sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A Ala Esquerda do Partido Socialista


A ala esquerda do PS emergiu na agenda mediática, antes de própriamente existir como conjunto de socialistas substancialmente identificado, com contornos bem definidos, protagonizado por uma multiplicidade de rostos que com ela formalmente se identifiquem.


Um dos mais marcantes comentadores políticos da direita, que se especializou em ser alguém de quem se esperam brutalidades subtis, descobriu (mesmo que lamentando) a evanescência do seu partido, o PSD. Os louros da oposição ao Governo atribuiu-os a Manuel Alegre e ao resto da ala esquerda do PS.


Imagino que a jovem brigada do PCP na Assembleia da República, que aí escolhe, como boa acção diária, a operosa redacção de uma crítica ao Governo, tenha intensamente sofrido, perante uma tão drástica ostentação pública da modéstia da sua influência. E não posso deixar de pensar que o Estado-Maior do BE, tão orgulhoso pelo seu modo de relampejar, dia após dia, em todos os registos, talvez se tenha sentido subitamente pequeno, subitamente irrelevante.


O interessante é que uma afirmação consistente dessa ala esquerda é , por enquanto, algo de que nos separam caminhos que ninguém parece ainda conhecer. De facto, ela pode vir a ganhar força em virtude de uma inesperada aceleração do desgaste do Governo, se ele não conseguir romper com os automatismos em que parece ter-se deixado encerrar; ou, em virtude da eclosão de inesperadas sinergias, que envolvam simultaneamenete dinâmicas convergentes dos seus vários focos e das suas várias componentes. E, em ambos os casos, ela poderá emergir como factor interactivo com a actual facção dominante no Partido. Mas, poderá também afirmar-se na cena política como resultado de uma crise de representação do PS oficial, em face da sua base social histórica de apoio.


É uma ala com fraquezas e virtualidades. Entre as suas maiores fraquezas estão: a sua dispersão, a sua total inorganicidade, a sua excessiva dependência mediática do protagonismo de uma única figura política, Manuel Alegre. Figura política que toda essa ala esquerda respeita como quem respeita um dos seus, mas na qual só uma parte se reconhece, globalmente, em termos estratégicos e prospectivos. Figura política que, portanto, toda essa ala esquerda aceita como símbolo, mas com a qual a identificação política e ideológica de muitos não é completa. Ou seja, há um caminho difícil a percorrer até que, na verdade, as diversas esquerdas internas do PS se reconheçam mutuamente como pertencentes a uma mesma ala politicamente bem delimitada, no quadro do arco-íris socialista.


E, no entanto, por detrás dessa fragilidade afirmam-se, pelo menos, dois vectores que a projectam como um espaço decisivo na abertura ao nosso país de horizontes de esperança. Um deles resulta do facto de os valores, as opções e as emoções da ala esquerda do PS serem partilhados pela sensibilidade política de uma grande parte dos militantes, dos simpatizantes e dos eleitores permanentes desse partido. Ou seja, por aqueles que verdadeiramente são o Partido Socialista em termos substanciais e políticos. É como se dentro de uma larga maioria dos miltantes do PS estivessem latentes, mas emocionalmente vivas, as opções da sua ala esquerda.


O outro é um vector que assenta na probabilidade de vir a ser nesta área do PS que será concebida uma estratégia política que se incorpore numa visão pós-capitalista do futuro; ou seja, uma visão do mundo que se dessolidarize da globalização capitalista, projectando-se no futuro em termos de liberdade, igualdade, fraternidade, criatividade e sustentabilidade ambiental, no quadro de uma globalização emancipatória e solidária. Só assim, aliás, se romperá com a mitologia pessimista do fim da história. Uma mitologia que vê no capitalismo a forma última da evolução social, guiada por um automatismo economicista que a humanidade apenas teria que sofrer com paciência; e que uns tantos continuariam gulosamente a fruir, em representação de todos, como se os privilégios de alguns não fossem o preço do sofrimento de todos os outros.


Ou seja, a esquerda socialista só terá consistência estratégia e valor próprio no contexto da Internacional Socialista, se souber pôr em questão adequadamente o sistema capitalista, não se conformando com a sua insuportável injustiça estrutural; e projectando esse inconformismo numa estratégia autenticamente reformista, na qual a democracia se inscreva como centralidade irremovível. Uma centralidade irremovível da sua própria identidade, mas também dos caminhos a percorrer e do horizonte a alcançar.


É-lhe , por isso, indispensável uma visão reformista global que, não menosprezando as lutas parciais, os combates pela cultura, as iniciativas cooperativas e solidárias, não se deixe absorver por completo pela luta contra fenómenos consequenciais ( institucionais, culturais ou sociais), como se apenas neles se pudesse jogar todo o futuro, esquecendo a alternatividade em face do sistema. A capacidade da esquerda socialista para amadurecer, para se congregar, para se afirmar, poderá ter efeitos políticos do maior relevo, não só dentro da área socialista, mas também no conjunto da esquerda.


Mas, se a esquerda socialista não conseguir romper a sua fragilidade actual, a sua dispersão, a sua inconsistência estratégica e as suas limitações ideológicas, dificilmente poderá vir a estar à altura do que dela se espera. E sem a sua interferência específica e relevante na cena política, dentro e fora do PS, dificilmente o Partido no seu todo romperá o círculo vicioso, onde se deixou aprisionar. E se assim for, provavelmente, o que de menos mau poderá acontecer é um desastre eleitoral que faça regressar o PS a patamares de apoio, onde já caiu e de onde demorou mais de 10 anos a sair. Porém, tudo pode ser ainda pior, não sendo certo que se consiga evitar um desastre político estrutural que poderá enfraquecer por décadas toda a esquerda portuguesa.
E, como o destino da ala esquerda não só depende dela, mas também do resto do partido, vale a pena lembrar, quanto ao PS no seu todo, que , se quiser continuar a ser um Partido com mais de 40% do eleitorado, com uma base social radicada no mundo laboral e na sociedade civil activa, terá de se repensar com serenidade e sem tabús, aprendendo a projectar-se no médio prazo como força de transformação social e não apenas como máquina eleitoral. Se tal não ocorrer, arrisca-se a ser a folha seca levada numa corrente que não influencia. É , por isso que, Governo e partido devem, articuladamente, respeitando as diferenças de natureza, as lógicas específicas de cada um, começar a reavaliar desde já ponderadamente os rumos seguidos.


O PS tem que aprender a ser uma entidade socialmente sólida e activa, presente em todos os aspectos da vida social portuguesa, mas, para chegar até aí, a partir da situação actual, precisa de promover muitas mudanças conjugadas. Uma delas terá de se traduzir na clarificação das diferenças internas, de modo a que se tornem suficientemente nítidas, para poderem ser aprofundadas na busca de novas sínteses, devidamente amadurecidas e futurantes. Ainda não é tarde , mas já não é cedo.


E, no quadro deste despertar, no qual a ala esquerda do PS tem que participar, deve ficar claro quanto a ela, que não é uma versão um pouco mais moderada ou um pouco mais democrática das posições históricas dos partidos comunistas, não é uma moderação democrática do radicalismo ou do utopismo das heranças esquerdistas, não é sequer uma província de intransigência no quadro do socialismo histórico.


A ala esquerda do PS não pode pedir desculpa por ser socialista e não pode ter como aspiração ser apenas uma eterna ala de um conjunto que nunca será como ela sonha. Precisa de ser semente de uma mudança global, do que será o futuro dos partidos socialistas , para assim ajudar a construir uma sociedade outra, naturalmente anunciada pela improbabilidade de que o capitalismo seja eterno.


Por isso, não pode ser uma transigência para com as posições de outras famílias políticas da esquerda, embora as deva respeitar como interlocutores. Deve estar bem dentro da tradição do socialismo democrático e assumir-se como parte integrante da tradição socialista universal.


Assim, só terá verdadeira importância se atingir o objectivo de contribuir para superar os bloqueamentos actuais do socialismo democrático, apostando no aprofunadamento da democracia em todas as suas dimensões e no protagonismo relevante das organizações cooperativas e solidárias que têm vindo a irromper no mundo actual com uma energia crescente.

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