sábado, 3 de novembro de 2007

Europa de costas voltadas à regulação





Com a devida vénia, transcrevo a entrevista que os meus colegas Júlio Mota e Margarida Antunes deram ao Diário de Coimbra, onde hoje foi publicada.
Ela vale por si, pelo modo simples e clarificador, usado na abordagem de temas da maior relevância para a vida dos cidadãos e que tanto afligem muitos deles.
Mas tem uma importância acrescida, por ser uma espécie de alerta para uma realização que decorrerá na FEUC, na próxima 2ª feira, dia 5 de Novembro e que se insere numa série de iniciativas sobre temas da mesma natureza, que tem vindo a decorrer na FEUC, sob a responsabilidade da mesma equipa.
Não quero deixar de elogiar a atenção competente que o Diário de Coimbra tem vindo a dar a estas iniciativas.


“Europa de costas voltadas à regulação”

Deslocalização de empresas discutida em Coimbra

O desinvestimento das empresas nos países desenvolvidos lança trabalhadores no desemprego e alimenta trabalho precário sob a quase passividade das instituições comunitárias, alertam os docentes da FEUC, segundo Margarida Antunes e Júlio Mota. Para estes, a escolha de ausência de política, ela mesma também política, é a principal responsável.

Entrevista conduzida por CATARINA PRELHAZ


Diário de Coimbra (DC) – As empresas estão a fugir de Portugal e da Europa?

Margarida Antunes (MA) – É um fenómeno bastante difícil de avaliar, desde logo porque há muitas definições. A mais completa que conheço é dada num documento da Assembleia Nacional Francesa que considera que ocorre uma deslocalização, quando uma empresa renuncia a manter, desenvolver ou criar actividades no seu próprio país e passa a produzir ou a subcontratar num país estrangeiro, para exportar para o país de origem ou para mercados de exportação já existentes ou potenciais.

DC – Há números?

MA – Há países que têm indicadores, como a França, que entre 1995 e 2001 perdeu por ano 13.500 empregos devido a deslocalizações. Na Europa, o sector têxtil-vestuário perdeu em nove anos 750 mil postos de trabalho.

DC – E em Portugal?

MA – Não se consegue dizer com clareza; sabemos que em Portugal o sector têxtil tem um peso económico relevante, sendo clara a pressão a que este sector tem estado a ser sujeito. Mas a análise do fenómeno é complexa.
É preciso também ter presente a ideia de perda potencial, isto é, de empregos que se deixam de criar no país, porque se opta por investir no estrangeiro. São as chamadas não localizações.

Júlio Mota (JM) – E há relocalizações, porque o tempo de permanência de uma empresa num dado país é, em geral, muito curto. Se supusermos que há dez mil postos de trabalho deslocalizados, pode haver outros dez mil que podem ser relocalizados no país de origem. Contudo, ainda que fosse assim, não se trata exactamente dos mesmos empregos, o que significa tensões no mercado de trabalho, que está cada vez menos protegido. Mas o que acontece é que as empresas que voltam ao país de origem precisam de menos 30 ou 40 por cento de mão-de-obra, por causa de desenvolvimentos tecnológicos, como a robotização. Há até deslocalizações no local: ou seja, sem sair do país, a empresa vai buscar recursos e mão-de-obra ao estrangeiro, sendo então o seu próprio país apenas o espaço onde ela se instala. Por exemplo, é o que se tem passado no sector da construção naval, em França. Em paralelo, uma mesma empresa que tenha unidades de produção em três ou quatro países, produzindo os mesmos produtos, pode colocar todos os seus trabalhadores, portanto independentemente do país onde estejam a trabalhar, a concorrerem entre si para manterem os seus postos de trabalho, de modo a conseguir reduzir os custos salariais.

MA – Alguns autores estimam que a longo prazo há efeitos de compensação. Mas o que é o longo prazo? Um efeito eventualmente positivo não conforta os trabalhadores que no curto prazo ficaram sem emprego. Esses autores dizem que há efeitos de compensação porque a deslocalização faz com que a empresa diminua os seus custos de produção e aumente os lucros, os quais vão ser investidos no país de origem. Portanto, haveria um ganho para este país. Mas isto está longe de ocorrer. E
mais, por vezes nem sequer há descida dos preços para o consumidor, porque o objectivo da deslocalização é reduzir custos para aumentar os lucros.

JM – Mesmo se os preços baixassem, poderíamos até assumir que as famílias estariam mais ricas. Ora, isso não é verdade. Primeiro, porque o desemprego tem um custo social que não é de forma alguma superável. Por outro lado, temos uma sociedade cada vez mais dual: uns têm cada vez mais poder de compra e outros cada vez menos, apesar dos preços diminuírem.

DC – Porquê?

JM – Porque os trabalhadores que perdem um emprego com a deslocalização de uma empresa ou não encontram um novo emprego ou no caso de o encontrarem, sujeitam-se a reduções salariais, algumas significativas. As pessoas aceitam porque não têm outra hipótese e porque os Estados se demitem cada vez mais da protecção do emprego e de políticas que assegurem estabilidade nos rendimentos dos agregados familiares. Em alternativa, o sistema inventou um esquema diabólico: o endividamento como forma de acelerar a procura.

DC – Diabólico?

JM – O sistema cria desemprego e as pessoas precisam de trabalhar e aceitam que os salários diminuam. Mas este sistema só sobrevive se existir procura. Então, incentiva o endividamento para que as pessoas tenham poder de compra. Foge-se de crise em crise, ao mesmo tempo que o Estado se demite e aponta como saída a flexigurança.

DC – O que é afinal a flexigurança?

MA – É um “modelo” triangular: num vértice, temos a facilitação dos despedimentos; noutro, um regime de subsídios de desemprego mais generoso; e no terceiro, políticas de emprego e requalificação numa lógica
de formação ao longo da vida. Na Dinamarca, os desempregados têm direito a subsídio durante um período que pode ir até quatro anos, perfazendo nalguns casos até 90 por cento do último salário. Mas a Dinamarca não pertence à Zona Euro e não está sujeita como nós às restrições do Pacto de Estabilidade e Crescimento.

DC – Que restrições?

MA – O subsídio de desemprego é uma despesa pública. Com a flexigurança “à dinamarquesa” as despesas disparariam, mas a Zona Euro obriga a que Portugal respeite um limite de défice público. Também no caso das políticas de emprego, mesmo que sejam financiadas pela União Europeia, o orçamento nacional terá sempre de comparticipar. Parece-me difícil conciliar tudo isto.


DC – Quais são os sectores mais afectados pelas deslocalizações?


MA –São aqueles que têm técnicas relativamente banalizadas: o têxtil, o calçado, os produtos eléctricos.

DC – E para onde é que se deslocaliza?

MA – Existem deslocalizações dentro e para fora da Europa, aproveitando as diferenças salariais. Por exemplo, Portugal tem sofrido deslocalizações para os países de Leste. Já a França deslocaliza maioritariamente para países desenvolvidos, porque procura mão-de-obra qualificada ou recursos específicos desses países. Mas os países de Leste, a China, a Índia e a América Latina são destino preferencial destes fenómenos. Muitas das vezes, também porque têm uma legislação ambiental deficiente ou não a têm de todo.

JM – A China é a primeira da lista, porque vive na base das regras do sistema comercial ocidental preconizado pela Organização Mundial do Comércio, com um regime político que não tem nada a ver com os regimes políticos ocidentais, capaz de se regular de acordo com os seus próprios interesses, mesmo que seja à margem dos Direitos do Homem. Posso dar um exemplo: têm a sua moeda ligada ao dólar e fortemente subavaliada relativamente a esta moeda. Ora, com o dólar em queda, são as exportações
chinesas as grandes beneficiárias. E isto para não falar também das diferenças salariais: enquanto nos EUA o salário horário atinge mais de 15 dólares, no México 1,5 a 2 dólares, na China esse valor é de cerca de 0,25 dólares. E não estamos só a falar da deslocalização da produção de artigos da loja dos 300, mas de mercadorias de média ou mesmo de topo de gama. Uma mesma empresa tem unidades em três ou quatro países, concorrendo entre si, para ver qual delas apresenta menores custos de produção, com todas as consequências que daí advêm.

DC – Há alguma solução?

MA –Isto é uma decisão completamente política: decide-se politicamente não haver política. Isto não é um processo inevitável. A ideia prevalecente é a de que se deve deixar funcionar o princípio da livre concorrência. Em relação às deslocalizações que ocorrem entre países europeus não se faz nada, porque tal poria em causa o princípio da liberdade de estabelecimento dos nacionais de um país-membro num outro país-membro. A 1 de Janeiro deste ano entrou em vigor o Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização para atenuar os efeitos sobre o emprego apenas das deslocalizações extracomunitárias, que prevê apoio financeiro, limitado anualmente e dependente de créditos orçamentais não utilizados. Este apoio está previsto somente para situações que criem no mínimo mil desempregados, o que limita fortemente a sua aplicação numa Europa onde predominam pequenas e médias empresas. Mas ainda é cedo para avaliar resultados.

JM – A Europa cala-se, porque está de costas voltada à regulação. É possível e deve haver globalização, desde que com rendimento e emprego seguros.

MA – Segundo a Organização Internacional do Trabalho, nos últimos dez anos surgiram no mundo mais 34 milhões de desempregados. Ora, se esta globalização gera desemprego, não é economicamente eficiente.

JM – E a solução só pode ser equacionada no plano internacional, nomeadamente através de uma reforma da ONU e de todas as Instituições internacionais que lhe estão ligadas. Não pode ser apenas a Europa por si. O drama está aí: não se vê nenhum passo nesse sentido. A máxima é liberalizar, flexibilizar, rivalizar, desregulamentar e o resultado está à vista com os 34 milhões de desempregados adicionais.


Esta entrevista certamente que vos acicatará o interesse em saber:

“Como é que se pode resistir?”

O Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), coordenado pelos docentes de Economia Internacional com o apoio do Núcleo de Estudantes de Economia da AAC, recomeça segunda-feira (5/11) às 15h00, no auditório da instituição com o tema “Globalização e deslocalizações: as dificuldades na reprodução da relação salarial”.
A sessão contará com a participação dos investigadores El Mouhoud Mouhoub (Universidade de Paris XIII e director do Centro de Economia da Universidade de Paris Norte), Edward Gresser (do Progressive Policy Institute, EUA), Paulo Pedroso (ISCTE e antigo ministro do Trabalho e da Solidariedade Social e Margarida Antunes (FEUC).
Às 21h15, o Teatro Académico Gil Vicente projecta o filme “Como é que se pode resistir?" Histórias de trabalhadores numa fábrica americana”, de Alexandra Lescaze. O acesso a ambos os eventos da terceira sessão do ciclo da FEUC é livre e gratuito.

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