A comunicação social
fez eco de posições favoráveis ao novo Papa, tomadas pelo grande
expoente da Teologia da Libertação que é o brasileiro Leonardo
Boff, procurando usá-las, talvez, para tentar apagar algumas sombras que pairaram sobre
Francisco I , em virtude da sua complacência para com a mais recente ditadura argentina.
Sombras que, aliás, já foram mostradas neste mesmo Blog.
Pareceu-me, por isso, apropriado transcrever do Jornal
do Brasil, um texto datado do
passado dia 18 de Março. Melhor do que utilizar Leonardo
Boff, em pequenas doses mediáticas na tentativa de o fazer dizer coisas
que pareçam convenientes, é lê-lo realmente.
Aqui vou, por isso,
transcrever o texto do referido teólogo, publicado no Jornal
do Brasil, intitulado “É
possível um exercício do papado diferente”. Ei-lo:
“A grave crise moral que atravessa todo o corpo institucional da Igreja fez com
que o Conclave elegesse alguém que tenha autoridade e coragem para fazer
profundas reformas na Cúria romana e inaugurar uma forma de exercício do poder
papal que seja mais conforme ao espírito de Jesus e adequado à nova consciência
da humanidade. Francisco é o seu nome.
A figura do papa é talvez o maior símbolo do
sagrado no mundo ocidental. As sociedades que pela secularização exilaram
o sagrado, a falta de líderes referenciais e a nostalgia
da figura do pai como aquele que orienta, cria confiança e mostra
caminhos, concentraram na figura do papa estes ancestrais anseios humanos
que podiam ser lidos nos rostos dos fiéis na Praça de São Pedro. Por isso é
importante analisar o tipo de exercício de poder que o papa Francisco vai
exercer. Disse em sua primeira fala que vai “presidir na caridade” e não como
os anteriores com poder judicial sobre todas as igrejas.
Para os cristãos é irrenunciável o
ministério de Pedro como aquele deve “confirmar os irmãos e as irmãs na fé”
segundo o mandato do Mestre. Roma, onde estão sepultados Pedro e Paulo, foi
desde os primórdios referência de unidade, de ortodoxia e de zelo pelas demais
igrejas. Esta perspectiva é acolhida também pelas demais igrejas não católicas.
A questão toda é a forma como se exerce tal função. O papa Leão Magno
(440-461), no vazio do poder imperial, teve que assumir a governança de Roma.
Tomou o título de papa e de sumo pontífice, que eram do imperador, incorporou o
estilo imperial de poder, monárquico, absoluto e centralizado, com seus
símbolos, as vestimentas e o estilo palaciano. Os textos atinentes a Pedro que
em Jesus tinham um sentido de serviço e de primazia do amor foram interpretados
como estrito poder jurídico. Tudo culminou com Gregório VII, que com o
seu “Dictatus papae” (a ditadura do papa) arrogou para si os dois poderes, o
religioso e o secular. Surgiu a grande Instituição Total, obstáculo ao caminho da liberdade dos cristãos e da
sociedade.
A partir daí o papa emerge como um monarca
absoluto com a plenitude de todos os poderes como o cânon 331 bem o expressa.
Levanta a pretensão de subordinar ao seu poder toda as demais igrejas.
Esse exercício absolutista foi sempre questionado, especialmente, pelos
Reformadores. Mas nunca foi amenizado. Como reconhecia João Paulo II, este
estilo de exercer a função de Pedro é o maior obstáculo ao ecumenismo e à aceitação
pelos cristãos que vem da cultura moderna dos direitos e da democracia. Para
suprir esta falta, os últimos dois papas organizaram uma espetacularização da
fé, com viagens e eventos massivos, como a dos
jovens a se realizar no Rio.
Esta forma monárquica e absolutista
representa um desvio da intenção originária de Jesus, e agora com Francisco
deve ser repensada à luz da intenção de Jesus. Será um papado pastoral e de
serviço à caridade e à unidade e não mais um papado do poder jurídico
absolutista. O Concílio Vaticano II estabeleceu os instrumentos para uma
reformulação no governo da Igreja: o sínodo dos bispos, esvaziado e feito até
agora apenas consultivo, quando foi pensado para ser deliberativo. Criar-se-ia
um órgão executivo que com o papa governaria a Igreja. Criou-se pelo Concílio a
colegialidade dos bispos, quer dizer, as conferências continentais e nacionais
ganhariam mais autonomia para permitir um enraizamento da fé nas culturais
locais, sempre em comunhão com Roma. Representantes do Povo de
Deus, cardeais, bispos, clero e leigos e até mulheres ajudariam a eleger um
papa para toda a cristandade. Faz-se urgente uma reforma da Cúria na linha da
descentralização. Certamente o que fará o papa Francisco. Por
que o Secretariado para as Religiões não Cristãs não pudesse funcionar na Ásia?
O Dicastério da unidade dos cristãos em Genebra, perto do Conselho Mundial de
Igrejas? O das missões, em alguma cidade da África? O dos direitos
humanos e justiça, na América Latina?
A Igreja Católica poderia se transformar
numa instância não autoritária de valores universais, do cuidado pela Terra e
pela vida sob grave ameaça, contra a cultura do consumo, em favor de uma
sobriedade condividida, enfatizando a solidariedade e a cooperação a
partir dos últimos contra a exacerbação da concorrência. A questão central não
é mais a Igreja mas a Humanidade e a civilização que podem desaparecer Como a
Igreja ajuda em sua preservação? Tudo isso é possível e realizável, sem
renunciar em nada à substância da fé cristã. Importa que o papa Francisco seja
um João XXIII do Terceiro Mundo, um “Papa buono”. Só assim poderá
resgatar a credibilidade perdida e ser um luzeiro de
espiritualidade e de esperança para todos.”
* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. - lboff@leonardoboff.com
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