mesmo que todas as análises acima sugeridas convergissem  no sentido da admissibilidade  de uma degradação do estatuto dos trabalhadores da função pública ( o que está longe de ser provável), ela nunca poderia ter efeitos retroactivos, sob pena de estarmos a sair da legitimidade democrática e do Estado de direito democrático, rumo a um passado que se não deve esquecer

Por último, antes de se enveredar por um justicialismo radical, ansioso por nivelar a situação de todos os que auferem rendimentos de trabalho, não se pode deixar de, antes disso, se instituir justiça na repartição do rendimento nacional entre o capital e o trabalho. Enquanto se persistir na actual repartição entre o nível geral de remuneração do trabalho e o nível geral de remuneração do capital, gritantemente injusta em prejuízo do primeiro, não há qualquer legitimidade para se impor um justicialismo nivelador que apenas procura a degradação do nível de vida de alguns trabalhadores para os aproximar da posição já degradada de outros.

Na verdade, se a preocupação igualitária funcionasse, puxando para cima quem está mais em baixo, só teríamos que ser solidários com ela. Mas, procurar nivelamentos de diferenças entre os estatutos remuneratórios dos trabalhadores (mesmo que realmente elas não fossem mais imaginárias do que reais), degradando a situação de uma parte deles, de modo a fazer com que  a parte que se lhes retira  acabe por, directa ou indirectamente, reverter em benefício dos detentores do capital, é apenas um miserável cinismo.

Por isso, podemos afirmar sem hesitações que o processo de degradação do estatuto remuneratório e profissional dos trabalhadores da função pública, é apenas uma agressão social injusta, desprovida de qualquer razoabilidade ou de qualquer racionalidade que, muito longe de se destinar a beneficiar os outros trabalhadores , se destina a beneficiar o capital em detrimento do trabalho, ilustrando bem o papel histórico deste governo e da linha de orientação política hegemónica na Europa de hoje. Embora esteja cada vez mais desamparada dos argumentos científicos de que se socorria, é muito mais do que uma linha errada percorrida por alucinados, é um ataque geral à posição na sociedade dos que vivem do trabalho, em benefício de última instância para o capital financeiro, acompanhado de uma tentativa de destruição do Estado social e de degradação do Estado no seu todo. Mas, mesmo no universo empresarial privado, há uma descarada e ilegítima  sucção de uma grande parte da riqueza produzida pelas pequenas e médias empresas , pelas grandes multinacionais e pelo capital financeiro.

Por isso, os trabalhadores da função pública não estão a ser espoliados das contrapartidas sociais acordadas como salários indirectos de um trabalho que inequivocamente prestaram, por causa de qualquer justiça ou equidade. Estão a ser sacrificados, em conjunto com os outros trabalhadores, por causa  da deriva neoliberal, conduzida pelo capital financeiro em seu proveito, que a todos nos aproxima de um abismo civilizacional e de uma sociedade de pesadelo.

Por isso, é cada vez mais perigoso não ser radical , por isso é cada vez menos justificada moralmente qualquer complacência em face da grande aliança dos poderes fácticos e da direita política que num cartel dissimulado e perverso lidera este processo de regressão social, política e civilizacional. 

1 comentário:

JGama disse...

Reflexão importantíssima.
A ideia de que o Estado se comporta "como um sujeito bárbaro e não confiável" será uma ideia acarinhada pelos responsáveis desta destruição civilizacional que nos arrasta, pois essa ideia aplana o caminho traçado para os objectivos que se propõem. Matam, assim, dois coelhos com a mesma cajadada: tomam medidas que fazem parecer o Estado uma coisa execrável e ao mesmo tempo apresentam-se como salvadores do naufrágio que criaram.