Uma boa parte das tragédias históricas, duramente escritas com sangue, tiveram nas suas raízes anátemas ou preconceitos, que envolveram povos inteiros. Mas dentro desses povos, seguramente, (e pelo menos) uma boa parte nada fez para que existissem os motivos ou os pretextos que estiveram na base desses anátemas e dessas guerras. Porém, os vendavais não têm reconhecido os culpados.
Assim, um inestimável mérito da construção europeia foi o de ter diminuído drasticamente essas crispações, tantas vezes agudizadas por repetidas guerras, entre os povos que se envolveram nelas.
Nos dias que correm, a vozearia ideológica dominante nos centros de poder europeus tem falado muito numa alegada ligeireza dos europeus do sul, marcados por um hedonismo desbragado que teria levado a Europa às agonias da crise. Essa lenda, que pareceu casar-se minimamente com os factos num primeiro tempo, logo se afastou deles e mais se vai afastando, a cada dia que passa.
Os europeus do sul podem ter sido escolhidos como primeiro alvo por serem relativamente mais fracos no plano económico, mas não por terem infringido, grosseira e injustificadamente, as regras da arte e o consenso europeu. Os europeus do sul, como humanos que são, nem sempre terão seguido os caminhos mais certos, mas não foram os seus erros próprios o que mais contribuiu para as dificuldades que vivem, hoje. Na verdade, é de meridiana evidência que, se há uma força propulsora da crise vivida na Europa, ela está na incapacidade política das lideranças europeias e, em particular, no egoísmo nacionalista dos países mais poderosos, com especial destaque para a Alemanha.
É precisamente isto que torna mais grave a sucessão de atitudes de dirigentes políticos alemães que têm reflectido um dramático regresso a um tempo de preconceitos intra-europeus, em que os povos se combatiam cegamente numa espiral perversa. Para os alemães, os europeus do Sul, e muito particularmente os gregos, são gente de terceira classe, indolente e pouco confiável, sofregamente, à espera do seu ouro.
Ora, acontece que esses povos do sul, e por exemplo os gregos, sofreram, não há muitas décadas, uma brutal e devastadora agressão de invasores alemães. Por isso, se virmos bem, eticamente, talvez os alemães devam aos gregos muito mais do que aquilo que agora regateiam emprestar-lhe.
É claro, que qualquer cidadão do mundo minimamente esclarecido, seja ele ou não europeu do sul ou do norte, nunca deixará esvair-se na sombra do nazismo a inestimável claridade da cultura alemã, dos seus filósofos, dos seus músicos, dos seus escritores. Por mais que os ofendam, com a sua pequenez, os actuais políticos alemães, os expoentes maiores dessa cultura irão sempre ao nosso lado como irmãos e como guias.
Mas os actuais “panzers” da política menor, com seu insalubre hálito de uma usura estreita, têm que que perceber em que vespeiro estão a cutucar, quais os fantasmas que podem despertar, quais os demónios a que estão a abrir uma porta tão custosamente fechada. E bastaria que se lembrassem do que, não há muito tempo, aconteceu aquando da reunificação alemã. Apesar dos graves problemas que ela podia suscitar, no plano económico também, mas principalmente no delicado plano das relações de força dentro da União Europeia, os parceiros da Alemanha souberam acolher sem egoísmo a novidade. Compreenderam bem o que estava em jogo, simbólica e historicamente, tendo tratado a questão com fraternidade, mesmo sabendo o que havia de estruturalmente imprevisível na nova situação. Por isso, se agora a Alemanha fosse generosa não estaria, ainda assim, a ir além da reciprocidade.
Para mais, ao contrário do que possa parecer, para uma média potência mundial sem espaço de irradiação linguística, sem território, sem população que a possam puxar mais para cima, a força da Alemanha só pode firmar-se, diluindo-se subtilmente numa Europa, onde objectivamente pesará sempre muito. Em contrapartida, será essa Europa a não resistir a uma recaída imperial da Alemanha, mesmo que ela se processe pelas melífluas vias de um economicismo neoliberal.
Não resistirá. No entanto, se a Alemanha dispuser de suficiente inteligência política nas suas lideranças , talvez perceba que a generosidade e uma demonstração inequívoca de não querer ser mais do que um povo entre muitos, são um caminho seguro para uma proeminência natural e bem acolhida numa Europa fraterna. É, por isso, que o paroquialismo político da direita alemã, actualmente no poder, correndo o risco de ser fatal par a Europa a curto prazo, trará um enorme prejuízo para a Alemanha, a médio e longo prazo.
Aliás, a vida política oferece amiúde factos inesperados que são verdadeiros artefactos de uma saborosa ironia. É que, foi em pleno festival de menosprezo pelos europeus do sul, coloridamente soprado pelos ventos de Berlim, que o Presidente da República da Alemanha se viu obrigado a demitir-se por um potencial pecado, bem menos recomendável do que os que são imputados aos hedonistas do sul. Pensem, por um momento, no que diria a Srª Merkl, e os seus pretorianos teutões, se o Presidente da República da Grécia se tivesse demitido por um motivo idêntico. Isto, para já não falar nos ascéticos mercados… Pelo contrário, os “bárbaros” do sul tiveram a elegância de quanto a isso não dizer nada.
Enfim, não bastará que a Alemanha se emende e que o Partido Popular Europeu se recorde, ainda que vagamente, da sua raiz cristã, para que o sol nasça de novo na Europa, mas sem que pelo menos isso ocorra, corremos o risco de cair numa espécie de inóspita terra de ninguém, donde não será fácil sair.
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