No coração dos arautos da plena igualdade, entre os
trabalhadores da função pública e os outros, mostra-se uma balança sensível,
concebida para emocionar.
Seria bom, no entanto, para que a balança, verdadeiramente, pudesse pesar fosse o que
fosse, que se fizesse um inventário completo das diferenças existentes, para se ficar a
saber se são reais e quais são.
Seria também aconselhável que se olhasse para o conjunto dos
trabalhadores da função pública, ponderando as diferenças entre eles que são como se
sabe muitas.
Seria também acertado verificar se perante trabalhadores de habilitações
com o mesmo nível as diferenças existem e se são realmente significativas.
Também se justificaria procurar-se saber se essas hipotéticas
diferenças têm alguma razão de ser objectiva e justa.
No caso de, após um estudo objectivo, rigoroso e crível, se constatar uma efectiva diferença de estatuto
favorável aos trabalhadores da função pública, ter-se-ia que apurar se os outros
trabalhadores estavam a ser recompensados pelo seu trabalho de uma maneira justa
ou se estavam a ser sobre explorados. Só se estes estivessem a ser justamente recompensados, teria
sentido pôr a questão de uma possível necessidade de degradar a posição dos
trabalhadores da função pública para os colocar num patamar idêntico aos dos outros. Se não, o que faria sentido era melhorar o estatuto dos outros trabalhadores. Doutro modo, em vez de se desfazer uma desigualdade injusta, apenas se estaria a duplicar uma injustiça.
Nunca se poderá também esquecer que as condições de trabalho
da função pública resultaram, em última instância, de uma decisão do Estado e as
contrapartidas por isso recebidas pelos trabalhadores não corresponderam a uma decisão que lhes possa ser imputada.
Por outro lado, devem ser muito bem distinguidas a hipótese de uma degradação
do estatuto da função pública com efeitos apenas futuros, de qualquer degradação
retroactiva dos seus direitos. A primeira está muito longe de se revestir de uma aceitabilidade evidente; a segunda é redondamente ilegítima. De facto, essa retroactividade, quando não
expressamente prevista previamente pelo direito como possibilidade, é uma violência
que roça o nível da barbárie. Aliás, introduziria no tratamento comparado dos
dois tipos de trabalhadores em causa uma
diferença estrutural de sinal contrário ao daquelas que se diz querer evitar. Na
verdade, nas relações entre os patrões privados e os trabalhadores, aqueles não
têm ao seu alcance a possibilidade de decretarem a retroactividade seja do que for. Mas o patrão-Estado, valendo-se do seu poder legislativo, vicia a contratualidade implícita das suas relações com os trabalhadores da função pública, legislando no seu
interesse como respectivo patrão, sem o acordo daqueles, podendo levar esse
abuso até ao ponto de enveredar pela retroactividade de medidas gravosas do
interesse dos trabalhadores da função pública. Será difícil que as medidas
retroactivas sejam constitucionais. Mas, mesmo que o fossem, nunca seriam morais
nem legítimas. O Estado comporta-se assim como um sujeito bárbaro e não confiável.
Mesmo que se revista de uma natureza democrática, quando assim se comporta, resvala para o comportamento típico das ditaduras e das autocracias oligárquicas. Portanto,
mesmo que todas as análises acima sugeridas convergissem no sentido da admissibilidade de
uma degradação do estatuto dos trabalhadores da função pública ( o que está longe de ser provável), ela nunca poderia ter efeitos retroactivos, sob pena de estarmos a sair da legitimidade democrática
e do Estado de direito democrático, rumo a um passado que se não deve esquecer
Por último, antes de se enveredar por um justicialismo radical,
ansioso por nivelar a situação de todos os que auferem rendimentos de trabalho,
não se pode deixar de, antes disso, se instituir justiça na repartição do rendimento
nacional entre o capital e o trabalho. Enquanto se persistir na actual repartição
entre o nível geral de remuneração do trabalho e o nível geral de remuneração do capital,
gritantemente injusta em prejuízo do primeiro, não há qualquer
legitimidade para se impor um justicialismo nivelador que apenas procura a
degradação do nível de vida de alguns trabalhadores para os aproximar da posição
já degradada de outros.
Na verdade, se a preocupação igualitária funcionasse, puxando
para cima quem está mais em baixo, só teríamos que ser solidários com ela. Mas, procurar
nivelamentos de diferenças entre os estatutos remuneratórios dos trabalhadores (mesmo que realmente elas não fossem mais imaginárias do que reais), degradando a situação de uma parte deles, de modo a fazer com que a parte que se lhes retira acabe por, directa ou indirectamente,
reverter em benefício dos detentores do capital, é apenas um miserável cinismo.
Por isso, podemos afirmar sem hesitações que o processo de
degradação do estatuto remuneratório e profissional dos trabalhadores da função pública, é
apenas uma agressão social injusta, desprovida de qualquer razoabilidade ou de
qualquer racionalidade que, muito longe de se destinar a beneficiar os outros
trabalhadores , se destina a beneficiar o capital em detrimento do trabalho, ilustrando bem o papel histórico deste governo e da linha de orientação política
hegemónica na Europa de hoje. Embora esteja cada vez mais desamparada dos
argumentos científicos de que se socorria, é muito mais do que uma linha errada
percorrida por alucinados, é um ataque geral à posição na sociedade dos que
vivem do trabalho, em benefício de última instância para o capital financeiro,
acompanhado de uma tentativa de destruição do Estado social e de degradação do
Estado no seu todo. Mas, mesmo no universo empresarial privado, há uma descarada e ilegítima sucção de
uma grande parte da riqueza produzida pelas pequenas e médias empresas , pelas
grandes multinacionais e pelo capital financeiro.
Por isso, os trabalhadores da função pública não estão a ser
espoliados das contrapartidas sociais acordadas como salários indirectos de um
trabalho que inequivocamente prestaram, por causa de qualquer justiça ou
equidade. Estão a ser sacrificados, em conjunto com os outros trabalhadores,
por causa da deriva neoliberal, conduzida
pelo capital financeiro em seu proveito, que a todos nos aproxima de um abismo
civilizacional e de uma sociedade de pesadelo.
Por isso, é cada vez mais perigoso não ser radical , por
isso é cada vez menos justificada moralmente qualquer complacência em face da
grande aliança dos poderes fácticos e da direita política que num cartel
dissimulado e perverso lidera este processo de regressão social, política e
civilizacional.
1 comentário:
Reflexão importantíssima.
A ideia de que o Estado se comporta "como um sujeito bárbaro e não confiável" será uma ideia acarinhada pelos responsáveis desta destruição civilizacional que nos arrasta, pois essa ideia aplana o caminho traçado para os objectivos que se propõem. Matam, assim, dois coelhos com a mesma cajadada: tomam medidas que fazem parecer o Estado uma coisa execrável e ao mesmo tempo apresentam-se como salvadores do naufrágio que criaram.
Enviar um comentário