Começou hoje a fase final do golpe de Estado perpetrado no Brasil contra a Presidente Dilma. É grande a probabilidade de vir a ser consumado. Um punhado de políticos conservadores, oportunistas e corruptos ocupa a ribalta no drama em curso. E não parecem dominar as consequências, a médio e a longo prazo, do que estão a fazer, como se fossem politicamente tontos ou pura e simplesmente imprudentes. É, aliás, uma ironia histórica que no dia em que se encerra na Colômbia uma guerra civil de 50 anos, no Brasil se corra para um abismo político, cujas etapas subsequentes são imprevisíveis.
Vou hoje transcrever no meu blog mais um texto de Roberto Amaral sobre o processo que está a decorrer no Brasil. Recorro uma vez mais à página da CartaCapital , revista brasileira de excelente qualidade, honesta e esclarecedora. Roberto Amaral é um político brasileiro de inegável estatura intelectual e ética, que abandonou a Presidência do Partido Socialista Brasileiro, por não suportar a sua degradação e o seu conluio com a direita mais rasteira e esponjosa. Merece ser lido com atenção. Procura a responder à pergunta "Por que destruir o símbolo Lula?", mostrando o sentido de todo o processo :"A intenção é uma só: mandar aos trabalhadores o recado de que precisam conhecer o seu lugar e deixar de almejar o poder."
Por que destruir o símbolo Lula? - Roberto Amaral
Lula em visita a acampamento do MST em julho: ele é o símbolo
Apesar de seu significado, de suas consequências e de sua brutalidade
política, a tentativa de destruição
eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, em curso, não é a ameaça mais grave que paira sobre
o futuro imediato das forças populares, mesmo porque a vida política não se
reduz ao processo eleitoral e porque não existem, nesse âmbito, derrotas
definitivas, nem absolutas. Basta ouvir a história.
O movimento reacionário
que nos governa hoje pensando em um projeto de poder de muitos anos –à margem dos
mecanismos da democracia representativa e da soberania popular – volta
suas poderosas baterias (políticas, midiáticas, policiais, judiciais) apenas
incidentalmente, ou taticamente, para a figura do ex-presidente e eventual
candidato à Presidência, pois seu alvo verdadeiro, de vida e morte, é o símbolo Lula, com toda a sua profunda
carga emocional.
Simbologia que não se reproduz senão a espaços largos de anos e em
condições objetivas e subjetivas que raramente se repetem.
O símbolo Lula é um produto social; como construção coletiva, não pertence
a si mesmo. É instrumento do imaginário: é, hoje, a leitura que dele fazem seus
contemporâneos. A imagem de Lula caminha para além dos limites
de país, simbolizando para o mundo afirmação das possibilidades dos
trabalhadores.
O processo social não conhece a autogênese. Lula, tanto quanto o partido
que fundou, o Partido dos
Trabalhadores (PT), são (independentemente um e outro de seus muitos erros) o fruto da
acumulação das lutas sociais, são o resultado das tantas batalhas em defesa da
democracia, dos conflitos sociais e de classe, são a condensação de mais de um
século de conquistas sindicais reunindo, numa só herança, desde os
anarquistas do início do século passado até o varguismo que a socialdemocracia
de direita, da UDN de Carlos
Lacerda ao tucanato
de Fernando Henrique Cardoso, intenta destruir.
Ambos, Lula e o PT, são um só fruto dos avanços políticos mais consequentes
do fim da ditadura militar, direitos consagrados pela Constituição de 1988 que
ainda ambos, Lula e o PT, equivocadamente, se recusaram a assinar.
O ‘risco Lula’ não se reduz ao seu notório potencial eleitoral a ameaçar os
sonhos continuístas do assalto neoliberal, até porque outras alternativas
haverão de ser construídas; o perigo, a ameaça, residem principalmente – e
nisso está sua maior gravidade – no que o líder popular representa e
simboliza para as grandes massas como exemplo de afirmação histórica da
classe trabalhadora.
A destruição política de Lula, ainda que necessária para o projeto de
regressão ao passado, é perseguida pelos algozes de hoje
(muitos deles aliados de ontem) como instrumento de destruição da
expectativa, prelibada, de os trabalhadores conquistarem o poder e o exercerem
diretamente, isto é, sem a clássica e corriqueira delegação a um representante
da classe dominante.
No caso concreto, duas imagens precisam ser derruídas: a do operário
transformado em político vitorioso e a do Lula presidente, isto é, de um
governante de raro sucesso. Esta é a tarefa urgente, mas não é
tudo – pois o projeto da classe dominante é quebrar as
veleidades auto-afirmativas da classe trabalhadora. Trocando em
miúdos, os trabalhadores precisam conhecer o seu lugar. Este é o recado
que nos mandam.
Certa feita, ainda presidente da República, Lula se auto-qualificou pela negativa,
isto é, como ‘não de esquerda’. Ignorava ele que personagem histórico não
ocupa, necessariamente, o papel que se escolhe, mas aquele que, consoante suas
circunstâncias e as contingências históricas, lhe é dado desempenhar num
determinado momento.
Assim, independentemente de sua vontade e da vontade de seus adversários de
classe, Lula, hoje, não apenas atua no campo da esquerda como é, a um tempo, o
mais importante líder desse segmento político e o mais importante líder popular
em atuação. E é isto o que conta para a crônica de sua condenação.
Muitas vezes, na política, e estamos em face de um caso concreto, o
personagem histórico se aparta de sua trajetória pessoal, linear, e passa a
viver uma nova vida no imaginário popular: ele é ou passa a ser o que simboliza
perante as massas. Tiradentes é o ‘protomártir da Independência’, a princesa
Isabel ficou nos manuais da história do Brasil como ‘a redentora’, Deodoro como
‘o proclamador da República’.
Getúlio Vargas superou o papel de chefe da
revolução de 30 ou de ditador para ser recepcionado pela história como o pai da
legislação trabalhista, o pai dos pobres e herói
nacionalista. Assim foi chorado pelas massas órfãs, ensandecidas,
desarvoradas com o choque de seu suicídio. Os símbolos são a argamassa da
política.
Voltando: o que Lula representa hoje, além de uma razoável expectativa
de poder? No plano simbólico ele nos diz, ditando lição subversiva, que o
homem do povo pode chegar à presidência da República sem precisar atravessar a
margem do rio onde só se banham os donos do poder; subvertendo a ‘ordem natural
das coisas’, ele nos diz que o povo pode pretender escrever sua própria história.
Isto é intolerável em sociedade que, desde sua
origem – da oligarquia rural aos rentistas do capitalismo
moderno –, se organizou segundo a disjuntiva casa-grande e
senzala, células incomunicantes,
cujos personagens têm, 'por natural', papéis definidos e próprios que não se
podem confundir: de um lado os mandantes, de outro, os mandados, de um
lado os senhores de direitos, de outro os portadores de deveres e obrigações.
De um lado o capital, de outro o trabalho, seu servidor. A díade imutável de
nossa monótona história.
Pela primeira vez na República um trabalhador, operário de macacão e mãos
sujas de graxa, se fez líder trabalhista e presidente. Não se trata mais
de um quadro da classe dominante operando a mediação entre capital e trabalho,
como Getúlio, como Jango conduzindo as massas e dialogando em seu
nome com a classe dominante, como um dos seus. Com Lula as massas se expressam,
pela vez primeira, sem a intermediação do populismo. E isso não é pouco.
Pela primeira vez os trabalhadores, majoritariamente, se identificam com um
partido criado e liderado por um dos seus. Não são mais pingentes de partidos
da estrutura clássica que generosamente abrem espaços para a manifestação dos
quadros da classe média, que neles podem atuar defendendo os interesses
dos dominados: nem é mais o PTB, nem são mais os Arraes ou os Brizolas que
falam pelos trabalhadores.
Nem são mais os comunistas do capitão Prestes, ou os intelectuais
de esquerda que traíram sua origem de classe para se aliar aos
trabalhadores, às grandes massas dos excluídos, aos deserdados da terra, para
lembrar Frantz Fanon.
E isso não é pouco.
Nesse mundo dividido entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre centro e
periferia, entre mandantes e mandados, não cabe aos de baixo levantar a cabeça,
pensar em riqueza e desenvolvimento, senão tão-só assistir aos banquetes dos
poderosos e sonhar que sempre lhes sobrarão migalhas.
Nesse mundo conflagrado, no mundo da recessão, no reino do
neoliberalismo, neste país conformado com a injustiça social e praticante das
desigualdades, de renda e de toda ordem, a ascensão das massas, a revelação de
sua capacidade organizativa e a construção de uma liderança própria constituem,
aos olhos da casa-grande, péssimo e perigoso exemplo. Precedente que os donos
do poder não querem ver repetido, e para evitá-lo tudo farão. Sem
medir meios.
Assim se explica o empenho em que se aplica a oligarquia governante visando
a destruir essa liderança que fugiu ao seu controle, no intento de
impedir que outras, tão ousadas, lhes sigam as pegadas e o mau exemplo. É preciso,
pois, desconstituir a boa memória de seu governo e destruir sua honra.
É preciso destruir o líder e ao mesmo tempo, desestimulando-a, vacinando-a
contra ‘aventuras’ futuras, quebrar o ânimo da classe trabalhadora. Nesta
tarefa todos estão empenhados, para dizer a essas massas, que Lula não passa de
um mito, que seu partido não passa de uma fraude a ser exorcizada, que essa
experiência foi na verdade um rotundo fracasso, uma mentira, uma lenda.
A classe trabalhadora, mais uma vez vencida, diz-nos a oligarquia dos
proprietários, terminará por aprender uma velha lição: não está em suas posses
conduzir as próprias rédeas. Volte, pois, para o chão de fábrica.
Enfim, a reação
autoritária pretende ensinar à classe trabalhadora que seu papel é subalterno ao
do capital e que ela tem de se conformar em ser caudatária da classe
dominante.
Resta-nos aceitar passivamente a depredação, ou resistir com toda a
veemência – e não apenas, claro está, em nome da integridade física e moral do
indivíduo Lula; menos ainda para livrá-lo (e seu partido) do julgamento da
história a que todas as lideranças políticas devem, ao fim e ao cabo, estar submetidas.
Mas para preservar um patrimônio que nos ajudará a atravessar a noite da
restauração conservadora, brutal, impiedosa, despida de todo escrúpulo, e já
iniciada.
O símbolo é um patrimônio coletivo.
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