Há depois um problema de efectivação dessa equidade: aonde está o repartidor imparcial de sacrifícios ?
Há depois outros problemas. Primeiro, o modo de medir os sacrifícios, que permitirá apurar se eles realmente são repartidos com equidade, pode ser um método estruturalmente viciado pelo modo como encara a realidade. Portanto, mesmo quando ele indicar que tudo está equilibrado, devemos ver bem, se ele em si próprio não estará de facto a beneficiciar uns e prejudicar outros, pelo uso de uma medida objectivamente distorcedora. É preciso, por isso, dede logo ter-se a certeza, à partida, de que se encontrou um critério de medida justo. Sem isso, não é possível ter sequer a noção do que seja uma equidade autêntica.
Em segundo lugar, um pequeno sacrifício, pedido a quem vive uma vida já difícil, é sempre um acréscimo de sofrimento, subjectivamente muito doloroso. Um imenso sacrifício, aferido objectivamente pelo volume das prestações, que seja exigido a quem vive na abundância, não representa qualquer sofrimento subjectivo para essas pessoas.
Em terceiro lugar, há uma hipocrisia profunda na atitude dos que aceitam, como única possível, uma sociedade que produz o empobrecimento dos pobres e o enriquecimento dos ricos, ou seja, uma sociedade essencialmente iníqua, mas que, ao mesmo tempo, põem os olhos em alvo, propugnando a sua sede de equidade e de justiça, alardeando medidas que sufocam os já sufocados e que, beliscando ao de leve os privilégios dos poderosos, fazem disso um argumento legitimador de todos os sofrimentos que causem nos outros.
Por isso, o essencial não é uma cosmética de pseudo-equidade, para dar uma aparência de realidade à mistificação do "todos unidos para salvar o Portugal". O essencial está em apontar um caminho de saída ( e querer percorrê-lo) desta fábrica de desigualdades e de injustiça que é o tipo de sociedade actual. A imperfeição injusta, com que necessariamente temos que enfrentar as crises actuais, seja a menor possível, não pode continuar a reproduzir-se, de crise em crise, até à implosão final.
Sejamos, pois, tão justos quanto possível, no imediato, sem escondermos que o máximo de justiça possível, no curto prazo, envolverá sempre um peso acrescido de sofrimento para os mais fracos e mais pobres. Mas mostremos determinação na luta por uma nova sociedade, em que a justiça estrutural seja uma realidade. Não confundamos a necessidade de sobrevivência de um sistema de desigualdade estrutural entre o capital e o trabalho (com subaltermidade deste), com a necessidade de sobrevivência digna de todos os cidadãos que são Portugal.
E, desde já, comecemos por sair da armadilha ideológica onde se finge um justicialismo absoluto na parificação dos subalternos, como preço para se poderem garantir os privilégios estruturais dos dominantes. Por exemplo, fazendo cruzadas contra todas as disparidades entre os rendimentos, que possam ser ou parecer salários, mas esquecendo que há muita gente que vive de lucros (de lucros bem mais chorudos do que os altos salários) que, afinal, bem vistas as coisas, são fruto, no essencial e principalmente, do trabalho de muitos emuitos que vivem bem pior.
Não há sociedades parcialmente justas, há sociedades justas ou injustas. Por isso, é indispensável olhar com desconfiança para muitos dos discursos tonitroantes que arrasam o presente, já que eles oferecem muitas vezes para o futuro novas raízes das dificuldades que hoje estamos a enfrentar.
Atravessamos um tempo de hipocrisia. Ouvem-se, cada vez mais, maviosos cantos de sereias; mas não nos iludamos, muitos deles apenas ocultam a sofreguidão melíflua das hienas.
[ Este texto foi modificado, sem alteração do seu sentido geral, às 22 h e 15 m, do dia 11 de Junho de 2010]
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