1. Houve tempo em que uma posição anti-capitalista explícita
era a marca de uma radicalidade de objectivos, quase sempre entrelaçada num
extremismo de processos. Isto é, a autenticidade do anti-capitalismo media-se
pela decisão de derrubar pela força a ordem vigente, em nome de um programa
simples marcado por uma alternatividade clara, mas difusa. O anti-capitalismo também não estava ausente entre os que, apostando nas eleições como alavanca de mudança, não deixavam de inscrever nos seus objectivos a superação do capitalismo
através de uma cadeia de políticas públicas que em muitos aspectos não se
distanciavam muito do programa dos que seguiam a via anterior. Apenas queriam agir num quadro democrático.
Muitas destas medidas eram reflexo de uma ambição social
igualitária e de uma identificação com as justas aspirações dos que viviam dos
frutos do seu trabalho ( e não do fruto dos seus investimentos em capital ou
das suas rendas). Para concorrerem
eleitoralmente com eles, os partidos da direita, para melhor protegerem o
sistema capitalista e através deles os interesses de todos os que eram
beneficiários da desigualdade reinante, foram aprendendo a inscrever na sua
agenda algumas medidas próximas das apresentadas pela esquerda, para evitarem
derrotas eleitorais sucessivas e excessivas.
O nacionalismo emancipa tório anti-colonial subsequente à Segunda Guerra
Mundial, exprimiu-se através de um novo tipo de protagonistas que praticavam a
violência como instrumento principal de libertação , embora nem sempre
assumissem um anti-capitalismo radical..
Antes do desmoronamento soviético, a guerra-fria tendeu a
reduzir a amplitude das mudanças em cada um dos lados, deixando o imprevisto
para uma parte do mundo, aberta á expansão de cada um dos blocos. A transgressão
do pacto tácito entre os dois lados não desapareceu mas era rara. A sombra de
uma possível guerra nuclear continha os ímpetos, ainda que evidentemente não
apagasse por completo os conflitos estruturais existentes. Cada lado tinha os seus
centros imperdíveis, os seus vassalos mais distantes e ambos disputavam um
vasto terreno de caça a ambos consentida.
2. Esse mundo bipolar
acabou com o desmoronamento soviético e o esmorecimento da guerra fria. O
capitalismo pareceu triunfante, apesar da sobrevivência da excepção chinesa.
Uma grande excepção que ainda hoje verdadeiramente não se sabe o que significa
geoestrategicamente num plano prospectivo.
Mas passadas algumas décadas, mesmo desembaraçado da competição com o colectivismo de
estado soviético, o capitalismo não funciona como um precioso relógio capaz de
fazer a felicidade dos povos por intermédio da prosperidade dos ricos. Pelo contrário,
tornou-se num predador compulsivo, tendo-se conseguido libertar da tutela política
dos Estados , objectivamente condicionados, em maior ou menor medida, pelo
exercício democrático da vontade dos povos. Vagueia agora como uma cão sem dono,
produzindo um conjunto cada vez mais pequeno de ricos cada vez mais ricos, à
custa do exacerbar da miséria de multidões de seres humanos, de um relativo esvaziamento das classes médias e da
desqualificação acelerada do trabalho, reduzido à desumana condição de
mercadoria. Desgovernado, parece imune à interferência dos poderes democráticos,
contaminado por uma sofreguidão do capital financeiro que se tornou num jogo de
roleta russa praticado por uma incontrolável pistola apontada á cabeça dos
povos.
Por isso, não é realista não ser radicalmente
anti-capitalista. O capitalismo é um cancro que corrói a humanidade, não é
sensato combatê-lo apenas com chás de cidreira. E isso acontece á escala global
e acontece dentro de cada país.
3. Como em todos os grandes combates históricos, não é possível
conseguirem-se vitórias sem inteligência, sem persistência, sem sacrifícios e
sem uma coragem persistente e incansável, mas não se trata de preparar um golpe
de força para tomar o poder num assalto feliz a um palácio de inverno. Não se
trata de tomar bruscamente as rédeas do
poder em Lisboa para exercer depois uma acção política forte e transformadora. Trata-se de
pôr toda a sociedade em movimento, especialmente os membros da sociedade que
pagam com o cinzento desesperado das suas vidas o preço da sobrevivência do
capitalismo. Sem uma cultura popular emancipatória, sem um protagonismo social radicado
num território susceptível de contribuir para identidade cívica dos seres
humanos, sem uma economia humana suficientemente pós-capitalista para se deixar
impregnar pelos valores do socialismo, sem uma clara instrumentalização do
capital ( que, no fundo, é trabalho
morto) pelo trabalho vivo dos humanos, o poder do Estado que é indispensável
nunca terá a força suficiente para pilotar uma superação do capitalismo sem catástrofe.
Por isso, todas as estratégias que na prática se esgotem no
plano da política institucional, por mais brilhantes e certeiras que sejam, objectivamente, são insuficientes e estão condenadas ao fracasso. É preciso jogar em
todos os tabuleiros, saber pôr a sociedade em movimento em convergência e através
de políticas transformadoras. Não
estamos dispensados de fazer o melhor no plano da política institucional, mas o
melhor, apenas num tabuleiro, não é suficiente.
Por isso, me parece mais grave a ausência de intervenção
do PS nas áreas que acima referi do que a prática de erros conjunturais ou de
tomada de posições pouco convincentes.
4. Sei que é difícil percorrer um caminho tão complexo. Mas não
há outro. Para além, de que os explorados e os oprimidos, os excluídos e os
desempregados, já perceberam intuitivamente que os vários discursos das várias
oposições de esquerda, das oposições cuja identidade essencial é a não
identificação com o capitalismo, são palavras que escorrem ao longo da
realidade pouco contribuindo para a modificar. Realmente, e para dar apenas um
exemplo, é cada dia mais claro que um desemprego como aquele que existe em Portugal, como aquele existe na União Europeia, não se combate satisfatoriamente com simples estratégias
de crescimento económico. De facto, mesmo que através apenas delas, o reduzissem a metade do que é hoje isso já seria um êxito retumbante. E a outra metade, os seres humanos desempregados que nessa hipótese idílica
ficariam de fora ? Esqueciam-se ? Os defensores de capitalismo, não o dizem, mas acham que sim. os socialistas que também assim pensarem só podem dizer-se socialistas por hipocrisia.De facto, a única maneira realista de combater o desemprego é
a repartição dos trabalho e dos rendimentos (não a dos rendimentos do trabalho, mas a de todos os rendimentos ), o que é incompatível com o tipo de capitalismo
hoje existente, mas pode ser um aspecto do caminho a percorrer como saída do capitalismo, como transição para um pós-capitalismo, democraticamente
controlada.
Pode discutir-se a via a seguir , o seu ritmo, as suas características
, a distribuição dos sacrifícios que essa metamorfose implica, mas um partido de esquerda , um partido socialista, não pode continuar amarrado á ficção de
que bastam alguns pontos de crescimento económico para se atingir uma sociedade
digna. Não menosprezo a importância dessas medidas se forem tomadas com a noção
de que são apenas um pequeno aliviar de tensões, que nada valerá se não for completado por outro tipo de medidas verdadeiramente transformadores.
5. Se os militantes do PS, se os militantes de todas as
esquerdas, souberem concentrar-se nestas
questões, se conseguirem criar dinâmicas colectivas em torno delas, podemos ter
esperança. Se tudo continuar no remanso das rotinas e das previsibilidades,
cada um fechado nas suas luzidias razões, incólume ás opiniões diferentes, aristocrata
da sua verdade olhada como única, mestre de uma visão da história tecida de
anjos e demónios, é realista recearmos o pior.
Enquanto os de baixo e as suas organizações se digladiarem pelas suas diferenças e prezarem mais o que julgam ser a sua verdade do que a saída
desta sociedade através de uma metamorfose libertadora, os de cima podem dormir
descansados. Mas se os de baixo e as suas organizações aprenderem a pôr, ao
serviço de um amplo movimento comum de mudança total, as suas ideias e as sua
emoções, mesmo com todos os seus labirintos, os de cima perderão o sono. Os de baixo e
as suas organizações não têm que ser o eco de uma só voz, mas têm que ser o
colorido de uma única orquestra que nem precisa de ter maestro. Basta que os violinos
dêem às trompas o direito de o continuarem a ser; e que estas se habituem ao
entrelaçamento com eles. Sem esperar
guias, sem aguardar sinais de partida, é da responsabilidade de todos os de
baixo porem-se a caminho já, cada um à sua maneira, mas fazendo também com que as suas organizações se ponham a caminho.
Se soubermos partir rumo ao futuro, mesmo de sítios
diferentes, um dia nos encontraremos numa corrente histórica. Se esperarmos,
pessimistas e desesperados, a oportunidade única de um caminho bem nosso,
estacionados num pessimismo certamente esclarecido e rigoroso, apenas poderemos
esperar encontrarmo-nos no futuro coma
nossa própria solidão, dia após dia , ano
após ano.