“Portugal gasta em cada ano muito mais do que aquilo que produz” - eis a frase, proferida no seu recente discurso de ano novo, que melhor identifica a matriz política do actual Presidente da República.
Para a vulgata ideológica dominante, estamos perante uma síntese feliz da verdade essencial do país em que vivemos. Mas vistas bem as coisas, estamos apenas perante um cínico embuste; ou, se preferimos, perante a verdade mais mentirosa da agenda mediática corrente.
Numa abordagem que pode parecer ingénua, podemos começar por dizer que Portugal, em si próprio, não só não produz, como não gasta. Dir-nos-ão: é apenas uma maneira simples de traduzir globalmente as relações económicas de Portugal, como agregado de portugueses, com o seu exterior.
Pergunto: todos os portugueses gastam e produzem a mesma quantidade de bens e serviços? Se assim acontecesse, a frase de que parti seria uma forma expressiva de descrever a realidade.
Mas as desigualdades sociais em Portugal são muito acentuadas, havendo muitos portugueses que sobrevivem, gastando muito pouco, enquanto outros portugueses, em bem menor número é certo, não têm sequer tempo para esbanjar todos os bens, sobre os quais esta ordem jurídica lhes atribui um poder de disposição.
Ora, a frase acima citada reflecte a obnubilação desta diferença, fazendo pairar a sugestão de que estamos perante um excesso de gasto, cuja responsabilidade é igualmente repartida por todos os portugueses; e de que estamos perante um deficit de produção imputável também igualmente a todos os portugueses.
Mas será que é o mesmo exigir-se, a quem sobrevive no limiar da fome e da pobreza, que passe esse limiar, para mergulhar mais fundo na infelicidade; ou exigir-se aos opulentos que façam menos algumas viagens ao estrangeiro por ano, ou que comprem menos dois automóveis, ou que ofereçam às suas namoradas menos 20.000 euros de jóias por ano? Será que é o mesmo exigir a cem mil trabalhadores que se conformem mansamente com o desemprego e exigir a dez capitalistas que convertam cem milhões de euros dos seus lucros, numa mais digna remuneração dos trabalhadores que geraram esses lucros?
Esta hipocrisia é tanto mais gritante, quanto envolve, em regra, uma forte atenção a tudo o que é remuneração do trabalho e um generoso esquecimento de tudo o que é remuneração do capital. Quantas vezes não ouvimos nós ser perguntado ao autor de uma proposta política socialmente valiosa, para os trabalhadores ou para os pobres: “E aonde vai buscar o dinheiro para isso?” Mas, em contrapartida, esses mesmos seráficos perguntadores quase sempre se esquecem de colocar uma tão arguta questão, quando se trata de apoiar bancos em dificuldades ou de desencadear guerras.
São, na verdade, flores de um mesmo embuste ideológico, que procura inculcar, como verdade objectiva, a ideia de que qualquer dispêndio para pagar salários é um insuportável gasto lesivo da economia e qualquer dispêndio para pagar lucros é um sublime e virtuoso estímulo à boa saúde dessa mesma economia.
Vencidos pela evidência dos factos pelo lado dos gastos, talvez alguns procurem voltar à superfície, subindo a vertente dos bens produzidos: uns produzem mais do que outros, pelo que quem mais produz, mais pode gastar.
Estaria desde logo aí esquecida a conhecida melodia do produzir primeiro, mesmo incentivando desigualdades, para distribuir depois, corrigindo os aleijões sociais assim suscitados. Mas, como essa melodia é mais para ser ouvida, como anestesia pelos explorados, do que para ser praticada, não é por aí que chegamos ao essencial. Sigamos pois outro caminho.
Em primeiro lugar, no actual sistema económico não há apenas rendimentos de trabalho, pelo que parece aleatório justificar o que se gasta com o que antes se produziu. Dir-se-á que é legal auferir rendas, juros e lucros. Sem dúvida, mas então não é possível justificar a legitimidade do que se gaste pelo que antes se tenha individualmente produzido.
Em segundo lugar, numa sociedade que é incapaz de absorver o desemprego de milhões de trabalhadores, que querem trabalhar, seria de um cinismo insuportável imputar uma qualquer culpa por não produzirem aos próprios desempregados. Mas se assim não for, também por este lado, a frase citada não faz o menor sentido.
Já se vê por que razão me não espantei por ver a nossa direita e os seus arautos muito bem aconchegados no calor acolhedor do discurso do Presidente, mas fiquei verdadeiramente escandalizado, por ter visto os porta-vozes da esquerda parlamentar (governo e oposição) papaguearem um rol de previsíveis banalidades acerca do discurso de Sua Excelência, mas cobrirem de um inclassificável silêncio a referida frase presidencial.
E quanto ao Presidente da República, em si próprio, foi com perplexidade que integrei o grosseiro malabarismo ideológico consubstanciado na referida na frase, na sua solene proclamação pública de acrisolado apego à verdade. Admito, sem qualquer dificuldade, que cumpra as generosas intenções propaladas quanto ao que vai acontecendo no dia a dia, mas, por mais que assim seja, esse louvável esforço não será suficiente para compensar o que há de mentira na aparente e superficial verdade dessa frase.
Para a vulgata ideológica dominante, estamos perante uma síntese feliz da verdade essencial do país em que vivemos. Mas vistas bem as coisas, estamos apenas perante um cínico embuste; ou, se preferimos, perante a verdade mais mentirosa da agenda mediática corrente.
Numa abordagem que pode parecer ingénua, podemos começar por dizer que Portugal, em si próprio, não só não produz, como não gasta. Dir-nos-ão: é apenas uma maneira simples de traduzir globalmente as relações económicas de Portugal, como agregado de portugueses, com o seu exterior.
Pergunto: todos os portugueses gastam e produzem a mesma quantidade de bens e serviços? Se assim acontecesse, a frase de que parti seria uma forma expressiva de descrever a realidade.
Mas as desigualdades sociais em Portugal são muito acentuadas, havendo muitos portugueses que sobrevivem, gastando muito pouco, enquanto outros portugueses, em bem menor número é certo, não têm sequer tempo para esbanjar todos os bens, sobre os quais esta ordem jurídica lhes atribui um poder de disposição.
Ora, a frase acima citada reflecte a obnubilação desta diferença, fazendo pairar a sugestão de que estamos perante um excesso de gasto, cuja responsabilidade é igualmente repartida por todos os portugueses; e de que estamos perante um deficit de produção imputável também igualmente a todos os portugueses.
Mas será que é o mesmo exigir-se, a quem sobrevive no limiar da fome e da pobreza, que passe esse limiar, para mergulhar mais fundo na infelicidade; ou exigir-se aos opulentos que façam menos algumas viagens ao estrangeiro por ano, ou que comprem menos dois automóveis, ou que ofereçam às suas namoradas menos 20.000 euros de jóias por ano? Será que é o mesmo exigir a cem mil trabalhadores que se conformem mansamente com o desemprego e exigir a dez capitalistas que convertam cem milhões de euros dos seus lucros, numa mais digna remuneração dos trabalhadores que geraram esses lucros?
Esta hipocrisia é tanto mais gritante, quanto envolve, em regra, uma forte atenção a tudo o que é remuneração do trabalho e um generoso esquecimento de tudo o que é remuneração do capital. Quantas vezes não ouvimos nós ser perguntado ao autor de uma proposta política socialmente valiosa, para os trabalhadores ou para os pobres: “E aonde vai buscar o dinheiro para isso?” Mas, em contrapartida, esses mesmos seráficos perguntadores quase sempre se esquecem de colocar uma tão arguta questão, quando se trata de apoiar bancos em dificuldades ou de desencadear guerras.
São, na verdade, flores de um mesmo embuste ideológico, que procura inculcar, como verdade objectiva, a ideia de que qualquer dispêndio para pagar salários é um insuportável gasto lesivo da economia e qualquer dispêndio para pagar lucros é um sublime e virtuoso estímulo à boa saúde dessa mesma economia.
Vencidos pela evidência dos factos pelo lado dos gastos, talvez alguns procurem voltar à superfície, subindo a vertente dos bens produzidos: uns produzem mais do que outros, pelo que quem mais produz, mais pode gastar.
Estaria desde logo aí esquecida a conhecida melodia do produzir primeiro, mesmo incentivando desigualdades, para distribuir depois, corrigindo os aleijões sociais assim suscitados. Mas, como essa melodia é mais para ser ouvida, como anestesia pelos explorados, do que para ser praticada, não é por aí que chegamos ao essencial. Sigamos pois outro caminho.
Em primeiro lugar, no actual sistema económico não há apenas rendimentos de trabalho, pelo que parece aleatório justificar o que se gasta com o que antes se produziu. Dir-se-á que é legal auferir rendas, juros e lucros. Sem dúvida, mas então não é possível justificar a legitimidade do que se gaste pelo que antes se tenha individualmente produzido.
Em segundo lugar, numa sociedade que é incapaz de absorver o desemprego de milhões de trabalhadores, que querem trabalhar, seria de um cinismo insuportável imputar uma qualquer culpa por não produzirem aos próprios desempregados. Mas se assim não for, também por este lado, a frase citada não faz o menor sentido.
Já se vê por que razão me não espantei por ver a nossa direita e os seus arautos muito bem aconchegados no calor acolhedor do discurso do Presidente, mas fiquei verdadeiramente escandalizado, por ter visto os porta-vozes da esquerda parlamentar (governo e oposição) papaguearem um rol de previsíveis banalidades acerca do discurso de Sua Excelência, mas cobrirem de um inclassificável silêncio a referida frase presidencial.
E quanto ao Presidente da República, em si próprio, foi com perplexidade que integrei o grosseiro malabarismo ideológico consubstanciado na referida na frase, na sua solene proclamação pública de acrisolado apego à verdade. Admito, sem qualquer dificuldade, que cumpra as generosas intenções propaladas quanto ao que vai acontecendo no dia a dia, mas, por mais que assim seja, esse louvável esforço não será suficiente para compensar o que há de mentira na aparente e superficial verdade dessa frase.
3 comentários:
é como dizer que o governo baixou as taxas de juro...
estou farta, (e a minha geração está fartinha de todo), deste tipo de políticos que contorna a verdade e a serve numa bandeja decorada com tantos enfeites que deixa de ser compreensível para um ser humano normal. o politiquês. que esconde mentiras como esta. e como é facil esconder mentiras injustas e niveladoras como estas, neste tipo de linguagem, ela faz as pessoas desconfiarem de tudo o que é dito. de todo o discurso de todos os políticos.
precisamos de gente diferente, de valores diferentes, de palavras diferentes, de uma estrutura política diferente. procuremos...
muito bom post, rui, gosto do teu blog (e vou lendo). bom 2009
abraço
Bem escrito, bem dito, bem explícito!
Boa, Rui!
CP
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