sexta-feira, 24 de julho de 2009

A velha do Restelo

No seu "Estranho quotidiano", Pio Abreu publicou no jornal DESTAK de hoje o texto de actualidade política que abaixo transcrevo, com o seu expresso consentimento.

A velha do Restelo

Enquanto a frota de Vasco da Gama aguardava a partida, “um velho, de aspecto venerando, (…) tais palavras tirou do experto peito: – A que novos desastres determinas de levar estes reinos e esta gente? (…) Que promessas de reinos, e de minas d'ouro, que lhe farás tão facilmente?”. Como nos conta Luís de Camões, a frota partiu para a Índia enquanto o velho vociferava no Restelo.

Hoje, os tempos são outros. Já não temos a ambição de descobrir a Índia e, menos ainda, de partir para uma aventura desconhecida. Apenas queríamos um comboio de alta velocidade que nos ligasse à Europa e um aeroporto que nos levasse a todos os continentes, em especial ao americano.

Os tempos também mudaram porque, com o aumento da esperança de vida e a redução da natalidade, existem hoje mais velhos que marinheiros. Alem disso, as mulheres, que vivem mais tempo, assumiram protagonismo e têm a sua voz, que é muito ouvida e ainda bem. Imaginemos então a cena nos dias de hoje. Em vez de um velho, existiria um coro deles, talvez com uma veneranda velha a dar o mote.

Então, a velha diria: "A que novos desastres determinas de levar estes reinos e esta gente?” Em pano de fundo, um coro de velhos responderia: "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça desta vaidade, a quem chamamos Fama!”. Finalmente, a veneranda remataria: “Dura inquietação d'alma e da vida, fonte de desamparos e adultérios, sagaz consumidora conhecida de fazendas, de reinos e de impérios.”

Com tal cenário, a frota nem teria saído do estaleiro.


J. L. Pio Abreu

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