sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O modesto capitalismo e seus vistosos servidores


Há um ruído recorrente que oscila entre o tumulto e o murmúrio, a propósito da grande diferença entre os salários gordíssimos de um punhado de gestores, especialmente banqueiros, e os salários esquálidos de uma grande parte dos trabalhadores portugueses.


Já houve até uma inconveniente multinacional da avaliação que teve o atrevimento de lembrar que os gestores portugueses de topo se encontram entre os mais bem pagos da Europa, enquanto os trabalhadores portugueses comuns se situam entre os mais mal pagos. Nessa mesma notícia, que os nossos discretos jornais esconderam numa discreta notícia numa página interior, sugeria-se, em complemento, que os trabalhadores comuns apesar de mal pagos eram dos relativamente mais produtivos, enquanto os gestores pagos principescamente eram dos relativamente menos produtivos.

Vem isto a propósito de um vistoso e recente alarido parlamentar, onde se destacou o BE, a propósito dos altos salários desse punhado de senhores, postos em confronto com os auferidos pela maioria dos trabalhadores portugueses. Um imaginoso deputado desfraldou até uma fotografia de corpo inteiro, para tornar o sketch parlamentar mediaticamente mais atractivo. Mas, se a forma foi mais sugestiva, o conteúdo corresponde a algo que há muito se repete nos resmungos quotidianos dos descontentes.


Há, aliás, uma retórica de igualdade salarial, agitada como imagem decantada da justiça mais justa, a que nem o actual governo tem escapado, em situações de aperto. E só por que era demolidora a intensidade mediática do artilheiro do BE ,no já citado episódio da fotografia, é que o aguerrido Ministro das Finanças arremessou como justificação para todas as mordomias, passadas, presentes e futuras, essa palavra mágica, esse “abre-te sésamo” que dilui todas as incongruências da “racionalidade” económica: MERCADO!

Se eu fosse um convencido pela catequese capitalista,seja ela a explícita, seja a subliminar, alinharia decididamente pela lógica de ambos: fosse como tonitruante denunciador da sua perversidade, fosse como beato adorador das suas virtualidades.

Mas eu sou um daqueles sujeitos esquisitos que quando sorrateiramente lhe querem impingir gato, quando era lebre a sua saborosa expectativa diz: “Ó amigo. Eu pedi lebre. Lebre! Ouviu bem. Não pedi gato” .

É que o problema dos rendimentos “nabábicos” dos nosso banqueiros e outros esforçados trabalhadores empresariais do género, não é, na realidade, uma questão de salários altos. È uma questão de meter, no mesmo envelope, um salário bem mais magro do que o total e o estipêndio inerente ao seu papel de “chiens de garde” do capital, que inteligentemente retira uma pequena fatia dos seus largos lucros, para ter à sua frente uma matilha tecnocrática que o protege e representa. Representa-o e oferece-se como o rosto ostensivo de um capitalismo que, querendo-se discreto, se pretende sofisticado e se revela matreiro, preferindo pagar bem a quem se mostre em seu lugar do que expor-se , desnecessariamente, à cobiça e à revolta dos menos favorecidos.

Por isso, o problema dessa desigualdade entre salários não é um desequilíbrio entre rendimentos de trabalho. É uma consequência e um instrumento do grande volume dos lucros dos detentores do capital, do desequilíbrio entre os rendimentos do trabalho e do capital, num plano macroeconómico.

Aliás, sendo certo que os gestores de topo também são pagos para sofrerem esse embate e assim desviarem as atenções do que é essencial, ou seja, o desequilíbrio escandaloso entre a remuneração do trabalho e os lucros do capital, cabe àqueles que não se conformarem com uma sociedade destas chamar a atenção para essa pequena desfocagem.

Aliás, à luz do que atrás se disse, se a causa do excesso de mordomias para os gestores de topo fosse apenas a sua rentabilidade económica, como é que se compreenderia que em nome das regras de mercado lhes coubesse serem “sobre-pagos” ( deviam, sim, ser "sub-pagos")? Não se compreenderia, porque na verdade eles são sobre – pagos, porque vêem o seu salário engordado dramaticamente com uma renda de situação que o capital aceita pagar-lhes no seu próprio interesse.

Por isso, quem não estiver disposto a aceitar passivamente mais esta cortina de ocultação do que realmente conta, lute prioritariamente pelo reequilíbrio entre os rendimentos do trabalho e os lucros do capital, para que, depois de encaminhada satisfatoriamente essa batalha, se possa virar sem incongruência para uma redução do leque salarial , propriamente dito.

Nunca esqueçamos de que, se é certo que os “chiens de garde” são-no também para sofrer os embates da vida em vez dos seus "donos", a nossa grande questão que estruturalmente temos, não é com eles, é com os “donos”.

8 comentários:

andrepereira disse...

Bem visto...
O capital - anónimo, multinacional, sem corpo e sem alma - esse vai aumentando a sua fatia me todo o mundo...
Deveria a Europa punir as suas empresas se estas se deslocarem para países sub-desenvolvidos, sem respeito pelas regras mínimas de direitos humanos (incluíndo direitos dos trabalhadores e direitos sociais)?

Anónimo disse...

As chorudas "retribuções" recebidas pelos gestores do grande capital, embora escandalosas, não passam de migalhas caídas da mesa do referido capital. Que ainda por cima pga impostos a uma taxa inferor à dos modestos cidadãos da classe média!

aminhapele disse...

É um humor demasiado abrazivo!
Quem são os "cães"?
Quem é o "dono" dos "cães"?

Rui Namorado disse...

O "dono" é modesto. Os "chiens de garde" são os sesu fiés servidores.

"Cães" em respeitosa metáfora , já se vê.

Anónimo disse...

Meu Caro Rui


Obrigado pelas tuas notícias.
Não apareceste na reunião de curso.
Um abraço
CPinto

Anónimo disse...

É tudo correcto no que dizes. Até as metáforas são "abrazivas" como lhes compete.
Acho. contudo que puxas demasiado a realidade para os campos de batalha das teorias " muito consistentes". Vais explicar-me como se pode viver decentemente com um salário neste "nacional mercado" onde os bens de consumo corrente, os alimentos básicos dos mais pobres ( o pão e o leite, por exemplo...ameaçam subir ainda mais para sustentar...energias alternativas.
Explica aqui como há dois anos o Euro valia 0,80 do dolar e hoje vale 1,5 encaminhando-se os preços dos combustíveis no consumidor, subrepticiamente, ao preço barril de crude/dolar na origema.
AS tuas excelentes formulações teóricas ofuscam a realidade nua e crua. ( Será, ainda, verdade que sem teoria revolucionária não vai haver revolução?)...Olha que não serve para coisa nenhuma uma boa teoria para barrigas vazias...
Zedomar

Anónimo disse...

RN conversando com o Zedomar, coloca-lhe duas questões:

1. E a falta de teoria ( ou uma má teoria) serve para aguma coisa?

2. Podes-me dizer qual o tipo de abordagem textual que enche as barrigas vazias ?

aminhapele disse...

A conversa está "quente" e séria.
O meu contributo:
Se tivermos memória curta basta recordar os anos de 75.
Também nesses anos de merecida e justificada festa o povo dizia:já tenho liberdade,já tenho democracia...mas não tenho "pão".
Ao longo das décadas,mesmo dos séculos,o dono do "pão" tem sido o mesmo.
É ele que determina as condições de vida digna de um povo.
É ele que "sugere" os entretens que não o afectem.
A teoria,por muito boa que seja,tem a sua prova real na VIDA.
Se o povo continua a dizer que não tem "pão",é porque lhe faltam as condições básicas para ter uma vida digna.
Claro que isso nada tem a ver com os ordenados dos gerentes da "padaria".
Claro que o problema não se resolve com o assalto à padaria.
Tudo tem que passar por tirar o "pão" ao dono.
Convenhamos que não é tarefa fácil.
Mas temos que atacar o dono do "pão" e não os padeiros!