terça-feira, 27 de março de 2012

PARTIDO SOCIALISTA - para uma metamorfose necessária

1. Não duvido que, subjetivamente, a direcção do PS queira fazer o melhor, em prol dos portugueses, liderando os socialistas. Mas se olharmos para as marcas quotidianas da sua atuação, não podemos deixar de ver nelas uma presença demasiado forte das rotinas habituais da vida política. Os seus rostos mediaticamente mais visíveis desdobram-se em pequenas farpas verbais contra o governo, exteriorizam algumas indignações civilizadas, deixando transparecer uma generosidade social merecedora de aplauso, cercando o atual governo de direita de uma justa teia de preocupação e alarme, pelo que ele é, pelo que ele faz, pelo que o seu fundamentalismo ideológico primário o pode levar a fazer de ainda pior. Mas parecem não conseguir evitar ser arrastados pelo rio de desgraça que se apossou das sociedades atuais.

Batem-se com autenticidade para que os atuais sofrimentos se não agravem, mas parecem não saber como lhes arrancar as raízes. Conseguem assumir-se como barragem contra a desgraça, mas não mostraram ainda a bandeira da esperança. De facto, o problema central está no risco que correm as sociedades onde o capitalismo é dominante de só escaparem duravelmente da desgraça se atingirem um mínimo de concretização as esperanças estruturais dos cidadãos. Pode pois dizer-se com justiça que o PS está envolvido com os portugueses na tempestade, determinado a ajudá-los a suportá-la, mas não tem dado sinais convincentes de estar determinado e preparado para realmente a extinguir, extirpando-lhe as raízes.

Ora, se a fraternidade imediata é um imperativo ético da nossa identidade socialista, extirpar as raízes da tempestade (ou se quisermos, da crise) é um imperativo político da nossa identidade socialista. Se falharmos definitivamente neste último desafio, acabaremos por esmorecer no primeiro. E é preciso ter consciência de que o ataque às raízes da tempestade, incorporando naturalmente o impulso da energia colhida nas pequenas escaramuças do teatro político, exige muito mais do que isso.

Muito mais. E não julguem que estou a pensar em qualquer ferocidade verbal polvilhada de insultos, ou em visões apocalíticas do futuro, que arrasassem os portugueses com um furacão de pessimismo. Muito menos penso que nos devamos exibir como anjos de virtude que mansamente se ofereçam para depositar paraísos no regaço cansado dos aflitos, para que vendo-nos eles tão puros fiquem certos de que o diabo se apossou dos nossos adversários. Nada disso. Precisamos realmente de ser incisivos, mas sem nunca sermos primários ou simplistas, temos que separar as águas sem sermos maniqueístas, temos que ser convincentes sem sermos sectários. Precisamos pois de nos emocionarmos racionalmente, sem permitirmos que a nossa justa indignação se dissipe sem consequências. Precisamos de agir, fortes da nossa razão, sabendo que é da condição humana poder não a ter por completo.
2. É neste contexto que, entre os múltiplos aspetos da ação política dos socialistas que merecem ser cuidados, vou mencionar um e analisar outro.

Aquele que vai ser agora apenas mencionado, sem deixar de continuar a exigir no imediato aprofundamento e estudo, é a construção de uma mensagem política clara que evidencie que nós não nos revemos no capitalismo como sendo um sistema que traduza os nossos valores e que materialize os nossos princípios; e que, não sendo o capitalismo eterno, aspiramos a projetar no horizonte pós-capitalista os nossos valores, materializando os nossos princípios, propondo-nos contribuir para uma saída do capitalismo tão rápida e tão pouco dolorosa quanto possível. Encaramos esse processo como um aperfeiçoamento continuado da democracia, o que implica uma opção reformista de transformação social, um processo sempre democrático, necessariamente prolongado, mas sem estagnação.

Por isso, o facto de um partido socialista estar no governo numa sociedade capitalista não pode confundir-se, de modo nenhum, com a implantação do socialismo. Apenas significa que esse governo tem uma tarefa política de gestão administrativa dos mecanismos económico-sociais vigentes, o que deve fazer respeitando o essencial da sua própria identidade histórica, à qual deve acrescentar o início ou a continuação de uma trajetória de transformação social. Essas tarefas (e mais acirradamente a segunda) enfrentam uma resistência irredutível de todas as forças políticas, económicas, culturais e sociais que protagonizam a vontade de perpetuar o capitalismo, sua razão de ser.

Daí resulta, no imediato, que o Partido Socialista, sendo naturalmente responsável pelas consequências e sequelas dos erros técnicos, administrativos, económicos e políticos, que possa ter cometido, enquanto governo, não pode deixar-se responsabilizar pelas sequelas de qualquer natureza que resultem do capitalismo em si próprio. Enquanto isto não for claro para todos aqueles que se identificam política e socialmente com o PS e para todos aqueles que são estruturalmente vítimas do tipo de sociedade atual, o PS arrisca-se a ser acusado, não só pelos erros que os seus Governos realmente cometam, mas também por todas as consequências sociais e económicas negativas inerentes à subsistência do capitalismo, assim encaradas também como se fossem consequência de erros seus. E enquanto isso acontecer, a sua base social será permanentemente confundida, instabilizada e diminuída, com forte corrosão das condições de êxito da sua atividade política.

3. Um outro problema vivido atualmente pelo PS tem a ver com a necessidade crescente de se modernizar profundamente, quer organizativa, quer estruturalmente. Os sinais dados pelo processo de alteração dos estatutos atualmente em curso não são de modo a descansar-nos por completo. De facto, mesmo sem fugirem por completo a uma agenda de mudança, eles parecem indiciar que pode não se ir muito além de simples modificações superficiais.

E, no entanto, parece cada vez mais essencial que se suscite uma verdadeira metamorfose política do partido no seu todo, de modo a que ele possa agir com eficácia como um partido de transformação social, tão consistentemente que possa contaminar com essa novidade auspiciosa todo o Partido Socialista Europeu (PSE). Essa metamorfose necessária só pode ser fruto de um longo processo, mas retardar o seu início é uma negligência arriscada e perigosa.

3.1.De facto, o PS precisa de assumir um novo modelo de inserção no tecido social, que tenha maior amplitude, maior profundidade e maior sistematicidade. Na verdade, a própria crise estrutural do capitalismo exige dele a abertura de um novo espaço de intervenção direta na sociedade, que, pelo menos, o implique por completo na economia social e que reflita uma atitude não predatória nem antropocêntrica, quanto ao planeta de que fazemos parte.

3.2. O PS precisa de instituir na sua vida interna, quer enquanto coletivo de militantes, quer enquanto conjunto de eleitores que lhe são fieis, uma nova convivialidade adequada à criação de condições conducentes a formas de solidariedade organizada no interior do seu espaço político.

3.3 . O PS precisa de transformar a sua maneira de viver a política num ato de cultura, libertando-a estruturalmente do risco de qualquer instrumentalização por estratégias de aproveitamento pessoal.
Para isso, precisa de ser um foco de informação política, objetiva, atualizada e completa, fornecendo sobre o país, a Europa e o mundo uma informação completa, que escape ao império invisível do pensamento único segregado pelo sistema mediático dominante no mundo atual.
Precisa também de inscrever na sua vida como organização a habitualidade de debates, concebidos para romperem o mais possível com a dualidade ouvinte/orador, sistemáticos, balizados por objetivos claros e geradores de conclusões que possam ser tidas em conta nas posições assumidas pelo partido.

3.4. Os principais órgãos políticos não executivos do PS, pelo menos e desde já no plano nacional, têm que ter um trabalho coletivo organizado e permanente, deixando de ser apenas foros de discussão, ocasionalmente deliberativos, vivendo de protagonistas individuais cooptados para essas instâncias por razões mediáticas ou por lógicas de aparelho. Têm que fazer jus realmente à sua qualidade, estatutariamente consagrada, de direção política colegial coletivamente responsável. Tem por isso de se fazer com que sejam seus membros os militantes realmente habilitados a assumir tais responsabilidades.

4. Para se desencadear um processo de transformação do PS que possa conduzir realmente à metamorfose necessária, os primeiros passos têm que ser irreversíveis, sob pena de poderem ficar objetivamente reduzidos a uma vistosa maneira de ser ficar parado. Como ilustração do início do trajeto que temos que percorrer escolho três exemplos entre os mais urgentes e mais estruturantes.
4.1.Eleições Primárias
O primeiro é o que corresponde à necessidade de serem escolhidos em primárias abertas todos os candidatos apoiados pelo PS nas eleições presidenciais, legislativas, autárquicas e europeias. O âmbito do universo eleitoral corresponderia à natureza de cada tipo de eleição. Seriam admitidos como participantes em qualquer eleição primária, não só os militantes do PS, mas também os seus simpatizantes (nos termos estatutários atuais), aqueles que, tendo sido candidatos independentes em qualquer lista do PS, não tenham posteriormente aderido a outro partido ou participado como independentes em listas eleitorais de outro partido e ainda aqueles que formalmente se declarassem eleitores habituais do PS, assumindo-se como politicamente identificados com ele, desde que não estejam inscritos noutro partido.
Garantido, com base nestes parâmetros, o princípio das primárias, haveria que, no respeito pela respetiva lógica, definir um processo político adequado para a legitimação dos pré-candidatos às primárias, radicado nos órgãos do partido. Esse processo poderia assumir uma diversificação de regras, em paralelo com a diversidade dos tipos de eleição. O modo como vários partidos irmãos, que já seguem esta via, têm resolvido essa questão poderia ser uma boa ajuda.

Dentro do PS, vários militantes (entre os quais me incluo), há uns bons dez anos que defendem este caminho. Desde então, vários têm sido os partidos socialistas que têm vindo a optar por eleições primárias. Na própria direita se prometem passos nesse sentido, como se viu no recente Congresso do PSD. A evolução sociopolítica tem vindo a tornar inevitável o que antes parecia um objetivo distante e secundário. Hoje, pretender envolver o PS mais profundamente no tecido social sem que este passo seja dado, parece absurdo ou imprudente. Na verdade, é muito ingénuo pensar-se que os movimentos e os ativistas sociais podem aceitar conjugar-se com o PS, se recearem que este as encare como simples instrumentos; mas é realista esperar-se que, quem se sinta envolvido nas decisões políticas relevantes de um partido de que está próximo, se disponha a cooperar habitualmente com ele, com toda a naturalidade.
Por tudo isto, introduzir as primárias nos estatutos numa versão tímida, de quem pareça querer salvaguardar o máximo do passado embrulhando-o com uma aparência de futuro, pode ser uma fonte de desprestígio político e simbólico que ninguém deve aceitar de ânimo leve.

4.2.Democracia interna
É hoje uma evidência, publicamente revelada por diversos casos mediáticos , em diferentes estruturas do PS, que as regras atuais, por que se regem as eleições internas para os órgãos do partido, são insuficientes para garantir o reconhecimento da sua qualidade democrática por todos os intervenientes.
Ora, sem um claro reforço dessa qualidade que torne objetivamente impossíveis as distorções que geraram as controvérsias públicas conhecidas, algumas das quais dirimidas ou me vias de o serem nos tribunais, a opção pelas primárias é uma aventura imprudente. Efetivamente, se é certo que o questionamento público justificado, quanto à decência das eleições internas no PS, nada tem de politicamente positivo, se incidisse nas eleições primárias poderia ter efeitos políticos devastadores.
Nessa medida, as eleições internas têm que ser rodeadas de, pelo menos, garantias idênticas às que asseguram a transparência e a equidade das eleições para os órgãos do Estado.

Por exemplo, todas as candidaturas têm que ser tratadas em absoluto pé de igualdade pelos órgãos do PS; não podem consentir-se financiamentos externos para cobrir as respetivas despesas, nem o recurso a fundos pessoais do candidatos, pelo que todas as candidaturas têm que ser financiadas pelo partido, em pé de igualdade. Não pode também ser admitida qualquer publicidade externa que não resulte de notícias, dadas sem contrapartidas. Devem ser fixadas sanções efetivas de aplicação rápida contra qualquer possível falcatrua de natureza eleitoral ou contra qualquer tipo de pressão ilegítima para condicionar o sentido de voto dos militantes.

Se nada for feito pelo PS neste campo, as primárias podem transformar-se numa aventura e a imagem externa do partido corre o risco de ser prejudicada, cada vez mais fortemente, por uma sucessão de alegadas fraudes eleitorais desencadeadores de processos judicias.
4.3.A política fora dos negócios, os negócios fora da política.
O PS não conseguiu escapar incólume dos salpicos de alguns escândalos financeiros que atravessaram o mundo da política. Por isso, é preciso reconquistar um brilho até certo ponto perdido. Para isso, é indispensável instituir uma ampla rede de incompatibilidades, justa e preventiva, que previna e evite conflitos de interesses. É decisivo impor a obrigação de declaração de interesses aos titulares dos órgãos mais importantes do PS, especialmente aos de natureza executiva. É ainda muito importante fixar sanções significativas e aplicá-las sem contemplações. Há, finalmente, que instituir um novo tipo de jurisdição interna no PS, tecnicamente crível e eticamente acima de qualquer suspeita.
4.4. Sublinhe-se que estas medidas devem ser tomadas com decisão, conjuntamente e de uma só vez, sob pena de verem comprometida a sua eficácia e de verem o seu eco público positivo muito atenuado.

2 comentários:

antonio miguel disse...

Completamente de acordo.
Ou se dá a metamorfose ou desapareceremos desse estado que por aí se vai espalhando cinzento e e violento para o Povo.
Mas manteremos as convicções do livre pensamento, da solidariedade e da justiça.
Para onde caminhamos?
O que fazer?

Anónimo disse...

Seria tão bom...Mas o passado fala mais que o presente...
Considero a sua opinião excelente para quem saiu há trinta e tal anos de uma ditadura...E no entanto com aquilo que vem nos jornais sobre as diretas e indiretas do Partido Socialista não auro boa coisa se não a sequência desse mesmo passado que não foi passadiço.
Com respeito pela sua opinião formada.
De "O Catraio"