quarta-feira, 30 de junho de 2010

Contracapa da Vértice - 32


Vértice - nº 305 - Fevereiro de 1969


"O medo é o mais ignorante, o mais injusto e o mais cruel dos conselheiros".


Edmund Burke

terça-feira, 29 de junho de 2010

Contracapa da Vértice - 31


Vértice nº 199 - Abril de 1960

"Desgraçado daquele estado em que o homem tem a certeza de não ser algum dia mais do que é hoje".
Padre António Vieira

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Amigos, no dia inicial



A fotografia chegou-me de repente às mãos, por um daqueles acasos felizes que ocorrem de quando em quando. A memória ajudou-me. Na voragem luminosa do próprio dia 25 de Abril um pequeno grupo saiu de Coimbra, rumo ao cerne dos acontecimentos: António Leitão Marques, Alfredo Soveral Martins, Mário Vale Lima e Francisco Carrilho. Já em Lisboa na festa da multidão encontraram o Décio Sousa e o meu irmão, o Luís Namorado, jovens médicos a reiniciarem o serviço militar.

O Leitão Marques levava uma incumbência simbólica, mas transcendente: fotografar acontecimentos para o “Jornal” da Vértice. A memória não consegue desfazer uma dúvida: o Mário Vale Lima já estava em Lisboa ou foi de Coimbra naquele dia.


Mas olhemos para a fotografia. O fotógrafo de ocasião, seguindo as instruções do Leitão Marques, não faz parte da história. São quatro os personagens que sorrindo para nós num primeiro plano, nos interpelam. Do lado esquerdo de quem olha para a fotografia, o Leitão Marques tem a mão no ombro do Décio Sousa; à direita de quem olha para a fotografia, do lado de fora, o José Augusto Gil e o Luís Namorado, mais para dentro, sorriem. Ao centro, imediatamente acima, ao lado de uma jovem que não entra nesta história, já empoleirado no carro de combate, de óculos, o Alfredo Soveral Martins brinda-nos com um sorriso de quem descobriu a raiz da alegria. Curvado sobre ele, com seu farto cabelo e sua abundante barba, o Francisco Carrilho está em festa. Imediatamente abaixo, bem escanhoado, espreitando, por cima da cabeça da jovem que não entra na história, o Mário Vale Lima respira também o novo tempo.


Olho para os sete e neles antevejo um segredo de eterna juventude. E através da saudade, tão pesada, pelos que já partiram, o Soveral e o Gil, através da fraternidade, simples e natural, que envolve os outros, descubro que, também eu, estive um pouco com eles naquele dia inicial, naquele euforia fundadora que rejuvenesceu irremediavelmente as vidas de todos nós.

Barómetro do CESOP- eleições em Portugal

O Barómetro, feito pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica Portuguesa (CESOP) para o JN, DN, RTP e Antena 1, revela um resultado em linha com as últimas sondagens, mas com algumas diferenças visíveis.
Pela primeira vez neste Barómetro, desde 2002, o PSD é o partido que recolhe um maior número de intenções de voto, 37%. Isso representa uma subida de 4% relativamente ao anterior, divulgado em Março passado. O PS fica em segundo lugar com 34%, perdendo 7% desde o Barómetro anterior. O BE estagna num patamar modesto: 6%. O CDS passa de 10% para 6%, em três meses, acontecendo o inverso com a CDU ao subir de 6% para 10%. Mas a direita em conjunto, mantém-se nos 43 % de Março passado, enquanto PS+CDU+BE atingem os 50%, descendo 3 % desde a sondagem anterior.
Assim, a direita provavelmente não chegaria à maioria absoluta, nem juntando os deputados do PSD com os do CDS. O PS sózinho ficaria ainda mais longe de uma maioria absoluta que lhe permitisse formar governo sem excessiva incerteza.

domingo, 27 de junho de 2010

Foi à lã, acabou tosquiado...



1. Um dos ideólogos de pena ligeira da nossa direita, que, aliás, tem transportado melancolicamente pela vida aquilo que alguns psicólogos políticos consideram ser a amargura ( ou a angústia) do renegado, com o nome civil de Vasco Correia Guedes, mas que usa o nome de Vasco Pulido Valente, em homenagem ao seu avô materno, resolveu arrasar, de uma vez por todas José Saramago, aproveitando-se do facto definitivo da sua morte.

Fazendo jus ao seu enormíssimo ego, que levou a que fosse voz corrente nos idos dos anos 60 nos meios estudantis de Lisboa que o referido Vasco se considerava a si próprio, modestamente, como o mais inteligente da Europa, o referido académico reduziu implacavelmente o nosso Prémio Nobel a uma sombra quase banal.


2. Com a devida vénia, recolhamos na blogosfera do colega O MacGuffin o referido texto de VPV, publicado no Público de hoje:
“Ainda Saramago"

O prémio Nobel não garante a importância literária de ninguém. Basta ver a longa lista de mediocridades que o receberam. Pior ainda, o prémio Nobel é atribuído muitas vezes por razões de nacionalidade ou pura política, sem relação alguma com a obra, que num determinado ano a Academia Sueca resolveu escolher. Que Saramago fosse o único escritor de língua portuguesa a receber essa mais do que duvidosa distinção não o acrescenta em nada, nem acrescenta em nada a língua portuguesa. Só a patriotice indígena (de resto, interessada) a pode levar a sério e protestar agora indignadamente porque o Presidente da República se recusou a ir ao enterro do homem. Por mais que se diga, e até que se berre, Saramago não era uma glória nacional indiscutida e universalmente venerada.Pelo contrário, desde sempre que viveu do escândalo e da polémica. Devoto do Partido Comunista e ateu militante, não lhe custou muito. E Sousa Lara, com ignorância contumaz da nossa direita, acabou por lhe dar uma grande ajuda. O Evangelho segundo Jesus Cristo, qualquer que seja o seu mérito literário (e, para mim, é pouco), não passa de um repositório de lugares-comuns sobre o Cristianismo (alguns dos quais do século III), que não revela sombra de pensamento original e só pode perturbar um analfabeto. Para defender a sua fé, ao que parece acrisolada, Sousa Lara teria feito melhor em proibir A Relíquia e O Mandarim, dois livros de facto subversivos, que justamente não incomodaram a burguesia de uma época em que o Catolicismo era a religião de Estado.De qualquer maneira, a fama de incréu beneficiou Saramago. Como também a fama de comunista, adquirida no DN em artigos que suavam ódio e, dia a dia, pediam violência e, mais tarde, num ou noutro romance em que mitificou o povo à boa maneira neo-realista. Mas nem essa fidelidade à esquerda e ao PC merece muita consideração. Ele, que denunciava tão depressa tanta gente, nunca condenou a sério os crimes sem nome (e sem número) do "socialismo real" e, no fim da vida, gostava de se apresentar como um campeão dos direitos do homem, um exercício para que obviamente lhe faltava toda a autoridade. Apesar disso, o Estado democrático, manifestamente impressionado com o Nobel, não o tratou mal. Instalada na Casa dos Bicos, mesmo no centro da Lisboa antiga, a Fundação Saramago é homenagem bastante.”


O texto de Vasco Graça Moura sobre Saramago, publicado recentemente no DN, dá a resposta que pudesse ser considerada necessária a este mesquinho amontoado de palavras de VPV. Mostra como se pode continuar fiel a si próprio e ao mesmo tempo ser-se generoso e objectivo, no reconhecimento do mérito de quem esteja política e ideologicamente muito longe de nós. Como aí afirma VGM: " Devo dizer que fui amigo dele e prezo grande parte da sua obra, sem subscrever, como é evidente, as suas posições ideológicas e políticas. Isso nunca me impediu de tentar compreendê-lo, nem de admirá-lo naquilo que penso ser a parte mais válida do que escreveu."


3. Naturalmente, que quem usa a acidez implacável dos seus maus fígados, para julgar os outros do alto de um pedestal imaginário, onde só ele a si próprio se colocou, sujeita-se que acabe por aparecer quem use, para lhe desenhar o perfil, o mesmo estilete implacável com que VPV tão frequentemente disseca os seus alvos.

Foi o que hoje aconteceu no blog Politeia, quando o J.M. Correia Pinto escreveu um texto intitulado "A MEDIOCRIDADE NACIONAL", tendo como sub-título "O DESPEITO". Eis o texto que, mais uma vez com a devida vénia, aqui transcrevo:


"Filho infeliz pela atenção que a mãe dedicava a Álvaro, estudante medíocre, escritor falhado, sem norte na vida, ruma a Inglaterra como súbdito do Império na esperança de obter um grau académico concedido pelas tradicionais facilidades com que as metrópoles tratam os ex-colonos.Alcançado o objectivo, juntamente com centenas de outros oriundos da África, Pacífico e Caraíbas, regressa à Pátria para colher as vantagens do 25 de Abril. Tenta a televisão. É ridicularizado por Salgado Zenha num programa sobre o divórcio. Incapaz de se exprimir oralmente, procura emprego nos jornais. Simultaneamente ascende à categoria de professor por via administrativa.Traindo as tradições familiares, liga-se à direita que o aproveita como “idiota útil”. Não há notícia da sua passagem pelo Parlamento, nem pelo Governo, embora tenha lá estado. Escreve umas historietas sobre factos passados, a que a grande intelectual Manuela Moura Guedes chama história com h grande.Desacreditado intelectualmente e muito debilitado pela exposição pública que Mónica fez das suas fragilidades, vinga-se em Saramago num acesso vesgo de despeito e inveja.É esta a nossa direita!"


4. Pode haver quem ache que esta não é única narrativa possível sobre a vida e obra de VPV, e até pode alegar-se que dela transparece alguma antipatia quanto à figura central da narrativa, mas certamente que ninguém poderá objectivamente achá-la mais áspera do que as narrativas que o azougado ideólogo conservador faz, quando escreve acerca dos outros.

E uma coisa eu posso assegurar ao Correia Pinto: se o César de Oliveira ainda estivesse entre nós já lhe teria exprimido exuberantemente o seu entusiástico aplauso pelo texto.

Contracapa da Vértice - 30


Vértice nº 223/224- Abril/Maio de 1960

"Não se pode dizer que existe a esperança, mas também não se pode dizer que não existe. É como os caminhos que atravessam a terra: porque, na realidade, a princípio a terra não tem caminhos que a atravessem, só quando muitos homens caminham na mesma direcção é que se vai delineando o caminho."

Lu Sin

sábado, 26 de junho de 2010

Contracapa da Vértice - 29


Vértice nº 206/207- Novembro/Dezembro de 1960


"Não faças o mal e o mal não existirá"

Tolstoi

Está aí alguém ?


A sondagem difundida hoje (26/07/2010) pelo Diário Económico, pela qual foi responsável a Marktest acentua dramaticamente uma tendência nas intenções de voto dos portugueses que outras sondagens , em graus diferentes , vinham anunciando há já algum tempo. Apesar de existir um grande número de indecisos, o que aconselha alguma prudência na interpretação do significado dos números revelados, ignorar a novidade que reflectem, em face de sondagens anteriores, é puro autismo político.


O PSD atinge 47.7% (há um mês 43,9%); o PS desce até aos 24,1 % (antes 27,6 %); o BE sobe até aos 8,9% (antes 7,7 %); o CDS fica-se pelos 6,9% (antes 7,5); e a CDU desce a 6% (antes 7,1 %). Isto significa que o PSD+ o CDS têm agora 54,6% (há um mês tinham 51,6%); o PS+ o BE+ a CDU têm 39% (há um mês tinham 42,4%).

Se nos lembrarmos que das eleições de Setembro de 2009, o drama acentua-se. O PS então com 36,56% desceu 12,4%; o PSD então com 29,09% subiu 18,6%; o CDS então com 10,46 % desceu 3,3 %; o BE então com 9,85 % desceu 0,9%; a CDU então 7,88 % desceu 1,7 %. Portanto, desde Setembro passado o PSD + o CDS subiram de 39,5 % para 54,6 %, enquanto o PS+ o BE+ a CDU desceram de 54,9% para 39%.

Para além de uma inversão completa da relação de forças entre a esquerda e a direita no seu todo, estes números mostram que todos os outros partidos, em maior ou menor grau, perderam para o PSD, embora o PS seja, de longe, o partido mais atingido. Assim, consolida-se a demonstração prática de que, independentemente das intenções de cada um dos partidos da oposição, o resultado prático da sua estratégia de conjugação de esforços no ataque ao PS e ao governo actual, foi apenas vantajosa para o PSD. Tudo se passou como se os outros partidos da oposição fossem instrumentos úteis para o PSD.

No meio de todo o seu tradicional fogo-de-artifício, o CDS não deixa de estar politicamente entalado. Mas é o conjunto do BE com a CDU que parece estar num beco estratégico, uma vez que passando em conjunto de 17,73% para 14,9%, em nada beneficiou, em termos de um possível aumento do seu peso eleitoral, com a enorme queda do PS. Pelo contrário, em 9 meses, perdeu 15% do seu eleitorado de Setembro de 2009.


Tudo isto mostra que a direita, no seu todo, acompanhando a deriva europeia, parece ir de vento em popa, enquanto as esquerdas, no seu todo, parecem definhar.


Seria estulto pensar-se que os partidos de esquerda poderiam, de repente, passar por uma metamorfose virtuosa que os fizesse convergir uns com os outros. Mas será suicida que, nenhum deles actue para reverter esta situação, para modificar radicalmente o modo como se têm relacionado entre si.

É certo que também podem continuar, nesse aspecto, pelo caminho que têm vindo a percorrer, procurando o BE e o PCP diabolizar o PS, identificando-o repetitivamente com a direita, e sublinhando o PS a cumplicidade de todas as oposições e as diferenças programáticas que o separam dos outros partidos de esquerda. Mas, seguramente, que, se isso acontecer, as condições para um próximo desastre político continuarão a ser reforçadas. E se o desastre acabar por acontecer, de nada adiantará depois que os vários partidos da esquerda continuem a debater entre si qual deles é o mais culpado da catástrofe que já tenha ocorrido.


Não se trata de reconhecer acertos ou erros, nem de dar razão a uns ou a outros. Trata-se de dialogar sem condições, cada um respeitando as posições dos outros, para se apurar se é possível fazer alguma coisa, para impedir que a direita portuguesa regresse ao poder, pela mão da esquerda unida na sua crónica desunião.


Ou será que teremos de gritar para as direcções dos vários partidos de esquerda: “Está aí alguém ?”

terça-feira, 22 de junho de 2010

Cataventice ou puro oportunismo ?


1. Em textos de crítica à candidatura presidencial de Fernando Nobre, publicados neste blog, aludi à opção monárquica do candidato, por ele ocultada na sua identificação politico-ideológica que tornou pública. Apoiei-me no facto de ele ser o Presidente da Assembleia Geral do Instituto da Democracia Portuguesa, entidade directamente ligada à Causa Real, que "tem como Presidente de Honra, S.A.R. o Duque de Bragança, Senhor Dom Duarte", de acordo com informação disponível no próprio site da Causa Real. Actualmente, foi acrescentado nesse local que o referido candidato tem o seu mandato suspenso, o que mostra estarmos perante uma informação actual e actualizada.
Mais recentemente, em declarações prestadas ao DN, Fernando Nobre afirmou-se como republicano. Há uns dias atrás, no decurso de uma conversa com um cooperativista meu amigo, foi-me dito que ele próprio tinha ouvido, há cerca de dois anos atrás, num colóquio sobre economia social realizado em Cascais, Fernando Nobre afirmar-se publicamente como monárquico. Perante tais incongruências fiz uma breve pesquisa na internet, para procurar informações num ou noutro sentido.

2. Rapidamente, encontrei, no blog “Realistas – portugueses de corpo e alma” [http://www.realistas.orgr/bio.html],informação relevante. Realmente, é aí mencionado um pequeno número de monárquicos ilustres, entre os quais se inclui o nome de Fernando Nobre.

Por outro lado, no blog Esquerda Republicana numa postagem de 7 de Junho de 2010, sob o título “A pirueta de Fernando Nobre”, pode ler-se o seguinte texto:
"Fernando Nobre, quando lançou a sua candidatura, foi assinalado como monárquico. Numa entrevista de Fevereiro, respondeu:«Era monárquico? Pertenci há uns anos à Causa Real. Já não pertence e já não é monárquico? Sou simpatizante.»
Passam-se três meses e a resposta é esta:«É monárquico ou republicano? Não sou monárquico, sou republicano. É uma inverdade, acho isso espantoso. Pelo que me foi dito, ainda na última entrevista, o dr. Manuel Alegre salientou que até tinha apoios de monárquicos. Ninguém se lembra de perguntar ao dr. Manuel Alegre se ele é monárquico ou republicano. Eu sou português, sou respeitador de nove séculos, quase, da História de Portugal. Estou nesta candidatura para unir todos os portugueses, o que passa por unir os republicanos, os monárquicos, os imigrantes naturalizados, todos. Porque acredito que na fase em que o nosso país está não é o momento de ostracizar seja quem for. Nós precisamos de nos unir. Eu estou aqui enquanto candidato à chefia da Nação portuguesa. Posso dizer que não sou monárquico mas que respeito integralmente nove séculos da História de Portugal e que sou amigo do senhor D. Duarte, como sou amigo do Adriano Moreira, como sou amigo…»Enfim. Qual é o verdadeiro Fernando Nobre? "

3. Estes tópicos, no seu todo, mostram claramente que, quando o candidato em questão se afirmou, em declarações à comunicação social, como republicano, ou estava a anunciar uma mudança de opção (renegando a sua velha opção monárquica) ou estava a mentir. Ora, deve sublinhar-se que nas suas declarações ele nunca se apresentou como um republicano que tivesse deixado de ser monárquico. Pelo contrário, escamoteou a sua opção monárquica, talvez, por achar que ela prejudicaria a imagem política de si próprio que queria construir.

Uma tal ocultação da verdade, por parte de um candidato à Presidência da República, mereceria sempre uma forte censura ética. Mas quando essa ocultação é praticada por alguém que se apresenta como uma espécie de cidadão perfeito, muito superior aos toscos e suspeitos aglomerados partidários, melifluamente apontados como os grandes culpados de todas as dificuldades vividas pelo nosso país, estamos perante um verdadeiro embuste. Um embuste com uma enorme carga de desonestidade intelectual e política.


Quanto à possibilidade de Fernando Nobre ser monárquico e ser candidato a Presidente da República, nada há a objectar. No entanto, esconder a sua opção monárquica, renegando publicamente as suas convicções, por mero calculismo eleitoralista, representa um aleijão irremediável no perfil etico-político de qualquer candidato presidencial.


E é esse aleijão que torna legítimo pensar-se que a sua imensa e bem conhecida versatilidade política, que o levou, num período de pouco mais de seis meses, ao longo de 2009, a apoiar, primeiro, o BE e depois, em simultâneo, candidatos autárquicos do PSD e do PS, é um fenómeno mais perverso e censurável do que aquilo que sugerem as simples aparências.

Na verdade, tudo isso faz com que seja legítimo pensar-se que Fernando Nobre, apenas foi tão versátil na referida distribuição de apoios, por julgar que isso lhe convinha na perspectiva da candidatura presidencial que actualmente protagoniza. Ter-se-ia, assim, tratado, neste último surto de apoios, muito mais de cultivar boas vontades, encorajadoras de futuros apoios de que pensava vir a precisar, do que uma convicta "cataventice" política.

Mas, pense-se o que se pensar desta possível interpretação da multiplicidade de opções acima mencionada, do que parece não haver dúvida é que o candidato presidencial Fernando Nobre se assumia há muito publicamente como monárquico, só tendo descoberto o seu "republicanismo" , quando lhe pareceu que isso seria positivo na perspectiva de uma candidatura presidencial que, embora estruturalmente ambígua, não podia correr o risco de uma completa inverosimelhança da sua procurada tonalidade de esquerda.

Estamos pois, aparentemente, perante um embuste político friamente premeditado, que no essencial se traduz na tentativa, levada a cabo por uma personalidade claramente radicada na direita do espectro político, de se fazer passar por alguém impregnado pelos valores e pelas grandes opções estruturantes da esquerda.

Como acontece com quase todos os " grandes salvadores", eis-nos perante alguém que afinal precisa de ser salvo.

É por tudo isso que é para mim um mistério, cada vez mais denso, que ainda haja quem, considerando-se a si próprio de esquerda, se deixe envolver numa tão descarada mistificação.

sábado, 19 de junho de 2010

DILMA ROUSSEF - entrevista

No jornal espanhol El País de 19/06/10, vem publicada uma entrevista com DILMA ROUSSEFF, candidata à Presidência do Brasil, apoiada pelo Presidente Lula, bem como pelo seu próprio partido o PT (Partido dos Trabalhadores) , e ainda pelo PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), pelo PSB ( Partido Socialista Brasileiro), PDT ( Partido Democrático Trabalhista) e PC do B (Partido Comunista do Brasil). A entrevista, feita em Madrid por FERNANDO GUALDONI, é uma ilustração elucidativa do pensamento político da candidata, pelo que me pareceu útil divulgá-la. O título que a encabeça é sugestivo: "El éxito de Lula también es el mío", sendo precedida por um pequeno texto contextualizador e identificador da candidata.


Dilma Rousseff (Belo Horizonte, 1947) está ante el mayor desafío de su vida, convertirse en la primera mujer que gobierne Brasil. Es la protegida del presidente Lula da Silva y él no ha dudado nunca en que ella debía ser su sucesora en el cargo a pesar de que la actual ministra de la Casa Civil (jefa de Gabinete) jamás compitió en las urnas por un cargo público. Lula no titubeó ni cuando se alzaron algunas voces dentro del Partido de los Trabajadores (PT) en contra de la candidatura de Rousseff -no es una baronesa del partido- ni cuando tuvo que ser operada el año pasado para extirparle un tumor linfático.
Arrastra Rousseff un pasado de militancia activa y de lucha contra la dictadura que vivió Brasil entre 1964 y 1985. La candidata del PT estuvo involucrada directamente en la lucha armada contra los militares hasta que en 1970 fue detenida y enviada tres años a una prisión, donde sufrió torturas. Era conocida como la Juana de Arco del movimiento guerrillero Vanguardia Armada Revolucionaria Palmares, uno de los más importantes de la época. Ya a finales de los años setenta contrajo matrimonio con otro integrante de la guerrilla, Carlos Franklin Paixão de Araújo, con quien tuvo su única hija y se estableció en Rio Grande do Sul. Allí se graduó en Ciencias Económicas en 1977 y allí empezó su carrera política, primero en el Partido Democrático Laborista y, desde 1999, en el PT.
En Madrid estuvo ayer apenas unas horas. Y para ser quién es, no es baladí destacar que llegó con una comitiva modesta y se hospedó en un hotel también modesto. Tiene fama de dura, pero eso es imposible de confirmar en una sola entrevista. Sí se puede decir que es enérgica, que parece muy segura de sí misma, y que no le gusta que le interrumpan.


Pregunta. ¿Si gana, seguirá el modelo político de Lula?


Respuesta. Voy a continuar el modelo de Lula pero con corazón y alma de mujer. No para repetir, sino para progresar. Para mí la mujer tiene una gran capacidad de cuidar y, al mismo tiempo, de estimular. Por supuesto que el hombre también puede ser cuidadoso, pero la mirada femenina es distinta. El programa de asistencia Bolsa Familia [las familias reciben dinero a cambio de que los niños vayan a la escuela y se vacunen], por ejemplo, lo gestiona la madre. En primer lugar, porque ella tiene un papel clave en la cohesión de la familia. Y en segundo porque... ¿Acaso usted conoce a una madre que si le dan dinero no lo destine al bienestar de sus hijos? Difícil ¿No? En Brasil, una de las mayores tareas pendientes es la recomposición de los lazos. Con mejorar la situación económica no basta, también hay que reconstruir la familia porque es clave para mejorar la educación, para combatir la delincuencia... En definitiva, para crecer como sociedad. Esta recomposición de los lazos familiares debe colocarse en el centro de la agenda política. Y no es tarea para un mandato, sino de muchos años de trabajo... En Brasil, privilegiar a la mujer no es una política de género, es una política social. El 30% de las familias brasileñas están encabezadas por mujeres. El 52% de la población somos mujeres, y el 48% restante son nuestros hijos. No se trata de crear un matriarcado, sino de darle a la mujer la importancia que tiene para la estructura familiar. Lula tiene mucha sensibilidad con este tema, él fue criado por una mujer fuerte.


P. ¿No teme que la sombra de Lula perjudique su carrera?


R.
Soy la ministra de la Casa Civil. Soy quien coordina los ministros y los principales proyectos de gobierno. He trabajado íntimamente con el presidente Lula los últimos cinco años y medio. Su éxito es el mío. He sido su brazo derecho e izquierdo. Él no será ministro si yo llego al Gobierno, pero siempre estaré abierta a sus propuestas. Tenemos una relación muy fuerte.


P. Esta es la primera vez que opta a un cargo electo ¿Cómo se siente? ¿Cómo está su salud?


R. La presión es la misma que cuando se está dentro del Gobierno, quizá incluso menor, porque cuando se gobierna hay que dar respuestas todos los días. El proceso electoral es distinto... Hay discusiones, debates, viajes... Pero me permite estar más cerca de la gente. Y el pueblo brasileño es muy alegre, muy sentido... Me gusta mucho, la verdad. Y de salud me siento muy bien.


P. ¿Si gobierna, cómo conjugará las políticas de crecimiento económico con la protección del medio ambiente?


R. En Brasil, el 87% de la energía eléctrica procede de las plantas hidroeléctricas, es decir, que es renovable. Añadido a esto, la energía eólica está aumentando significativamente. Nuestro parque automovilístico, por otra parte, utiliza el etanol, un combustible que no es fósil. Si usted me pregunta si hay que talar árboles para producir más caña de azúcar, le digo que no. Brasil tiene una de las tecnologías agrícolas más importantes del mundo y las investigaciones para producir más en menos territorio avanzan. No es cierto que haga falta más tierra para producir más. Lo que se necesita es una mejor tecnología para aprovechar mejor los terrenos de cultivo. Esto es lo que hacemos en Brasil. Y permítame decirle que la Amazonia no solo está protegida por ley, sino que además no es un terreno fértil para el cultivo.


P. ¿Cuáles serían las principales diferencias de su modelo con el que propone José Serra?


R. La diferencia más importante es que sabemos cómo construir las condiciones para el crecimiento sostenible. Crecemos al mismo tiempo que distribuimos la riqueza. En Brasil hoy hay movilidad social, la gente sabe que mañana estará mejor. 24 millones de brasileños han dejado atrás la pobreza y otros 31 millones han escalado socialmente. Pero queda mucho por hacer, aún hay 50 millones de personas que cobran por debajo del salario mínimo. Tenemos que invertir mucho en la educación de calidad, porque eso nos permitirá estimular el empleo formal. Este año serán creados dos millones de empleos de este tipo.


P. ¿Cuáles serán las líneas maestras de su política exterior?
R.
Brasil siempre ha tenido una política externa enfocada en pocos países. Los grandes logros de estos últimos años han sido el avance del multilateralismo y que el país ha tomado conciencia de su importancia dentro de América Latina. Nos manejamos con respeto y sin injerencias en políticas internas. No somos imperialistas. Impulsamos la cooperación entre los países, no políticas de imposición. No podemos ser ricos rodeados de pobres, por eso el impulso a las infraestructuras regionales es vital para nosotros. Es muy importante también la relación con África y con los BRICS (Rusia, India, China y Sudáfrica). Irán tiene derecho a desarrollar un programa nuclear para uso civil, y someter el programa con la mayor transparencia al control de los organismos internacionales es la mejor política. Pero no creo que este conflicto deba resolverse con sanciones, sino con diálogo. Hay que construir puertas, no levantar muros.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Homenagem a José Saramago

No blog O Caderno de Saramago, foi postado pela Fundação José Saramago, com a data de hoje, 18 de Junho de 2010, o pequeno texto que transcrevo a seguir, intitulado "Pensar, pensar", com a indicação de que foi extraído de uma entrevista publicada na revista do Expresso, em 11 de Outubro de 2008:


"Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma. "

Prestemos homenagem ao grande escritor, hoje desaparecido, aceitando este texto como um dos seus testamentos políticos. Mas, aceitando-o de facto. Isto é, pensando.

sábado, 12 de junho de 2010

As sondagens como aviso

A infografia acima transcrita do semanário Expresso traduz os números de uma recente análise de intenções de voto da responsabilidade da Eurosondagem. Por aí se vê que o PSD atinge 0s 34,9% contra os 34,8% do PS. O CDS fica com 10,1 %, o BE com 7,7 e o PCP com 7,5 %. Se tivermos em conta apenas estes cinco partidos, não se compreende muito bem à custa de quem tem vindo a subir o PSD. De facto, parece que ele subiu mais do que a soma das descidas dos outros. Talvez isso possa dever-se aos pequenos partidos.

Mas a infografia mostra também a evolução das intenções de voto, desde Novembro passado. Há uma quebra suave mas continuada, do PS, uma subida do PSD, em aceleração nos últimos três meses; e ligeiras descidas dos outros três partidos.

É visível também o relativo êxito da nova liderança do PSD e o aproveitamento concentrado neste partido do desgaste relativo sofrido pelo PS. Tudo linear e de certo modo espelhando a percepção pública do que se passa. Duas observações a fazer, todavia.

Primeiro, a vantagem do PSD é de apenas uma décima, o que reflecte os limites da sua subida e a apreciável resistência do PS. É curioso, aliás, recordar como no ano passado, quando, havendo sondagens que davam entre 1,5% e 2% de vantagem ao PS, alguma comunicação social falava em empate técnico. No entanto, esses mesmos órgãos de comunicação social esqueceram-se por completo da história do empate técnico, quando se trata agora de sublinhar a facto de o PSD ter ficado à frente do PS pela diferença de 0,1 %.

Segundo, tendo havido nos últimos meses uma acção convergente de todas as oposições numa furiosa contestação do Governo e do PS, verifica-se que, sendo o alarido anti-PS feito por todos, dele só colhe frutos o PSD. Assim, estando embora o BE e o PCP motivados na sua hostilidade ao PS por razões muitas vezes distintas das que movem a direita, a verdade é que é esta quem parece ter tirado todo o proveito do esforço do BE e do PCP. Na verdade, a soma dos votos do PSD e do CDS, fazendo -se fé na sondagem, permitiria muito provavelmente uma maioria parlamentar de direita.

À semelhança de algumas outras sondagens, o PS é mais uma vez avisado, o PSD ainda não foi entronizado e ao BE e ao PCP é dada uma nova oportunidade para reflectirem sobre o risco de verem todo o seu trabalho político transformado na abertura de uma estrada, por onde passe a direita a caminho do poder.

Os partidos que forem capazes de analisar com racionalidade todos os sinais que têm vindo a ser dados, ficarão com boas possibilidades de reverterem o que lhes for desfavorável ou de acelerarem o que lhes for favorável. Os que insistirem na simples mastigação das suas rotinas actuais arriscam-se; e arriscam-se muito.

Eleições na Holanda


As recentes eleições parlamentares na Holanda abriram o caminho do poder a um partido liberal conservador ( 31 deputados) que há décadas não liderava nenhum governo. Os trabalhistas da Internacional Socialista, participantes secundários do governo cessante, ficaram em segundo lugar com menos um deputado (30), mas não deixaram de perder três lugares, relativamente ao seu fraco resultado anterior. De facto, o resultado agora obtido só foi negativamente superado uma vez desde 1946. Os democratas-cristãos que lideravam o governo cessante desceram de 41 para 20 lugares, tendo tido o seu pior resultado de sempre, desde que existem com a actual configuração, desde 1977, tendo descido do 1º para o 4º lugar. Mas, em terceiro lugar, com 24 deputados, ficou um partido de direita radical o Partido da Liberdade (PVV), que antes tivera apenas 9.


Mas o desaire relativo dos trabalhistas não foi aproveitado pelo Partido Socialista (um partido defensor de um socialismo democrático, à esquerda dos trabalhistas) que, pelo contrário, teve um resultado ainda pior, tendo recuado nove lugares, ao descer de 25 para 16 deputados. Em seguida, os Democratas 66 (defensores de um liberalismo social) tal como a Esquerda Verde ficam com 10 deputados cada um, o que significa que ambos subiram, já que antes o primeiro tinha 3 deputados e o segundo tinha 7. Assim, se estes quatro partidos se juntassem, ficariam com 66 deputados, longe dos 76 que precisariam de ter, para chegarem a uma maioria absoluta, já que o Parlamento Holandês (câmara baixa) tem 150 deputados [o Senado tem 75 senadores]. E no entanto, em 1998, embora com pesos relativos diferente [as maiores diferenças: trabalhistas – 45; socialistas -5], os mesmos quatro partidos haviam chegado aos 75 lugares.


Há dúvidas quanto ao tipo de coligação que vai surgir com base na nova relação de forças, embora sempre com o partido vencedor como eixo, sendo embora possível que se incline mais para a esquerda ou mais para a direita.


Tudo isso mostra como é evidente, fica claro que, também na Holanda, a Internacional Socialista continua a murchar. E contra o que antes acontecera não foram os socialistas de esquerda que ganharam com isso: pelo contrário, recuaram ainda mais do que os trabalhistas. E os grandes beneficiários da derrota estrondosa dos democratas-cristãos foram os liberais conservadores e a extrema-direita.
Para quando a declaração da Internacional Socialista e do Partido Socialista Europeu como tendo caído num estado de calamidade política? De facto, sem isso, pode recear-- se que os partidos nacionais desta família política não consigam sacudir o torpor que parece envolvê-los, de modo a que, em simbiose com um novo protagonismo do povo europeu de esquerda, consigam reverter o declínio que parece tê-los atingido.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Sacrifícios, palavras e sereias

Os sacrifícios devem ser repartidos com equidade por todos. Quem não concorda ?

Há depois um problema de efectivação dessa equidade: aonde está o repartidor imparcial de sacrifícios ?

Há depois outros problemas. Primeiro, o modo de medir os sacrifícios, que permitirá apurar se eles realmente são repartidos com equidade, pode ser um método estruturalmente viciado pelo modo como encara a realidade. Portanto, mesmo quando ele indicar que tudo está equilibrado, devemos ver bem, se ele em si próprio não estará de facto a beneficiciar uns e prejudicar outros, pelo uso de uma medida objectivamente distorcedora. É preciso, por isso, dede logo ter-se a certeza, à partida, de que se encontrou um critério de medida justo. Sem isso, não é possível ter sequer a noção do que seja uma equidade autêntica.

Em segundo lugar, um pequeno sacrifício, pedido a quem vive uma vida já difícil, é sempre um acréscimo de sofrimento, subjectivamente muito doloroso. Um imenso sacrifício, aferido objectivamente pelo volume das prestações, que seja exigido a quem vive na abundância, não representa qualquer sofrimento subjectivo para essas pessoas.

Em terceiro lugar, há uma hipocrisia profunda na atitude dos que aceitam, como única possível, uma sociedade que produz o empobrecimento dos pobres e o enriquecimento dos ricos, ou seja, uma sociedade essencialmente iníqua, mas que, ao mesmo tempo, põem os olhos em alvo, propugnando a sua sede de equidade e de justiça, alardeando medidas que sufocam os já sufocados e que, beliscando ao de leve os privilégios dos poderosos, fazem disso um argumento legitimador de todos os sofrimentos que causem nos outros.


Por isso, o essencial não é uma cosmética de pseudo-equidade, para dar uma aparência de realidade à mistificação do "todos unidos para salvar o Portugal". O essencial está em apontar um caminho de saída ( e querer percorrê-lo) desta fábrica de desigualdades e de injustiça que é o tipo de sociedade actual. A imperfeição injusta, com que necessariamente temos que enfrentar as crises actuais, seja a menor possível, não pode continuar a reproduzir-se, de crise em crise, até à implosão final.


Sejamos, pois, tão justos quanto possível, no imediato, sem escondermos que o máximo de justiça possível, no curto prazo, envolverá sempre um peso acrescido de sofrimento para os mais fracos e mais pobres. Mas mostremos determinação na luta por uma nova sociedade, em que a justiça estrutural seja uma realidade. Não confundamos a necessidade de sobrevivência de um sistema de desigualdade estrutural entre o capital e o trabalho (com subaltermidade deste), com a necessidade de sobrevivência digna de todos os cidadãos que são Portugal.
E, desde já, comecemos por sair da armadilha ideológica onde se finge um justicialismo absoluto na parificação dos subalternos, como preço para se poderem garantir os privilégios estruturais dos dominantes. Por exemplo, fazendo cruzadas contra todas as disparidades entre os rendimentos, que possam ser ou parecer salários, mas esquecendo que há muita gente que vive de lucros (de lucros bem mais chorudos do que os altos salários) que, afinal, bem vistas as coisas, são fruto, no essencial e principalmente, do trabalho de muitos emuitos que vivem bem pior.


Não há sociedades parcialmente justas, há sociedades justas ou injustas. Por isso, é indispensável olhar com desconfiança para muitos dos discursos tonitroantes que arrasam o presente, já que eles oferecem muitas vezes para o futuro novas raízes das dificuldades que hoje estamos a enfrentar.
Atravessamos um tempo de hipocrisia. Ouvem-se, cada vez mais, maviosos cantos de sereias; mas não nos iludamos, muitos deles apenas ocultam a sofreguidão melíflua das hienas.
[ Este texto foi modificado, sem alteração do seu sentido geral, às 22 h e 15 m, do dia 11 de Junho de 2010]

terça-feira, 8 de junho de 2010

Manoel de Barros : a surpresa enquanto poesia


Para mim, desde que há já uns bons anos o descobri, qualquer coisa que diga respeito ao poeta brasileiro Manoel de Barros é fonte de interesse. É como se estivéssemos sempre à beira de encontrar algo de poeticamente misterioso, de subtilmente inusitado e estimulante. A simplicidade dos seus versos é de uma complexidade sem fronteiras, mas reflecte muitas vezes o olhar livre de uma criança que se perdesse no abismo das coisas mais comuns. As palavras dos seus poemas misturam-se cúmplices com a natureza, como se crecessem entre as árvores ou deslizassem sensualmente pela superfície das pedras.


Por isso, quando numa das minhas peregrinações pela blogosfera deparei com um entrevista feita a Manoel de Barros, pelo jornalista Ubiratan Brasil e publicada no Estado de S.Paulo, em 4.11.2009, logo achei que a deveria divulgar aqui no blog, mesmo tendo passado já vários meses sobre a data da sua publicação. Ela foi um dos Bilhetes Poéticos, através dos quais o referido jornalista se tem dirigido aos seus leitores. Eis a entrevista:


Com uma caligrafia caprichada e uma letra miúda, o poeta Manoel de Barros prepara à mão um novo livro que promete ser sua obra-prima, coroando os quase 93 anos de tranquila trajetória
A vitalidade do poeta Manoel de Barros é invejável. Próximo dos 93 anos (completa em dezembro-[ portanto, já os completou]) e apesar das dificuldades auditivas e de visão, ele escreve mais um livro. O teor ainda é um mistério mas, segundo sua primeira e mais fiel leitora, a mulher Stella, trata-se de sua obra-prima. "Manoel escreve à mão, como de hábito, com uma caligrafia muito particular", comenta Pascoal Soto, diretor editorial do Grupo Leya do Brasil, que contratou a obra do poeta mato-grossense - serão 17 títulos e esse inédito, a partir do próximo ano. "Quando recebo correspondência do Manoel, minha pulsação aumenta: são os originais de uma poesia inigualável."
De fato, como há muito trabalha na edição da obra do poeta, Soto acumulou um verdadeiro tesouro de papéis rabiscados com uma letra miúda e linhas caprichadas. Uma linguagem artesanalmente construída, sem se ater a convenções gramaticais ou sociais, mas sempre em busca da simplicidade. Fazendeiro aposentado, Manoel de Barros tornou-se, com o passar dos anos, um cultor da palavra - leitor dos sermões do padre Vieira, hábito que o ensinou, ainda jovem, a admirar a formação e utilização das palavras, ele se habituou a consultar dicionários etimológicos quando criava seus versos simples mas recheado de encanto e fantasia.
O trabalho, atualmente, é mais moroso, visto o prejuízo físico provocado pela idade. Mas Manoel continua com a mente livre como a de uma criança, como mostra na seguinte entrevista, também concedida via bilhete.


O Manoel de Barros que surge da poesia não é o mesmo daquele pessoa física, em carne e osso. Quem é o verdadeiro Manoel de Barros?
Sim, somos dois. Um é biológico, outro é letral. Ambos somos verdadeiros. Um é de sangue. Outro é de palavras. O de sangue é comum: come, bebe água e até quebra copos. O ser letral gosta de fazer imagens pra confundir as palavras. E gosta de usar palavras pra destroncar as imagens. Tipo assim: eu vi um passarinho pousado no muro da tarde. As palavras servem para me enganar e para enganar os outros. Quem escreve sobre si mesmo procura sua própria glória, disse Cristo. Eu procuro. Não sei me pular.


O sentimento de pertencer a um mundo à parte faz bem ou mal aos escritores?
A mim só faz bem. Mas eu não fico em mundo à parte. Sou muito egoísta e narcisista. Meu mundo sou eu em carne e letras. Sou o que produzo e o que não consigo produzir. Sofro um pouco nessa parte de não poder produzir.


O senhor ainda considera seu primeiro livro, Poemas Concebidos Sem Pecado, o seu melhor? Por quê?
Penso que por ser o meu primogênito informei algum dia que o meu primeiro livro é o meu melhor livro. Acho que foi uma tirada de amor. Gosto do meu primeiro livro por que ele sabe mais da minha infância do que os outros.


A palavra está acima de tudo?
Eu tenho pela palavra a mesma fascinação que a lesma tem pelas pedras. E que os lagartos têm pela solidão das pedras.


As palavras são perigosas?
Pra mim todas são amáveis. Podem me trair, mas isso é do nosso mundo. A gente precisa se vigiar ao escrever. Não podemos, ao escrever, abandonar o canto, a harmonia letral, etc. Não podemos desprezar os gorjeios das palavras.


O senhor escreveu certa vez: "O artista é um erro da natureza." Existem erros perfeitos?
Os gênios são erros perfeitos da natureza. Botei como erro porque os outros somos nós.


O senhor sempre gostou de escrever à mão. A escrita é também aquilo com que se escreve?
Eu sou minha imaginação e meu lápis. Quando o lápis acerta um erro, ele percebe e grita por uma borracha. Visto que eu seja atrasado por não usar computador.

O escritor português António Lobo Antunes disse que sente dificuldade cada vez para escrever, pois ele teme desapontar os leitores que acreditam nele. O mesmo se passa com o senhor?
Acho normal que a gente queira aparecer como é.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Várias esquerdas, uma vontade


1. Na Comissão Nacional do Partido Socialista votei o apoio à candidatura do Manuel Alegre, tendo sido um dos participantes que expressamente interveio, defendendo essa posição. Nem talvez eu conseguisse, nem teria interesse reproduzir essa intervenção, mas talvez valha a pena indicar o sentido geral daquilo que disse.
Comecei por apoiar a proposta de José Sócrates e o modo como a apresentou e justificou. Foi uma proposta directa, simples e clara. A opção pela candidatura de Alegre baseou-se politicamente, no essencial, no facto de ela ser inequivocamente progressista, o que tornava natural que o PS com ela substancialmente se identificasse. Não se estava a escolher um candidato do PS. Estava a dar-se apoio, expresso e oficial, a um candidato que já existia.
Sem pôr em causa a sua independência, a sua vitória passava a ser um objectivo político central do PS. Sócrates deixou bem claro que o PS nunca poderia ter como opção a não escolha, ou seja, uma hipotética liberdade de voto, concedida aos seus militantes e apoiantes, que alguns opositores de Alegre tinham defendido. Foi também peremptório a garantir que o PS assumia a sua posição sem reserva mental e sem meias tintas. O que estava em causa era apoiar ou não um candidato, nunca uma opção de meias tintas. Propunha o apoio a Manuel Alegre; e fazendo-o, queria que o PS procurasse pesar nesse prato da balança com toda a sua força. No respeito pleno pela autonomia da candidatura e pela independência do candidato, procuraria fazer tudo para que Alegre fosse eleito.Foi esta atitude que eu e muitos outros apoiámos.
Sublinhei depois que a política não devia ser guiada por emoções. Devia pôr-se emoção na maneira racional de fazer política. Se eu me tivesse guiado por emoções, teria apoiado Manuel Alegre na eleição anterior, pois era amigo dele há décadas, não conhecendo então pessoalmente Mário Soares. Mas foi a este e não a Alegre que apoiei, por uma escolha racional que me pareceu certa e na qual pesou o que eu entendia ser nessa circunstância o interesse do PS, da esquerda e do país.
Por uma razão idêntica, apoio agora Manuel Alegre. Aliás, há alguns meses já que declarei publicamente esse apoio.Valorizei a escolha proposta, como uma das movimentações estratégicas necessárias ao PS (uma das movimentações, mas não a única), para não se deixar encurralar numa espécie de reduto simbólico, no qual apenas lhe fosse dado resistir. Ora, a resistência, mesmo que valente, não basta, por si só. Não será suficiente para sobrevivermos como força organizada, actuante e institucionalmente relevante, aos ferozes bombardeamentos políticos que, provavelmente, nos esperam num futuro próximo.
Depois de mais algumas breves considerações nesse registo, concluí sustentado a ideia de que, devendo-se sempre lutar para vencer, era importante combater-se bem, pois só assim se poderá pensar em ganhar. E se, mesmo combatendo-se bem, não se conseguisse ganhar, o efeito político obtido seria, seguramente, positivo para o PS, para a esquerda em geral e para o país.

2. Fazendo agora um comentário breve ao significado político da candidatura de Alegre, penso que a sua grande força estratégica está no facto de a sua independência não ser uma contrariedade que tenham que digerir as forças políticas que resolvam apoiá-la, mas pelo contrário algo que convém a essas forças. A sua força táctica está no facto de o candidato, ao ser ele próprio com plena autonomia, estar em consonância plena com aqueles que o apoiam.
É claro, que isto será tanto mais assim quanto Alegre consiga executar com plena eficácia uma orientação geral que valorize os grandes eixos de desenvolvimento de uma sociedade mais justa, no quadro de uma democracia em constante aperfeiçoamento, de modo a que no horizonte se perfile o fim dos pesadelos sociais que sobre eles hoje se abatem. Se ele conseguir fixar as grandes linhas de uma esperança progressista , congregando-as num desígnio nacional que prossiga na senda de Abril e se assuma como plenamente identificado com a nossa actual Constituição, fará tudo o que lhe compete e tornará possível que um leque diversificado de opções políticas dentro da esquerda , sem reserva mental, vejam na sua candidatura um passo muito importante para fazer sair os actuais humilhados, excluídos e desfavorecidos, do pesadelo para onde os arrastaram.
Não se espera que, nem o candidato, nem as forças que o apoiam, renunciem aos seus objectivos próprios ou às suas convicções, espera-se que ganhe solidez uma confluência natural de interesses políticos, uma ideia de complementaridade na diversidade, viradas para o futuro e para a construção de uma sociedade justa e livre.

sábado, 5 de junho de 2010

A transigência dos intransigentes


É muito estranho que aqueles que se insurgem contra as dissonâncias de Alegre, em face da linha dominante no PS, em conjunturas passadas, não hesitem agora, por si próprios, em fazer aquilo que consideram um pecado mortal quando cometido por ele.


De facto, quem pensar que outros têm um dever absoluto, de nunca estarem em contradição com a linha dominante de um partido a que pertençam, não é coerente consigo próprio se depois se autorizar a estar contra essa linha noutra circunstância. Por isso, os que se recusam a apoiar Alegre por causa de alegadas dissonâncias em face do PS, estão afinal agora a praticar aquilo que lhe censuram.


Isto para não falar num outro estranho esquecimento: sem o contributo político de Manuel Alegre teria sido praticamente impossível que tivéssemos reconquistado a Presidência da Câmara de Lisboa. E já agora recordem também a presença de Alegre, enormemente ovacionada no Comício de Coimbra das últimas legislativas. Enfim, memórias selectivas.


Mas se posso compreender a lógica de ressentimento que leva alguns socialistas a não apoiarem o candidato apoiado pelo PS, mesmo que de modo algum a partilhe ou ache razoável, já me parece verdadeiramente absurdo que algum socialista possa pensar sequer em apoiar um candidato politicamente oportunista como é o caso do Nobre, que ainda por cima é um protagonista de relevo na pequena legião reaccionária que segue o candidato miguelista ao inexistente trono português e já se revelou durante a campanha como um banal expoente da direita ideológica. Digo que é politicamente absurdo para não dizer que é civicamente vergonhoso para qualquer republicano, para qualquer socialista, que não seja politicamente tonto apoiar o tal Nobre.

Vou-me embora pra Pasárgada


Este é um poema emblemático, na obra do grande poeta brasileiro Manuel Bandeira [ Recife, 19 de abril de 1886Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968], a quem deste modo aqui se presta homenagem.


Vou-me embora pra Pasárgada



Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive


E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau de sebo
Tomarei banho de mar !
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada


Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar


E quando eu estiver mais triste
Mais triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
[Manuel Bandeira]

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Caprichos italianos

[Para aumentar a imagem, clique sobre ela.]
Foi recentemente difundida na imprensa italiana a sondagem que consta da imagem que acima se reproduz. Se através dela se verifica que a direita actualmente no poder, sob a liderança de Berlusconi, está em perda, não pode deixar de se estranhar que, desde as últimas legislativas em 2008, apenas tenha descido 2,5% (de 49,2 % para 46,7%), tendo em conta não só a crise geral a que a Itália não escapou, mas também os gravíssimos problemas políticos internos ocorridos dentro do PDL ( Partito della Libertá), entre Fini e Berlusconi. Em contrapartida, a esquerda no seu todo, nos mesmos dois anos, experimemtou o magro sucesso de uma subida de 1,3% ( de 41,7% para 43%). Por último, o sector centrista dos democrata-cristãos que se manteve fora dos dois grandes blocos experimentou uma ligeira progressão de 1,8% ( de 5,6% para 7,4%), o que, sendo pouco como imoulso superador da bipolarização, dada a relação de forças existente, pode ser suficiente para dar a este pequeno centro (UdC - Unione di Centro) a chave de uma futura estabilidade governativa.
Mas, se olharmos com um pouco mais de atenção para os dados da sondagem, podemos ver que, no seio da coligação liderada por Berlusconi, o seu próprio partido (PDL) desde 2008 desceu 4,2% (de 37,4% para 33,2%), mas a Liga Norte (ultra-direitista) subiu 3,8 % (8,3 % para 12,1%). Estas oscilações conjungadas alteraram profundamente a relação de forças interna no seio da coligação berlusconiana. Antes, o PDL valia mais do que quatro Ligas Norte, agora não chega a valer três. Algo de paralelo ocorreu na esquerda, o PD (Partido Democrático ) desceu 6,2% (de 33,2 % para 27%), enquanto a Lista Di Pietro (Itália dos Valores) subiu 3,7 % ( de 4,4% para 8,1%). O resto da esquerda, fragmentado em três blocos, passou no seu todo de 4,1 % nas eleições de 2008, para 7,9% na sondagem em causa. Também no seio deste segundo bloco político houve uma alteração relevante da relação de forças interna. O PD em 2008 equivalia, em termos de força eleitoral, a quase oito vezes a IdV, mas, de acordo com a sondagem actual, está longe de valer agora quatro vezes. O resto da esquerda continua perigosamente pulverizada.
Estes dados permitem antever grandes dificuldades para a direita italiana num previsível pós-berlusconianismo, mas revelam também que a criação do Partido Democrático, como movimento de afirmação de uma redinamização da esquerda italiana, foi uma opção falhada. A crescente crispação interna das facções, que no seu seio se degladiam entre si, não parece ser a melhor atmosfera para reverter esta situação. Aliás, olhando o quadro acima publicado, como ilustração de grandes tendências, é provável que nos próximos anos se desencadeiem novos terramotos políticos na Itália, quer à direita , quer à esquerda.
Num certo sentido, o trajecto que levou à criação do Partido Democrático foi o desenvolvimento lógico da terceira via britânica, com a qual aliás o sector hegemónico dos antigos Democratas de Esquerda se identificava. Parece claro que, também aqui, a terceira via se tem revelado como um caminho cinzento para o vazio.

terça-feira, 1 de junho de 2010

O Papa deveria renunciar

Na revista brasileira de grande circulação Isto é , o pensador e teólogo Leonardo Boff concedeu uma importante entrevista à jornalista Débora Crivellaro, sobre o Papa Bento XVI do qual foi aluno e mais tarde colega. O título dado ao texto é incisivo: "O Papa deveria renunciar". A entrevista é precedia de um pequeno comentário introdutório, no qual se diz:


" O brasileiro Leonardo Boff, 71 anos, e o alemão Joseph Ratzinger, 83, têm uma longa história em comum. Intelectuais de fôlego, respeitados fora dos muros da Igreja Católica, os teólogos se conhecem há mais de 40 anos, quando conviveram na universidade, em Munique, Alemanha. O atual pontífice já era um cultuado professor, admirado pelo jovem franciscano que frequentava como ouvinte suas conferências, enquanto preparava a tese de doutorado – que contou com a ajuda providencial do alemão para ser publicada. Tempos depois, os dois trabalharam juntos em uma prestigiosa revista de teologia. Durou pouco, pois as contendas ideológicas provocaram a saída de Ratzinger. Mas o encontro mais marcante aconteceu em 1985, quando ambos estavam, definitivamente, em trincheiras opostas, dentro da mesma instituição. Boff já era o grande mentor por trás da Teologia da Libertação, movimento que interpreta o Evangelho à luz das questões sociais. E Ratzinger já havia se tornado o temido cardeal que punia severamente quem se atrevesse a mudar, uma vírgula que fosse, a interpretação oficial da “Bíblia”. O embate terminou com o silêncio forçado do franciscano e sua posterior saída da ordem, em 1992. Vinte e cinco anos depois desse encontro, casado com Márcia Miranda, padrasto de seis filhos e autor de mais de 60 livros traduzidos para diversas línguas, Boff analisa a Igreja da qual nunca se afastou e seu líder máximo. Que ele conhece como poucos".


Isto é - A Igreja Católica está em crise?
Leonardo Boff - A Igreja possui uma crise própria: até hoje ela não encontrou seu lugar no mundo moderno e no mundo globalizado. Suas estruturas são medievais. Ela é a única monarquia absolutista do mundo, concentrando o poder em pouquíssimas mãos. Nesse sentido ela está em contradição com o sonho originário de Jesus que foi o de criar uma comunidade fraterna de iguais e sem nenhuma discriminação.


Isto é -
Mas a Igreja Católica pode se modernizar sem perder a essência de seus princípios e, consequentemente, sua identidade?

Leonardo Boff -
A Igreja se engessou em suas doutrinas, em suas normas, em seus ritos que poucos entendem e num direito canônico escrito para legitimar desigualdades e conservadorismos. Os homens de hoje têm o direito de receber a mensagem de Jesus na linguagem de nossa cultura moderna, coisa que a Igreja não faz. Ela coloca sob suspeita e até persegue quem tenta fazer.


Isto é - O que o sr. acha que a Igreja Católica deveria fazer para sair dessa crise?
Leonardo Boff - Ela deveria ser menos arrogante, deixando de se imaginar a exclusiva portadora dos meios de salvação, a única verdadeira. Ela se diz perita em humanidade, mas maltrata a muitos desta humanidade internamente e ofende a vários direitos humanos. Por isso que até hoje não subscreveu a Carta dos Direitos Humanos da ONU, sob o pretexto de que ela não faz nenhuma referência a Deus, e retirou seu apoio ao Unicef, porque ele aconselha o uso de preservativos para combater a Aids e fazer o planejamento familiar. Uma igreja que afirma constantemente que fora dela não há salvação, ela mesma precisa de salvação.

Isto é - O sr. acha que os escândalos de pedofilia contribuem para a debandada católica, com fiéis migrando, no Brasil, principalmente, para as igrejas evangélicas?

Leonardo Boff - Muitos cristãos não aceitam ser infantilizados pela Igreja como se nada soubessem e tivessem que receber a comida na boca. Estes estão emigrando em massa. Mas é uma emigração interna. Continuam se sentindo dentro da Igreja, mas não identificados com as doutrinas deste papa, nem com o estilo com o qual ela se apresenta no mundo, com hábitos e símbolos palacianos que os tornam simplesmente ridículos. As igrejas evangélicas crescem porque a católica deixou um espaço vazio.
Isto é - Muitos vaticanistas dizem que Bento XVI pensa em termos de séculos e não está preocupado em conquistar mais fiéis. O sr. concorda?

Leonardo Boff - Bento XVI é fiel a uma esdrúxula teologia que sempre defendeu e da qual eu ainda como estudante e ouvinte dele discordava. Ele é um especialista em Santo Agostinho, grande teólogo. Santo Agostinho partia do fato de que a humanidade é uma “massa condenada” pelo pecado original e pelos demais pecados. Cristo a redimiu. Criou um oásis onde só há salvação e graça. Esse oásis é a Igreja. Ocorre que esse oásis é uma fantasia. Ele é tão contaminado como qualquer ambiente, haja vista os pedófilos e outros escândalos financeiros.

Isto é - Como o sr. avalia o pontificado de Bento XVI?

Leonardo Boff - Do ponto de vista da fé, este papa é um flagelo. Ele fechou a Igreja de tal forma sobre si mesma que rompeu com mais de 50 anos de diálogo ecumênico, vive criticando a cultura moderna, desestimula qualquer pensamento criativo, mantendo-o sob suspeita. Todo papa tem a missão imposta por Jesus de “confirmar os irmãos e as irmãs na fé”. Esta missão, a meu ver, não está sendo cumprida.

Isto é - Por quê?

Leonardo Boff - Bento XVI cometeu vários erros de governo com respeito aos muçulmanos, aos judeus, às mulheres e às religiões do mundo. Reintroduziu o latim nas missas em que se reza ainda pela conversão dos judeus, reconciliou-se com os mais duros seguidores de Lefebvre (Marcel Lefebvre arcebispo católico ultraconservador, que morreu em 1991), verdadeiros cismáticos. Enquanto trata a nós teólogos da libertação a bastonadas, trata os conservadores com mão de pelica. É um papa que não suscita entusiasmo. Mesmo assim, convivemos com ele, porque a Igreja é mais que Bento XVI. É também o papa João XXIII, é dom Helder Câmara, é a Irmã Dulce, a Irmã Doroty Stang, é dom Pedro Casaldáliga e tantos e tantas.
Isto é - O sr. acha que ele deveria renunciar?

Leonardo Boff - O papa, para o bem dele e da Igreja, deveria renunciar. Devemos exercer a compaixão: ele é um homem doente, velho, com achaques próprios da idade e com dificuldades de administração, pois é mais professor que pastor. Em razão disso, faria bem se fosse para um convento rezar sua missa em latim, cantar seu canto gregoriano que tanto aprecia, rezar pela humanidade sofredora, especialmente pelas vítimas da pedofilia, e se preparar para o grande encontro com o Senhor da Igreja e da história. E pedir misericórdia divina.

Isto é - Como foi a convivência dos srs. no mesmo ambiente acadêmico?

Leonardo Boff - Ouvi-o muitas vezes, pois era um apreciado conferencista. Teve um papel importante na publicação de minha tese doutoral, que, por seu tamanho – mais de 500 páginas –, encontrava dificuldades junto às editoras. Ele encontrou uma, arranjou-me boa parte do dinheiro para a impressão em forma de livro. Depois fomos colegas nas reuniões anuais da revista internacional “Concilium”. Mas ele se desentendeu com a linha da revista e criou uma outra, a “Communio”, em franca oposição à “Concilium”.

Isto é - Anos depois, em 1985, já na Congregação para a Doutrina da Fé, ele o puniu. Como foi esse encontro?

Leonardo Boff - Ele me fez sentar na cadeira onde sentou Galileo Galilei, no famoso edifício, ao lado do Vaticano, do Santo Ofício e da antiga Santa Inquisição. Foi meu “inquisidor”, interrogando-me por mais de três horas sobre o livro “Igreja: Carisma e Poder”, que me custou o “silêncio obsequioso”, a deposição de cátedra e a proibição de publicar qualquer coisa. Mas devo dizer que é uma pessoa finíssima, extremamente elegante na relação, mas determinado em suas opiniões. E muito, mas muito, tímido.
Isto é - O sr. é a favor da ordenação de mulheres pela Igreja Católica?

Leonardo Boff - Não há nenhuma doutrina ou dogma que impeça as mulheres de serem ordenadas e até de serem bispos. O patriarcalismo intrínseco à instituição, governada só por homens e celibatários, faz com que não se tenha apreço pelas mulheres nem se reconheça o imenso trabalho que fazem dentro da Igreja. E, no entanto, devemos reconhecer que as mulheres, nos evangelhos, nunca traíram Jesus, como fez Pedro, foram as primeiras testemunhas do fato maior para a fé cristã, que é a ressurreição, e também foram discípulas.

Isto é - O sr. também é a favor do fim da obrigatoriedade do celibato?
Leonardo Boff - O primeiro papa, Pedro, era casado. Aceito o celibato livremente assumido pelos que se propõem a servir às comunidades cristãs. Seria tão enriquecedor para a própria Igreja se houvesse, como há em outras igrejas, padres casados e padres celibatários. Mas o celibato desempenha uma função importante no estilo autoritário da instituição: ela pode dispor totalmente dos celibatários, sem laços com a família, transferi-los para onde quiser e ver-se livre de problemas de herança.
Isto é - O sr. acha que os casos de pedofilia cometidos por padres têm relação com a obrigatoriedade da castidade?

Leonardo Boff - Entre a pedofilia e o celibato há um denominador comum que é a ­sexualidade. A educação sexual que os candidatos ao sacerdócio recebem é carregada de suspeitas e distorções e é feita longe do contato com as mulheres. Hoje sabemos que o homem amadurece sob o olhar da mulher e vice-versa. Quando se tolhe um desses polos da equação, pode surgir o recalque, a sublimação e as eventuais distorções. A pedofilia é uma distorção de uma educação sexual mal realizada. Ademais, a pedofilia é um pecado e um delito.

Isto é - O sr. pode explicar melhor?

Leonardo Boff - A Igreja só via o pecado que podia ser perdoado, e tudo terminava aí. Não via as vítimas, que eram crianças e adolescentes que sofreram violência. Ela não via o delito que deve ser levado aos tribunais para ser julgado e receber a punição adequada. Este lado sempre foi mantido em sigilo, para não prejudicar a imagem da Igreja. Isso configura cumplicidade no crime. Graças a Deus, o papa agora acordou, se redimiu, reconheceu o delito e exige a denúncia dos pedófilos aos tribunais civis.

Isto é - Quando o sr. era frei franciscano, soube de casos de abuso sexual?

Leonardo Boff - Nunca soube de nada.

Isto é - O que o sr. acha da Renovação Carismática Católica?

Leonardo Boff - É um movimento forte, que trouxe muitos elementos positivos, pois tirou o monopólio dos padres. Agora o leigo fala e inventa orações, coisa que não ocorria. Deu certa leveza ao cristianismo, muito centrado na cruz e na paixão e menos na alegria e na celebração. Mas, a meu ver, ela ficou a meio caminho.
Isto é - Por quê?
Leonardo Boff - Não se pode pensar no cristianismo sem justiça social e preocupação com os pobres. Todo carismatismo corre o risco de alienação. Eles se perdem no louvor, no cantar e dançar.
Isto é - E como o sr. avalia os padres cantores, como Marcelo Rossi e Fábio de Melo?

Leonardo Boff - Eles produzem um tipo de evangelização adequada ao que é dominante hoje, que é o mercado. Mas com as limitações que o mercado impõe, tenham eles consciência disso ou não. É sempre problemático, do ponto de vista teológico, transformar a mensagem cristã numa mercadoria de fácil consumo e de pacificação das consciências atribuladas. Noto que as grandes questões sociais estão ausentes em seus discursos e cânticos.

Isto é - Por quê?
Leonardo Boff - Eles falam sobre questões subjetivas. O cristianismo não pode funcionar como um ansiolítico que nos alivia, mas deve falar às consciências para que as pessoas tomem decisões que vão na direção do outro. Para mim, a mensagem cristã não significa buscar um porto seguro onde ancoramos para repousar. Mas é um chamado para irmos ao mar alto, para enfrentar as ondas perigosas. E não pedimos a Deus que nos livre das ondas, mas que nos dê força e coragem para enfrentá-las.

Isto é - O sr. ainda é católico?
Leonardo Boff - Sou católico apostólico franciscano. Acho que São Francisco foi o último cristão verdadeiro e talvez o primeiro depois do Único, que foi Jesus Cristo. O franciscanismo me inspira mais do que o romanismo porque o romano é apenas uma qualificação geográfica.