Os mais obnóxios professores de economia conhecem a importância da confiança dos actores produtivos no bom andamento dos negócios, no desenrolar positivo da vida económica. Compreende-se, por isso, que um responsável político sublinhe os aspectos da conjuntura que podem ter aspectos positivos e relativize os que podem projectar sombras mais preocupantes.
Ele deve comportar-se como o médico que entusiasma o doente para melhor lutar contra a doença em cooperação com ele e não como o especialista laboratorial que se limite a olhar para a doença como um objecto de estudo. Sem dúvida que para se debelar uma crise é preciso conhecê-la, mas conhecê-la como o médico que precisa de conhecer o doente para o curar e não para que se atinja o ápice do rigor na descrição da crise, para em seguida sermos vencidos por ela. Penso que a posição de Sócrates, quanto à crise, tem sido a do médico que procura vencer a doença e não a do analista que se preocupa mais em descrevê-la do que em combatê-la.
Isso não significa que tenha escolhido o melhor caminho ou , ainda menos, que o seu governo tenha tomado sempre as melhores medidas, bem como não garante que a determinação em combater a crise significa que ela seja vencida. Mas significa que é muito diferente uma oposição que critique caminhos e medidas de um ponto de vista que a coloque também na posição do médico, do que uma oposição que se exceda no rigor da descrição de todas as dificuldades, como se estivesse num laboratório político, menos interessada em cooperar para superar as dificuldades do presente do que em sublinhar uma hipotética certeza de que o governo vai ser submergido pela crise, de que o médico não vai salvar o doente.
Por mim, sinto-me longe de muitas medidas do actual governo, embora pertença à Comissão Política Nacional do Partido Socialista, mas, principalmente, sinto-me longe da aceitação tácita do capitalismo como fim da história, implícita em muitas delas, e pouco conformado com a ausência de políticas de médio prazo que, sendo necessárias, estão fora das agendas clássicas da política habitualmente praticada.
Mas estou ainda mais longe dos outros partidos de esquerda com expressão parlamentar, encerrados na incongruência estrutural de se comportarem como se apostassem num revolução de que já desistiram. Ou seja, de olharem para o PS como se ele fosse o “menchevismo” em face de um “bolchevismo” que sonhassem ser, mas que já não quer tomar o poder pela violência. Esquecem que esse olhar é hoje uma cegueira, não só porque cem anos conduziram a realidade para novos problemas, mas também porque o tempo se encarregou de colocar ambos na prateleira dos vencidos. Novos problemas dentro ainda do capitalismo, uma vez que nem a via “menchevista” nem a via “bolchevista” o conseguiram vencer, tendo-se até assistido à reabsorção pacífica desta última pelo sistema, num país tão importante como a China.
Como disse, noutras circunstâncias, reconheço que, se formos severos na avaliação do comportamento do PS, podemos dizer que ele vai, por vezes, aos trambolhões, coxeando, parando, caminhando mal, num caminho apesar de tudo aberto ao futuro. Pelo contrário, mesmo que sejamos suaves na apreciação do comportamento do PCP e do BE, não podemos deixar de constatar que por mais decidida e sem falhas que seja a sua marcha, por mais perfeita que seja a sua luta, eles marcham enérgicos num beco sem saída.
Quanto aos partidos da direita, não há entre mim e eles uma distância maior ou menor, uma vez que, pura e simplesmente, eu estou do outro lado.
Tudo isto vem a propósito do debate sobre o Estado da Nação. O governo defendeu-se como um exército cercado, com a crispação inerente a quem está nessa posição, mas com a irritação suplementar de quem sente que a turba que os flagela, cercando-os, não quer verdadeiramente que eles saiam do castelo, sendo ainda improvável que toda ela se entenda, de modo a poder vir a ocupá-lo em cooperação.
As oposições limitaram-se a pedradas previsíveis e repetitivas, fazendo com que algumas delas passassem por cima do PS e raspassem pelas outras oposições.
O PP, pela voz do seu especialista em submarinos, propôs um insólito governo PS, PSD, CDS, sob a cominação do Dr. Paulo Portas de que o Primeiro-Ministro não seria Sócrates. O episódio foi enterrado nos minutos seguintes pelas reacções dos outros envolvidos. Mas nós devemos reter o descaramento desta nossa direita que, cansada de perder eleições, descobria assim a maneira simples de ser maioritária, dentro de um governo saído de uma eleição em que os eleitores a tinham posto em minoria. O apego à democracia de uma boa parte dela ficou bem ilustrado pelo quase meio século de salazarismo, mas não deixa de ser sintomático que por debaixo do verniz seráfico das circunstâncias continue em dormência o enviezamento anti-democrático.
O deputado Macedo pelo PSD foi excessivamente arrasador. Levando tudo na frente das suas catilinárias, enfraqueceu a verosimilhança do seu próprio discurso, acabando por se arrasar a si próprio. Se o que disse estivesse certo, o PS nas últimas eleições em vez de ter sido o partido mais votado, não tinha tido um único voto para além dos seus candidatos e dos seus dirigentes. Larga distância pois, entre a vozearia do deputado laranja e a realidade. Mas, pior do que isso, o inefável arauto do “reaganismo” de segunda geração, também censurou ao PS todas as sequelas sociais que, independentemente dos governos, são uma parte do preço que os próprios sequazes do capitalismo reconhecem como sendo a paga razoável por se viver no seu idolatrado paraíso. Nessa sofreguidão demagógica, o deputado Macedo não hesitou em censurar ao PS a tomada de medidas que ele já prometeu agravar, em censurar ao PS alguns passos dados em caminhos que ele já prometeu ir percorrer até mais longe. Ou seja, talvez sem se dar conta, o irredutível tribuno fez um diagnóstico ultrasombrio da conjuntura, atirando todas as responsabilidades para cima do governo, mas sugerindo, afinal, que podiam contar com o PSD para as agravar dramaticamente.
Os outros partidos de esquerda, mantiveram o seu generosos registo de tribunos dos desfavorecidos, reduzindo a conjuntura a uma desgraça de que só o governo do PS é culpado. Aproveitaram algumas convergências parlamentares entre o PS e o PSD, tornadas objectivamente indispensáveis, pela sua recusa de diálogo com o PS, para tentarem esconder, por detrás dessa convergência, a sua longa cumplicidade com a direita, no combate ao PS e ao seu governo.
No plano institucional o debate não clarificou o que possa haver de enublado no horizonte. Tudo foi demasiado previsível e conjuntural. O PS não mostrou força para romper o cerco, vivendo principalmente das hesitações e das impotências das oposições, da incerteza em que elas vivem quanto ao modo como se podem entender ou desentender de vez. As oposições foram elas próprias, na sua ferocidade enorme contra o governo, na incapacidade profunda de transformarem em actos, por modestos que sejam, as suas tonitroantes palavras.