"As evidências parecem claras, ao menos neste primeiro instante: Jorge
Mario Bergoglio, jesuíta, cardeal de Buenos Aires até virar o papa Francisco , será
uma figura popular. A imagem de um clérigo que prepara a própria comida,
conversa com o jornaleiro e anda de metrô foi cantada em prosa e verso aos
quatro cantos do mundo. No lugar dos refinados sapatos de seu antecessor,
vermelhos, de pelica finíssima e feitos à mão, calçados comuns, visivelmente
gastos. É bonachão, brincalhão, de hábitos banais. Após se tornar o chefe
espiritual de mais de 1 bilhão e meio de almas, ainda teve o gesto singelo de
pagar a conta da hospedagem.
Na mesma toada, faz questão de autointitular-se bispo de Roma, para
deixar claro ser apenas mais um. E dispensou o veículo blindado, azucrinou sua
segurança com a mania de ir ao encontro dos fiéis e, claro, não deixou de
afagar um rapaz enfermo nos braços de um homem na Praça São Pedro.
Também parece claro ter ele consciência do tamanho dos problemas
internos do Vaticano. Há de tudo, e para todos os gostos: corrupção, intrigas
palacianas, conspirações, disputa de espaço e poder, lavagem de dinheiro,
traições e, para completar, os abusos sexuais e os casos de pedofilia. Isso
para não mencionar o pesado, pesadíssimo peso do véu da omissão a encobrir os
pecados.
Os grandes meios de comunicação, com destaque para a mídia da América
Latina, saudaram eufóricos a escolha de Bergoglio. Em seu país, a Argentina,
vive-se um clima de conquista de Copa do Mundo. Mas, como sempre acontece, há
vozes dissonantes. E essas vozes dizem coisas graves, tão graves que provocaram
uma dura reação do Vaticano e um imediato reforço na maré de aplausos dos
conglomerados de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão. Na falta de
melhores argumentos, tratou-se de desmoralizar os dissonantes: quem afirma ter
o papa desempenhado um papel no mínimo melífluo durante a ditadura é pecador,
ou quase.
Há, porém, indícios concretos, documentos já não tão secretos,
depoimentos de vítimas. O padre Bergoglio, em seus tempos de provincial dos
jesuítas na Argentina, foi omisso, quando não conivente, com prisões ilegais e
torturas desumanas praticadas contra integrantes de sua congregação. E em mais de
uma oportunidade se fez de sonso quando cobrado por sua inércia diante de
apelos recebidos de familiares de desaparecidos, em especial de quem teve
filhas grávidas sequestradas e mortas e seus bebês doados aos verdugos e
cúmplices.
Estranha sequência papal. Ratzinger foi na
adolescência integrante das Juventudes Hitleristas. Bergoglio foi na juventude
membro da Guardia de Hierro, a extrema-direita desse confuso amontoado de
ideologias formadoras do peronismo. Ratzinger ao menos podia apresentar o
argumento de que, nos anos 1930, todos os jovens alemães eram automaticamente
cooptados para integrar as Juventudes Hitleristas. Bergoglio, agora Francisco ,
preferiu não comentar o caso. Deixou correr o rumor de ser um papa peronista.
Não há, é verdade, nenhuma prova contra Bergoglio. Muitos integrantes da
alta cúpula da Igreja argentina silenciaram em público e aplaudiram em privado
os desmandos bárbaros da ditadura genocida iniciada em março de 1976 por um
trio encabeçado pelo general Jorge Rafael Videla, atualmente na cadeia,
sentenciado a diversas penas de prisão perpétua. O trio se completava com
Orlando Agosti (Aeronáutica) e o chefe máximo da Marinha, o almirante Emilio
Massera, na juventude simpatizante da mesma Guardia de Hierro da
extrema-direita peronista e conhecido de Bergoglio. Massera, já morto, chegou a
ser condecorado, no auge do horror, pela Universidad del Salvador, da ordem
jesuíta.
O novo papa nunca foi acusado de apoiar, como outros clérigos, os voos
da morte, quando prisioneiros eram retirados de campos de concentração e
cárceres clandestinos, levados para aviões e lançados vivos nas águas do
Atlântico, ou do Rio da Prata, ou do Rio Paraná. Documentos revelam que a
cúpula católica considerava esse o meio mais humano ou menos desumano de matar,
pois os prisioneiros não percebiam seu destino, já que eram dopados antes de
ser jogados dos aviões.
Daí a sustentar desconhecimento sobre os fatos é outra história. Sobre o
roubo sistemático de bebês nascidos em cárceres clandestinos, cujas mães eram
mortas antes de eles serem doados, Bergoglio afirmou num tribunal ter tomado
conhecimento da barbárie recentemente. Não é verdade. Familiares de presos
políticos contam ter procurado em vão por apoio do jesuíta nos momentos mais
sombrios da ditadura.
Há mais sombras em seu passado e em seu presente. Ao
assumir a presidência da Conferência Episcopal Argentina, em 2005, poderia ter
determinado punições previstas no direito canônico, e não fez nada. Videla não
foi excomungado. Ao contrário, continua, no quartel do Campo de Mayo, onde
cumpre pena, a receber a hóstia sagrada dos católicos. Christian Von Wernich,
capelão condenado à prisão por ter acompanhado, cúmplice, sessões de tortura,
continua a realizar missas no presídio de Marcos Paz, onde está recolhido.
Bergoglio não permitiu, quando cardeal de Buenos
Aires, o acesso da Justiça aos arquivos do Episcopado. Mais: negou que nos
arquivos houvesse qualquer documento relacionado aos sequestros e assassinatos
de militantes políticos, religiosos ou não. Quando a Justiça finalmente
conseguiu acesso aos arquivos, constatou justamente o contrário: havia
documentos, e muitos.
Estava claramente registrado como a ditadura reprimiu duramente,
ferozmente, os religiosos ligados aos movimentos populares. Dois bispos foram
assassinados, Enrique Angelelli e Carlos Ponce de León. Até hoje Bergoglio se
refere a suas “mortes”. Jamais pronunciou a palavra “assassinatos”, embora,
segundo a Justiça, esse seja o tema mais apropriado.
Para fazer mais sombra e trazer mais
névoa, existe ainda a suspeita, forte suspeita, de que Bergoglio, quando era o
principal líder dos jesuítas, entregou dois padres da congregação.
Em depoimentos, altos dirigentes da Igreja Católica admitem que logo
após o golpe de 1976 houve um acordo não formalizado com os militares. Antes de
prender um sacerdote ou freira, as Forças Armadas avisariam o bispo
responsável. Aconteceu justamente o contrário no caso dos jesuítas Orlando
Yorio e Francisco Jalics. Depois de sugerir aos dois para abandonar o trabalho
de caridade em favelas vizinhas do Bairro de Flores, em Buenos Aires, Bergoglio
avisou à Marinha que havia retirado a proteção a ambos. Tecnicamente, retirou
suas “licenças”, uma espécie de luz verde para a ação militar.
Em junho de 1976, Yorio e Jalics foram sequestrados, levados à Escola
Superior de Mecânica da Armada (Esma), o maior campo de concentração
clandestino da ditadura, onde foram torturados em infindáveis
interrogatórios. Seis meses depois, Bergoglio, superior
jesuíta, pediu pela libertação dos sacerdotes. Cuidou, porém, de instruir as
paróquias a não aceitá-los. Jalics, de origem húngara, ao sair da prisão foi
para a Alemanha, no fim de 1976. Três anos depois, tentou renovar seu
passaporte argentino. Para tanto, assegurou seu desinteresse em retornar ao
país. O diretor de Culto Católico do Ministério de Relações Exteriores, Anselmo
Orcoven, recusou a renovação e acrescentou uma observação: “O próprio padre
Bergoglio escreveu uma nota com especial recomendação de que o pedido não seja
atendido”.
Tudo isso, e muito mais, está documentado. Eis um dos tantos problemas
das ditaduras, por mais sanguinárias e bárbaras: sempre alguém guarda algum
documento. E anos ou décadas depois esse documento acaba por aparecer.
O papa realmente não atuou intensamente
ao lado dos ditadores. Tentou ajudar alguns perseguidos, chegou a abrigar na
igreja gente que se sentia ameaçada, aceitou esconder livros considerados
perigosos. Mas também é verdadeira a avareza de sua solidariedade. Vários
sacerdotes jesuítas, além de Yorio e Jalics, carregam até hoje a angustiosa
certeza de terem sido, se não diretamente denunciados, “facilitados” pelo seu
superior até cair nas garras da repressão mais brutal.
Seja como for, Jorge Mario Bergoglio já não existe. Quem existe agora é
Francisco. Começa outra história, surgem outras perguntas. Como será seu
papado? Seu forte discurso a favor dos pobres, dos excluídos, irá ao encontro
das posturas de diversos governos da América Latina, ou servirá de instrumento
de pressão política, num gesto de apropriação do discurso progressista? Alguém
se atreveria a ignorar o forte, fortíssimo peso da opinião do Vaticano sobre as
políticas aplicadas na região?
Na Argentina, por exemplo, os conflitos do cardeal com os governos de
Néstor Kirchner primeiro, e de sua viúva e sucessora Cristina Kirchner, são tão
sérios como evidentes. Extremamente conservador na doutrina e nas decisões do
-Vaticano em tudo relacionado ao casamento entre cidadãos do mesmo sexo, ao
aborto, aos métodos de prevenção da gravidez, o então cardeal de Buenos Aires
não perdeu oportunidade para criticar o governo. Quando não havia oportunidade,
ele soube criar.
Os dois Kirchner, Néstor primeiro e
Cristina depois, responderam no mesmo tom beligerante. As relações entre o
governo e a cúpula eclesiástica se deterioraram rapidamente. É de se esperar
gestos e movimentos de boa vontade dos dois lados. Cristina Kirchner sabe não
ser nada interessante, ainda mais num ano de cruciais eleições legislativas,
estender o conflito. O papa, claro, sabe que a presidente sabe disso, da mesma
forma que maior será sua influência política se conseguir se mostrar menos
crispado em sua relação com ela.
A questão política, porém, não se limita ao país natal do papa. Pode-se
dar como certo o firme apoio dos grandes meios hegemônicos de comunicação a
qualquer gesto papal que confronte os governos de esquerda e de centro-esquerda
da América Latina.
Em países onde a oposição navega qual nau sem rumo, como o Brasil, ou
onde a polarização se faz mais aguda, como na Venezuela e, aliás, na própria
Argentina, Francisco poderá se tornar bússola e farol.
Convém jamais esquecer que o Vaticano, a Igreja Católica, não se limita
a ser uma doutrina, uma fé. É, principalmente, um forte poder político e
econômico. Que sempre soube agir, forte e determinadamente, na defesa do
interesse muito mais da tradição e da propriedade do que dos pobres e
desvalidos. Esses ficam nos discursos da alta cúpula religiosa, ou entregues
aos cuidados sempre limitados e pressionados, por essa mesma cúpula, das
correntes minoritárias e progressistas do catolicismo.
Em seus tempos de cardeal, Bergoglio era considerado extremamente
habilidoso. Melhor, habilidosíssimo. Foi um aliado eficiente e contundente dos
barões do agronegócio na Argentina, da oposição mais rançosa, enquanto mantinha
um discurso aberto às grandes causas sociais.
Saberá se manter nesse frágil equilíbrio? Saberá levar às ruas um
discurso cristão, enquanto nos bastidores luta para sanar os pecados do
Vaticano para que nada mude e as tradições e interesses de sempre, por mais
anacrônicos, se preservem?"
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